Com 101 anos, ainda dirige um jornal que envia para os emigrantes da aldeia e empenha-se em fazer licores e bolinhos para ofertar a quem a visita. Sabe que é suspeita, mas garante que Alte é a mais bonita aldeia de Portugal – mesmo que não tenha ganho o concurso da aldeia mais portuguesa, lançado pelo antigo regime. Albertina lembra-se dos preparativos para esse concurso – aliás, lembra-se de quase tudo. Mesmo que já tenha passado quase um século. Eis o seu testemunho.
“Não sei se haverá alguma aldeia em Portugal que tenha tanta beleza junta”
Chamo-me Albertina Madeira, tenho 101 anos … Ainda sou muito novinha, só tenho um aninho (risos). Sim, já vivi um século. Quase sempre aqui em Alte. Nasci aqui na aldeia e até os seis anos estive em Alte. Depois os meus irmãos foram estudar para Faro, e eu também fui com eles e os meus pais. Depois fomos para Lisboa, três anos. Estive fora um total de oito anos, mas depois de regressar fiquei sempre aqui, nesta casa de família – e aqui fiz toda a minha vida.
Alte é uma aldeia metida no meio da serra algarvia, não havia grandes comunicações. E esta aldeia não evoluía muito porque estava longe do litoral. Foi a pouco e pouco progredindo. E nós, que estávamos aqui em Alte, fazíamos uns grupinhos, uns divertiam-se de uma maneira, outros de outra. Eu formava um grupinho com os meus irmãos e mais umas quantas pessoas amigas.
A ideia de fazer um jornal, em 1967, surgiu nesse grupo de amigos. Nós andávamos por aqui a passear na aldeia – não saíamos, não havia carros para andar de um lado para o outro, nem havia autocarros para sairmos daqui. Aqui estávamos sempre dia e de noite, meses e anos. E então, aos domingos, esse nosso grupinho ia passear. Íamos à Fonte Grande, à Fonte Pequena, ao Vigário, ao Penedo da Saudade. E à noite juntávamos-nos, na casa de um ou na casa de outro, para jogar ao loto ou às cartas.
A minha irmã, que foi sempre a cabeça do grupo, tinha sempre muitas ideias. Foi ela que fez muita coisa aqui em Alte. E foi ela quem um dia se lembrou de dizer “Mas então nós aqui não fazemos nada pela nossa terra? Estamos só aqui a brincar, só a passear?”. Nessa altura tinha rebentado a guerra no Ultramar, e também foi ela que disse: “E se a gente escrevesse para os nossos soldados?”. Foi assim que surgiu o jornal Ecos da Serra, até hoje.
Lembro-me das primeiras histórias que foram publicadas no jornal. Aliás, tenho ali todos os números guardados, por isso podemos ver todas as edições. Lembro-me que nós escrevíamos para os soldados, eles respondiam. Pelo Natal, a gente mandava uma garrafinha de aguardente e uns figuinhos com amêndoas. E eles ficavam delirando com aquilo, no meio do mato. Passaram por lá tanta coisa que uma coisinha tão simples era para eles muito importante.
Nós fazíamos o jornal todo. Havia uma senhora do grupo que tinha muito jeito para a ilustração, o jornal saía ilustrado, e depois tirávamos fotocopias e mandávamos pelo correio. Publicávamos no jornal as contas das pessoas que nos mandavam dinheiro para ajudar – estava tudo publicado.
E o jornal manteve-se sempre, mesmo depois da guerra do Ultramar. Houve um ano ou dois em que não se distribui, mas continuou sempre. Acabou a guerra, não há mais soldados, canaliza-se para os imigrantes. O jornal distribui-se aqui em Alte, claro, e junto dos imigrantes, que ficam contentíssimos. Há uma comunidade de imigrantes muito relevante aqui de Alte. Já foi maior – tínhamos uma tiragem de 1800 jornais. Agora temos 800.
