É mais velha das quatro artesãs que continua a mostrar, na Casa do Esparto na aldeia de Sarnadas, como é que se trabalha esta fibra selvagem e se transforma em peças utilitárias e decorativas. Com 89 anos, memórias vívidas e apreciadora de contar histórias, Aldegundes diz que é a trabalhar o esparto que consegue descansar. Descansar nem que seja da lida doméstica ou do trabalho atrás do balcão da velha mercearia que continua de portas abertas no centro da aldeia. Eis o seu testemunho.
“Toda a gente se admira com as peças bonitas que conseguimos fazer”
Chamo-me Aldegundes Gomes, tenho quase 89 anos, nasci aqui em Sarnadas, e eu sempre vi o esparto na minha aldeia e na minha vida. O meu pai, que faleceu com 80 e tal anos – e se fosse vivo já tinha muito mais cem -, começou a trabalhar no esparto mal saiu da escola primária.
Empregou-se num armazém onde se pesava o esparto. As pessoas levantavam-se de manhã cedo, havia uma pedra grande para pisar o esparto. Depois levavam o esparto para torcer e a seguir iam levar o esparto trabalhado, torcido – e o meu pai pesava. Agora o esparto já vem pisado, que é o que nós trabalhamos com a trança, e vem o esparto para a empreita.
Antigamente havia muita gente a pisar esparto. Eu, pessoalmente, nunca apanhei, nunca pus de molho, nunca pisei. Quando comecei a trabalhar com o esparto, já vinha da Espanha e de Marrocos. Alguém de Faro comprava o esparto e depois vendia-nos a nós.
As pessoas levavam o esparto para casa. A princípio, o esparto era só para torcer, o baraço torcido, para fazer cordas e redes. Mas a partir de uma certa data começou a fazer-se a trança, a empreita e todas as outras coisas. Por exemplo, os alcofões que serviam para pôr as coisas que se apanhavam no campo. E já antigamente se faziam peças decorativas, não é só de agora. Eu fiz, e mandei fazer, talvez centenas e centenas de burrinhos e de cabeças de burro.
Na verdade, são peças de arte. Dão muito trabalho, mas a gente sente prazer em fazer. Não lhe sei dizer quanto tempo demoramos a fazer uma peça, porque eu nunca fiz uma peça do principio ao fim, tudo seguido. Um burrinho, por exemplo. Primeiro a gente faz a empreita, depois corta as peças, depois vai mexer noutra coisa.
Eu ainda faço muita coisa, mesmo com a idade que tenho. Não gosto de estar parada. Mesmo se eu estiver sentada, estou trabalhando. Faço pegas, por exemplo, para depois oferecer no Natal. Se hei-de estar a comprar outras coisas, ofereço uma peça feita por mim. Faço pegas em lã, faço bases em malha para pôr debaixo das panelas… Eu gosto de oferecer. E gosto de andar ocupada. A mim dá-me muito gosto criar peças em esparto. E todo o bocadinho que tenho, às vezes até para descansar da vida da casa, da louça, da comida, sento-me e vou fazer isto.
Todos os dias trabalho, e só não faço mais porque não posso – que os anos já são muitos. E digo, se todas as pessoas da minha idade conseguissem fazer o que ainda faço, era muito bom. Há muita gente que chega à minha idade e não pode. Eu, graças a Deus, ainda vou fazendo. Ou porque tenho vontade, ou porque… sei lá. Sei que ainda faço muita coisa. Ajudo muito a minha nora a descascar batatas, a cortar cebola, a cortar carne. Estou aqui na loja, trato das coisas da casa e faço esparto.
Eu aprendi a a trabalhar o esparto com outras senhoras que faziam aqui na nossa zona. No princípio nem fazia muito, estive sempre muito ligada ao comércio. O meu pai tinha uma taberna e mercearia… e tinha armazéns de medronho, onde destilavam o medronho e se vendia aguardente. Nós éramos sete irmãos e eu era uma das filhas que gostava de atender o povo.
Depois tive um acidente com cal e perdi uma vista quando tinha uns 14 anos. Os meus irmãos trabalhavam mais no campo, mas eu não dava muito para andar no campo e então fui estudar para fazer o exame de regente. E quando tinha 18 anos lá fiz o exame e fui trabalhar. Já viu, uma menina de 18 anos que nunca tinha saído daqui? Lá fui, é a vida. Fui para Tafe, no concelho de Tavira. No outro ano a seguir, fui para o concelho de Silves e depois o resto do tempo foi no concelho de Loulé. Quando casei voltei para a minha aldeia.
