É pintor, faz gravuras, canta fado. Toca vários instrumentos, cantou e dançou no rancho folclórico, integrou o grupo Almanaque. É um apaixonado por música tradicional e vai a bailes de forró. Foi funcionário público, professor de artes visuais, um eterno trabalhador estudante. Aos 76 anos inscreveu-se numa pós graduação em artes sonoras, “porque há sempre algo para aprender”. Não gosta de terminar as suas peças. “Terminar é morrer”. Em junho faz 87 anos. Continua cheio de vida. E de planos. Eis o seu testemunho.
“Ainda não descobri qual é a melhor forma de me expressar”
Chamo-me Daniel José Ramos Vieira e nasci nesta casa em 1937, no dia 3 de junho, às 9 da noite. Era a casa dos meus avós, dos meus pais, e agora é o meu atelier. É a casa onde se passou tudo. E onde eu vivi durante muito tempo, nem sei quanto. Foi aqui que vi nascer e crescer muitas coisas. O grupo folclórico de Alte, por exemplo, que nasceu quase no mesmo ano que eu.
O grupo folclórico foi ideia do meu pai. Ele tinha ido estudar para Lisboa, e dois ou três anos depois de voltar foi eleito presidente da Junta de Freguesia, e foi com ele que a aldeia concorreu àquele concurso das aldeias mais portuguesas. Então, os meus pais andaram nessa altura aqui pelas estradas e freguesias de Alte a recolher músicas e danças, para a aldeia se preparar para esse concurso. E o grupo nasceu daí.
Por isso eu digo que nesta casa em que estamos se passou muita coisa, se passou tudo. É para aqui que eu agora gosto de vir, todos os dias. Às vezes não venho cá fazer nada, que eu tenho a mania de me meter em tudo e depois não faço nada. Mas ando sempre com experiências, a procurar conhecer.
É nestas paredes que me lembro de muitas histórias, estas paredes são livros de memórias. Abertos. Todos podem ler o que aí está escrito. E eu também me lembro do que não está. O que posso dizer é que é tudo isto que me inspira. Eu vivi muitos anos em Lisboa, vivi em Alfama, e tenho lá casa ainda, mas a minha inspiração tem sido sempre a minha terra. A minha aldeia.
O meu gosto pela arte, pela criação, veio também do meu pai. Ele também era pintor – era, até, melhor do que eu. Eu até sou mais gravador do que pintor, mas isso não importa nada. Sei que o meu pai tirou contabilidade mas também frequentava os sítios artísticos. E, já casado, começou a pintar. E lembro-me dele aqui na varanda a pintar à vista. E eu também. Também comecei a pintar com ele.
Toda a minha vida foi dedicada às artes. Mas a minha vida é uma confusão. Eu fui mau estudante. Só estudei quando me interessou. Eu acho que quando uma pessoa vai e não gosta, não deve continuar a ir. Sou como o Agostinho da Silva, sou amante dele. Um dia fui a uma conferência e ouvi-o a falar e pensei – ‘olha que sem saber, também fiz o que tu fizeste’.
O meu pai gostava que eu pintasse. Ele não era rico, mas as ofertas que me fazia eram para isso. Quando ia a Loulé, trazia-me sempre tintas. E eu ia pintar.
Quando acabei o quinto ano do liceu, fui trabalhar. Aos 20 anos fui para Lisboa e trabalhei na Caixa Geral de Depósitos. E, entretanto, depois fui para a António Arroio estudar à noite. Inscrevi-me nos cursos noturnos de Desenhador e Gravador-Litógrafo. E acho que foi a escola que mais gostei de ter. Foi a que mais me marcou. Também gostei de ter ido para as Belas Artes, onde depois me licenciei em Pintura. Mas a António Arroio marcou-me mais, não sei porquê. Era diferente.
Quando era aluno das Belas Artes (foi onde me especializei em gravura, com os mestres Teixeira Lopes e Matilde Marçal) decidi deixar o emprego que tinha. Eu era funcionário na Caixa Geral de Depósitos e houve alguém que me incentivou a ser professor. E eu… concorri. Mas teve piada. Um dia cheguei ao meu chefe lá na Caixa e disse-lhe “olhe sr. Valentim, vou-me embora”. Eu trabalhava nessa altura no Jardim do Ouro, em Lisboa. O chefe olhou para mim e disse: “Mas o senhor sabe o que vai fazer? Então está quase a ser terceiro oficial aqui na Caixa e vai largar isto? Alguém lhe fez mal?”. Nunca ninguém me tinha feito mal, mas larguei mesmo. E foi para sempre.
Quando recebi uma carta a dizer que tinha sido colocado como professor de trabalhos manuais em Sintra ainda vacilei. Fui a casa de uma colega e perguntei-lhe: “o que é que vou fazer com isto isto? Se vou largar o emprego, e não sei se para o ano tenho aulas… “. Ainda estava na dúvida. Mas a minha amiga perguntou-me: “então, olha lá, não gostarias de ser professor?” Ah, pois gostava. “E achas que o teu pai te deixa morrer à fome?” Acho que não, o meu pai é agricultor, não é… “Então olha. Vai à vida”, disse ela. E assim foi.