Também ajudamos a criar o lar da terceira idade, enfim, éramos um grupo de amigos que fazia muitas coisas. Mas desses todos, só eu que ainda existo. Ainda cá ando, e o jornal também. O jornal continua a contar histórias. Agora anuncia mais funerais do que casamentos – a verdade é que agora já há pouca gente a casar.
Há muita gente a escrever para o jornal. Sobretudo versos. Agora estamos a publicar uma história de vida de um senhor que era daqui de Alte e que viveu em Loulé. Esteve também no Ultramar e fez até um livro sobre os soldados, com as cartas que eles escreviam, o que é que eles passaram.
Eu própria andei a escrever, durante um ano ou dois, porque é que esta rua tinha este nome, e porque aquela rua tinha outro. Há muitas ruas com história aqui em Alte. E a mais importante de todas, não é por nada, mas é mesmo esta onde estamos, a rua Nova da Igreja, que vai daqui até à Fonte Pequena.
Aqui nesta rua havia sempre fogueiras pelo São João. O meu pai contava muitas coisas engraçadas, por exemplo, que apesar de a aldeia ser pequenina havia ainda dois grupos: o grupo de cima e o grupo de baixo. E havia gramde rivalidade entre eles. Uma vez houve uma escaramuça tal por causa de uns mastros no São João e de um santo que desapareceu… Eu não era nascida, o meu pai é que nos contou, que eles se enlearam uns nos outros, foi uma confusão. Enfim, peripécias que existiam. O que interessa eram as fogueiras que se faziam nas ruas. Ia-se aos montes buscar alecrim e faziam-se grandes fogueiras.
Esta era uma aldeia de trabalho, as pessoas viviam do campo e do esparto. Havia em Alte uma grande indústria de esparto, aqui em frente era um armazém muito grande onde estava sempre muita gente a trabalhar. Quando chegavam das suas casas traziam as cordas, já enroladinhas, depois aqui faziam alcofas, alcofões, coisas assim. E era daqui para todo o Algarve e não só – os negociantes levavam-nas daqui e depois expandiam para outros lados.
O que é que eu gosto mais da minha aldeia? Das suas belezas. Eu não sei se haverá alguma aldeia em Portugal que tenha tanta beleza junta. Todas as aldeias têm a sua beleza, como cada pessoa também tem a sua beleza. Mas esta aldeia encerra muitas. É a Fonte Grande, é a Fonte Pequena, é a cascata do Vigário, é a igreja, que é muito simples e bonita. Quase todos os dias vêm turistas visitar a aldeia – e entram na igreja aqui, como entraram na igreja de outras aldeias que já visitaram. E os guias têm dito que todos os turistas dizem que de todas as igrejas que viram a que gostam mais é desta.
Eu fui assistindo ao crescimento da aldeia, e à forma como ela foi sendo embelezada. E na verdade, algumas transformaram-se para o lado do bem, outras sem gosto nenhum. O pai do professor Daniel Vieira, por exemplo, teve quase 30 anos como presidente da Junta de Freguesia. Ele tinha muito gosto nas coisas, ele floriu muito aqui os cantinhos de Alte, houve muita coisa que ele fez muito bem. Outras pessoas fazem de outra maneira. Por exemplo, eu acho que a forma como arranjaram a Fonte Grande não está bem adequada ao nosso tipo da aldeia.
O professor Zé Vieira tinha muito gosto, é por causa dele que as coisas não ficaram mais estragadas, ele tinha regras. Foi na altura dele que nos candidatamos a ser a Aldeia mais Portuguesa de Portugal. E eu fui uma das pessoas que ensaiou para o concurso.
Foi muito interessante. Toda a gente se vestia à antiga, e depois cada pessoa apresentava o seu ofício: o alfaiate, o albardeiro, vieram uns pastores com uns rebanhos… toda a gente participava nisto ou naquilo, uns dançavam… Eu fui para um pátio de uma casa onde estava uma porção de mulheres a fazer renda, ou a fazer meia. O júri do concurso devia ter vindo cá, mas nem vieram todos. Alguns já estavam tão fartos de vir lá do norte, e depois de dias e semanas a viajar alguns desistiram e não vieram cá. Mas depois arrependeram-se – porque a nossa aldeia é mesmo muito bonita.