Depois de casada, e quando me apareceu a primeira filha e eu deixei a escola, tentei pôr um negócio de mercearia onde também vendia o esparto. Sabe que naquele tempo numa mercearia vendia bebidas, alimentos, roupa, calçado, louça, petróleo… vendia tudo.
Eu estava só no balcão a atender as pessoas. E tinha o esparto, as pessoas vinham buscá-lo à minha casa e levavam-no para trabalhar. Era tempos difíceis, o trabalho rendia pouco e, mesmo para quem vivia do campo, nem sempre havia trabalho para fazer. As pessoas precisavam de algum trabalho que desse dinheiro para a alimentação.
Então eles vinham e levavam o açúcar, o arroz, a massa e não pagavam. Mas também levavam um molhinho de esparto. Então eles trabalhavam o esparto e depois vinham trazer o trabalho feito, e pagavam os alimentos que tinham levado, levavam mais coisas para a alimentação e para a vida da casa e levavam ainda mais esparto para trabalhar. Umas faziam uma trança, outras faziam a rodelas, outras faziam o vai-vem, que é um rendilhar… Cada uma desempenhava o seu papel e era também uma forma de ajudar as pessoas.
Depois, tudo mudou. Começaram a ir buscar trabalhos à China, os tapetes da China eram mais baratos e eram vistosos, os nossos fracassaram. E assim quase se terminou com o trabalho do esparto. As pessoas que trabalhavam nisto deixaram de o fazer. As velhotas não saíam daqui, mas as jovens começaram a ir para outros centros trabalhar, vinham buscá-las para lavandarias, restaurantes, hotéis, praças, coisas assim… Sítios onde ganhavam mais. E então deixaram de trabalhar nisto, que é um trabalho manual, que dá muito trabalho e que rende pouco. Isto é a realidade.
Se antes toda a gente trabalhava no esparto, agora quase ninguém trabalha. A Câmara de Loulé resolveu recuperar a escola da aldeia e fazer aqui a Casa do Esparto, e acho que fez mesmo muito bem, a ver se a arte não desaparece. Agora muitas pessoas têm vindo aprender a trabalhar o esparto, e fazem bonitos tapetes, cabeças de burro, burrinhos, galinhas, fruteiras, tudo… Até um presépio! E muitas pessoas vêm visitar e compram as peças que temos aqui.
Não há muita gente nova a aprender. Os jovens não gostam muito disto. Mas nós vamos tentando, a trabalhar e ensinar a outros que gostam, estrangeiros que vêm aprender, que vivem aí e que gostam destes trabalhos. Porque isto é coisa em que a gente sente o prazer de fazer.
São peças maravilhosas feitas de uma planta que está abandonada no campo, que não serve para mais nada senão para se trabalhar certas coisas. Toda a gente se admira com as peças bonitas que conseguimos fazer.
Neste momento somos quatro artesãs a trabalhar na Casa do Esparto. Não quer dizer que estamos cá as quatro, sempre. Mas está sempre aqui alguém. E de vez em quando há pessoas que vêm aprender, há grupos que vêm ver, admiram e gostam e compram uma peça ou outra. E de vez em quando a Câmara de Loulé também traz cá grupos de crianças da escola, e algumas entusiasmam-se e querem aprender a fazer um porta-chaves para a mãe, outro para o pai, outro para a avó, outro para a tia… alguns não se interessam, é normal, mas outros mostram interesse e isso é o mais importante.
Eu gosto muito de viver aqui na minha aldeia. Agora há cá pouca gente. Antigamente um casal tinha muitos filhos. Os meus pais tiveram sete. Havia uma tia que teve nove filhos. Outra tinha cinco, seis. Hoje é um, dois, um, dois…
E depois as pessoas também começaram a emigrar e fizeram por lá a sua vida. E ficaram. Ou então, dos que cá estavam, os pais foram partindo, os filhos não vivem aqui. Vendem a casa que era dos pais e quem tem comprado mais são os ingleses. Há muitos a comprar casas aqui. E ainda bem. São pessoas muito competentes. Nada há a dizer. Compram casa, fazem a sua vida. São boas pessoas.
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