Todos o conhecem por Germano – era o nome do avô, foi o nome que deu à marca das bicicletas que se propôs a recuperar, aproveitando material obsoleto. É o nome do café que abriu na aldeia de Alte, a aldeia onde a mãe nasceu para onde voltou no início da sua adolescência. Em Lisboa, onde cresceu, todos os chamam de Pedro Pirralho. Por batismo, afinal, é Pedro Domingues. Qualquer que seja o nome, o sonho é apenas um: honrar o nome do avô e trazer sempre mais e mais ciclistas à aldeia e à serra do Algarve. Foi o autor do Estendal da Volta. Eis o seu testemunho.
“O meu projeto só fazia sentido se fosse na oficina que o meu avô teve na aldeia”
Chamo-me Pedro Domingues, mas quase ninguém sabe. Todos me conhecem por Pedro Pirralho, ou por Germano, que era o nome do meu avô e é também o nome deste espaço, Germano Biciarte Café.
Eu já nasci depois do 25 de abril, há 47 anos. A minha mãe é daqui de Alte e, depois de ter andado por essas aldeias com o meu avô a animar bailaricos, decidiu ir viver para Lisboa, foi trabalhar para a grande cidade. Foi lá que conheceu o meu pai e, pelo que sei, estavam sempre a vir de Lisboa para cá para baixo. Numa dessas visitas ao Algarve acabei por nascer. Fui nascer a Faro, por acaso. Depois fui para cima, e estive lá até aos 11 ou 12 anos. Morávamos em Belém, na Calçada da Ajuda.
Entretanto, os meus avós e a minha tia tiveram um problema de saúde – a minha tia mais nova, que chegou a estar em Lisboa, teve um cancro, e veio cá para o Algarve. Só que as coisas foram piorando, e depois a minha mãe veio ajudar. Então, viemos para cá – e por cá ficamos, mesmo depois da minha tia falecer. Por isso, apesar de ter vivido a primeira década em Lisboa, acho que aqui é que estão as minhas raízes.
Foi aqui que estudei, foi aqui que arranjei o primeiro emprego – foi a trabalhar no gabinete de artes plásticas com o professor Daniel Vieira. Entretanto, consegui um trabalho como desenhador para a Câmara de Loulé, para fazer os projetos daqui para Alte. Mas não entrei no quadro e fui trabalhar para um gabinete de arquitetura em Vilamoura. Estive lá dez anos a trabalhar, até que chegou a troika.
Foi nessa altura que eu e a minha esposa, a Ana, que também é aqui de Alte, começamos a pensar neste projeto relacionado com as bicicletas.
O objetivo era reciclar produtos que já não se usam, desde as bicicletas propriamente ditas até aos produtos que elas deixam de utilizar e que são normalmente deitados ao lixo. Abrirmos este espaço com o intuito de restaurar bicicletas, voltar a pô-las a andar. Foi por causa do meu avô Germano que ficamos com este bichinho das bicicletas .
O meu avô tocava banjo e a minha mãe tocava acordeão. E eles iam animar os bailaricos em várias localidades. Ele e a minha mãe, com a bicicleta, de acordeão às costas, correram o Algarve e o Baixo Alentejo. O meu avô esteve sempre ligado às bicicletas. Neste mesmo sítio ele tinha aqui uma oficina onde as arranjava.
Nessa altura fomos pedir um empréstimo para avançar com o negócio, mas a banca não avançou. Achavam isto estranho, um café para apoiar bicicletas. Acabamos por ser eu e a minha mulher a investir tudo o que tínhamos e não tínhamos. A parte do café ficou um bocado na gaveta, mas surgiu a hipótese de continuar com o projeto na parte da reciclagem. Pudemos mostrar o que queríamos desenvolver. Fomos a feiras, mostrar o tipo de peças que queríamos fazer – nós chamamos artesanato, são bricolage, mas são sobretudo peças decorativas.
Entretanto, sentimos a necessidade de ter um sítio físico. E só fazia sentido se fosse aqui na aldeia, no mesmo local onde o meu avô teve a taberna e oficina de bicicletas. Em 2016 voltamos a falar com a banca e, foi engraçado, aí já estavam mais interessados no bike cafe (também já tinha aberto um em Lisboa e no Porto) e eles diziam que apoiavam se o projeto fosse feito no litoral. Mas aí não cedi eu.
O nosso objetivo era vir para Alte trazer um conceito novo, diferente e inovador para a aldeia. Eu estava a ver a minha aldeia a perder essência. E tinha de ser nesta casa. Foi aqui que o meu avô teve uma loja de bicicletas nos anos 30, foi nesta casa que nasceu a minha mãe, nasceram as minhas tias. Tinha aqui uma carga forte, emocional. Tinha de ser aqui.
Depois do meu avô, esta casa foi uma taberna, uma mercearia, uma fábrica de bolos. E esteve fechada muitos anos. Eu falei com a proprietária e alugamos o espaço. Abrimos e, entretanto, o projeto foi ganhando asas. Nós já tínhamos uma plataforma razoável de contactos, já muita gente conhecia o nosso projeto, por causa das feiras que tínhamos feito, e os produtos que já tínhamos criado. Conheciam o restauro das bicicletas, faltava conheceram a taberna, a cafetaria.