Mas enfim, não ganhamos o concurso, mas por causa dessa preparação ganhamos outras coisas. O grupo folclórico, por exemplo, que ficou desde aí. Eu cantava nesse grupo. Ainda me lembro das músicas. “Quatro Cerros tem Alte / Que o cercam em redor / São Galvana e Francilheira / Castelo e Rocha maior”. Era o Cândido Guerreiro, o nosso poeta aqui de Alte, que fazia as letras das músicas. Para além do grupo folclórico também tivemos uma banda de música e um outro grupo musical, os Erva Doce, que era de cantares populares. Éramos uma aldeia muito artística.
Fomos muito felizes aqui em Alte. Guardo muitas fotografias desses tempos. Havia fotógrafos itinerantes que passavam pelos sítios… mas nós tínhamos um fotógrafo a viver em Salir, aqui ao lado, por isso temos muitas coisas em fotografia. Tenho uma da minha primeira comunhão, por exemplo, em 1932. Ou quando, com menos de 18 anos, fiz de Gata Borralheira numa peça de teatro. Nós andávamos sempre a inventar coisas para fazer.
Eu tantos anos depois ainda gosto de inventar coisas para fazer. Gosto muito de cozinhar, de fazer doces e biscoitos, de fazer renda. Esse licor que está a provar sou eu que o faço. E nunca digo de que é. São as pessoas que têm de adivinhar. E também gosto muito de ir lá para cima para o terraço, para debaixo de uma alfarrobeira muito linda que lá temos.
Mais sobre Alte
Alte, aldeia com vista para a arte
Alte fica no coração da serra do Caldeirão, é terra de alfarrobeiras e de cascatas e é uma aldeia que tem sabido preservar também o seu património edificado. Passear na pequena aldeia de Alte é apreciar casas brancas, beirados típicos, chaminés recortadas, caminhos estreitos, vasos às janelas, buganvílias a trepar paredes e a enfeitar as ruas. Alte é também terra de poetas, de artistas plásticos, de músicos. E de ciclistas.
Daniel Vieira, o artista
É pintor, faz gravuras, canta fado. Toca vários instrumentos, cantou e dançou no rancho folclórico, integrou o grupo Almanaque. É um apaixonado por música tradicional e vai a bailes de forró. Foi funcionário público, professor de artes visuais, um eterno trabalhador estudante. Aos 76 anos inscreveu-se numa pós graduação em artes sonoras, “porque há sempre algo para aprender”. Não gosta de terminar as suas peças. “Terminar é morrer”. Em junho faz 87 anos. Continua cheio de vida. E de planos.
Pedro Pirralho, o Germano das bicicletas
Todos o conhecem por Germano – era o nome do avô, foi o nome que deu à marca das bicicletas que se propôs a recuperar, aproveitando material obsoleto. É o nome do café que abriu na aldeia de Alte, a aldeia onde a mãe nasceu para onde voltou no início da sua adolescência. Em Lisboa, onde cresceu, todos os chamam de Pedro Pirralho. Por baptismo, afinal, é Pedro Domingues. Qualquer que seja o nome, o sonho é apenas um: honrar o nome do avô e trazer sempre mais e mais ciclistas à aldeia e à serra do Algarve. Foi o autor do Estendal da Volta.
Aldegundes Gomes, a artesã da Casa do Esparto
É mais velha das quatro artesãs que continua a mostrar, na Casa do Esparto na aldeia de Sarnadas, como é que se trabalha esta fibra selvagem e se transforma em peças utilitárias e decorativas. Com 89 anos, memórias vívidas e apreciadora de contar histórias, Aldegundes diz que é a trabalhar o esparto que consegue descansar. Descansar nem que seja da lida doméstica ou do trabalho atrás do balcão da velha mercearia que continua de portas abertas no centro da aldeia.
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