O objetivo da cafeteria é mostrar produtos locais do concelho – e um bocado de Portugal. Sempre tivemos o objetivo de fazer algo diferente do habitual, organizar atividades durante o ano. Por um lado, ir buscar as pessoas de fora para aqui, mas também juntar a nossa comunidade, as pessoas daqui. Temos a Volta ao Algarve, logo em fevereiro. Em abril temos o BTT de Alte, em junho fazemos os Santos Populares para recriarmos a vivência da sardinhada, juntar as pessoas locais. No verão não fazemos nada, que está muito calor, não temos ciclistas. Em outubro temos o nosso aniversário e em dezembro organizamos um passeio para atravessar o Algarve em bicicleta, desde Alcoutim até à Arrifana, no dia mais pequenino do ano.
Em todas estas atividades conseguimos marcar a diferença logo na primeira Volta ao Algarve. Logo nesse primeiro ano de 2016 eu disse à organização da volta que se passassem por aqui, por Alte, faríamos uma surpresa, algo diferente. Foi aí que surgiu o Estendal da Volta. Pedimos aos ciclistas para nos emprestarem as suas camisolas, e decoramos aqui as ruas.
Hoje em dia é um sucesso, e já está toda a gente à espera disso – vêm estrangeiros para ver. Já fazemos há sete anos consecutivos. Ainda estou a arrumar as blusas – que eu lavo-as todas, arrumo-as em sacos, tenho tudo preparado para quem as emprestou as possa vir buscar. Mas, na verdade, a maior parte nem vem. Ficam para o ano seguinte. Tenho aí muitas blusas assinadas… O problema é que alguns acham que o estendal está montado o ano todo… Aí eu digo para virem em fevereiro.
Quando fui tirar o curso de design, e tive formação na área da arquitetura, das artes plásticas e das artes gráficas, a minha ambição era desenhar. Claro que as coisas não se encaminharam para isso, mas na verdade também comecei a ficar farto de estar fechado dentro de um gabinete, oito horas por dia. E foi a bicicleta que me trouxe o clique que faltava.
Gosto de desenho, continuo a desenhar… mas agora é mais a criar merchandising, objetos relacionados com a bicicleta e com as modos tradicionais do estar e do falar daqui do Algarve. Foi assim que criamos a colecção bcicleti, com muitas t-shirts e outras peças a incentivar ao uso da bicicleta. Na nossa “boutique” também temos varias peças de bijuteria e peças decorativas sempre relacionadas com a bicicleta.
Temos sempre a reciclagem e a reutilização de peças como objetivo. O melhor exemplo foi a recuperação total que conseguimos fazer de uma bicicleta antiga – foi um trabalho que fiz durante a quarentena. Por isso a bicicleta – que está aqui na loja, para venda – chama-se Quarentine.
Sete anos depois de ter aberto aqui a loja, o balanço é muito positivo. As pessoas vêm visitar-nos, já somos destino de visita. Tenho clientes que vêm a primeira vez e voltam cá, voltam sempre.
No início os ciclistas, ou os clientes, sentavam-se na esplanada e nem entravam, não viam o que estava aqui. Agora eu espero sempre que venham cá dentro, e, sempre que possível começo a contar-lhes a nossa história. Tenho aqui muitas fotografias, perguntam-me coisas, acabo sempre a falar do meu avô e muitas vezes acabo emocionado.
Eu acredito que o avô Germano é mesmo a força deste projeto. Trazê-lo aqui para a aldeia faz mesmo muito sentido. Nós queremos estar com as pessoas daqui, de Alte, que nos têm ajudado muito, e também receber quem nos visita, de bicicleta ou para as caminhadas, para lhes falar da nossa aldeia e do nosso Algarve, para lhes falar de sítios que merecem visita. Enfim, para os abraçar como se estivessem em casa.
Mais sobre Alte
Alte, aldeia com vista para a arte
Alte fica no coração da serra do Caldeirão, é terra de alfarrobeiras e de cascatas e é uma aldeia que tem sabido preservar também o seu património edificado. Passear na pequena aldeia de Alte é apreciar casas brancas, beirados típicos, chaminés recortadas, caminhos estreitos, vasos às janelas, buganvílias a trepar paredes e a enfeitar as ruas. Alte é também terra de poetas, de artistas plásticos, de músicos. E de ciclistas.
Daniel Vieira, o artista
É pintor, faz gravuras, canta fado. Toca vários instrumentos, cantou e dançou no rancho folclórico, integrou o grupo Almanaque. É um apaixonado por música tradicional e vai a bailes de forró. Foi funcionário público, professor de artes visuais, um eterno trabalhador estudante. Aos 76 anos inscreveu-se numa pós graduação em artes sonoras, “porque há sempre algo para aprender”. Não gosta de terminar as suas peças. “Terminar é morrer”. Em junho faz 87 anos. Continua cheio de vida. E de planos.
Albertina Madeira, a centenária diretora do jornal
Com 101 anos, ainda dirige um jornal que envia para os emigrantes da aldeia e empenha-se em fazer licores e bolinhos para ofertar a quem a visita. Sabe que é suspeita, mas garante que Alte é a mais bonita aldeia de Portugal – mesmo que não tenha ganho o concurso da aldeia mais portuguesa, lançado pelo antigo regime. Albertina lembra-se dos preparativos para esse concurso – aliás, lembra-se de quase tudo. Mesmo que já tenha passado quase um século.
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Aldegundes Gomes, a artesã da Casa do Esparto
É mais velha das quatro artesãs que continua a mostrar, na Casa do Esparto na aldeia de Sarnadas, como é que se trabalha esta fibra selvagem e se transforma em peças utilitárias e decorativas. Com 89 anos, memórias vívidas e apreciadora de contar histórias, Aldegundes diz que é a trabalhar o esparto que consegue descansar. Descansar nem que seja da lida doméstica ou do trabalho atrás do balcão da velha mercearia que continua de portas abertas no centro da aldeia.
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