Dei aulas em Lisboa, em Sintra, no Cacém. Fui com o estágio já feito para Almada, até que me efetivei aqui em Messines. Sim, perto de casa. Ainda fui professor mais de 40 anos, até que me reformei. Depois de me reformar, e já com 76 anos, fui fazer um mestrado nas Belas Artes, outra vez em Pintura mas em novas tecnologias, e completei uma pós-graduação em Arte Sonora.
Tenho feito mais coisas em novas tecnologias do que provavelmente em pintura. Mas já estou cansado das novas tecnologias. Acho que o papel, o lápis, o cheiro estão-me a fazer falta. E essa vontade está a regressar. E aqui estou eu, de regresso à velha casa.
Eu não tenho uma resposta sobre o que é isto de criar. Gosto de me expressar de várias maneiras e tentar experimentar e compreender várias linguagens. Talvez para ver qual é aquela que se adapta melhor à minha pessoa. E ainda não descobri. Ainda bem. Porque assim vou tentando. E é uma maneira de a pessoa não ficar chateada em casa. E então volto aqui ao ateliê, à minha oficina. Embora não faça nada, mas estou sempre pensando em fazer algo de novo.
A criação é um bocado difícil. Eu acho que está tudo feito. Mas, embora esteja tudo feito, o desenho e a pintura são coisas interiores nossas, são muito pessoais. São uma maneira de dizer, de falar e de expressar os nossos sentimentos. Às vezes não sei bem o que é que devo fazer, não me está a sair nada.
Sei que estas guerras malucas que para aí andam estão a mexer comigo. A situação política também. Parece que anda tudo parvo. Acho que vou fazer alguma coisa sobre esse tema. Não percebo como é que 50 anos depois do 25 de abril estão a surgir estes movimentos parvos. Aqui, perto de mim, perto de nós
25 de abril de 1974
O dia 25 de abril foi, sem dúvida, o dia mais feliz da minha vida. Lembro-me bem. Estava no quarto ano das Belas Artes, eu ia fazendo o curso aos bochechos, era trabalhador-estudante. Nesse ano nem estava a trabalhar, estava a ver se conseguia acabar o curso. E tinha uma cadeira de fresco, com o mestre António Lira. Tinha de apresentar o trabalho no dia 25 às 9h00. Eu até tinha pensado em dormir na Amadora, em casa de uma amigo meu, mas à ultima hora, já de noite decidi ir para a minha casa, na Parede, e meti-me num táxi. Lembro-me de passar pelo quartel de ver muitos soldados na rua e de comentar com o motorista do táxi que devia haver grande farra. Nunca imaginamos que fosse uma revolução.
Cheguei a casa, pedi ao Carlos, o rapaz que vivia comigo (e que tinha idade para ser meu filho) para me acordar sem falta. E eu acordei com músicas revolucionárias e perguntei-lhe: “Isso é para me alegrares, para eu ver se me safo do trabalho?” E ele respondeu que não, que era a telefonia que as estava a passar. Eu achei muito estranho, mas não desconfiei de nada. Fui para a estação. Não havia ninguém no comboio. Só havia gente na rua.
Quando chego à porta do Cais do Sodré, vejo uma grande fila de soldados. Eu queria ver se conseguia chegar às Belas Artes. Não conseguia. Ninguém me deixava passar. Andava ali às voltas, com uma uma porção de coisas debaixo do braço, já um bocado chateado, a imaginar que o professor ia dizer: “Ó Daniel quando tem de estar num sítio a determinada hora, arranja sempre enredos”. Pedi a um homem para mãe deixar passar, dizia-lhe que se não me deixasse passar eu ia chumbar o ano. “Deixe-se estar homem que se isto der resultado o senhor não chumba nada”.
Eu continuava sem perceber nada. Até que finalmente encontrei um colega que me disse “não vês que isto é uma revolução?” A gente sabe que as revoluções eram com tiros e o caraças… mas ali não havia nada. É claro que depois percebi o que era. Voltei a casa, deixei os trabalhos e fui para a Revolução. Fui para a rua comemorar. Durante oito dias não apareci em casa.
Não sei onde dormi, não sei onde comi. Sei que foi uma festa. Foi o dia mais feliz minha vida. Nunca me esqueço desse dia. Nem desse primeiro 1º de maio. Ver uma multidão de pessoas em liberdade, pá. Coisa que a gente não sabia o que era, a liberdade, não é? Com uma flor na mão. Velhos, novos, toda a gente. Foi um dia do caraças, para dizer o menos.
Vivi a minha vida sempre com arte e com música. Eu andei no grupo folclórico, a cantar e a dançar, desde pequenino. O meu pai deu-me a conhecer o folclore; e o grupo Almanaque, que eu também integrei, deu-me a conhecer verdadeiramente, a música tradicional portuguesa.
Quando me matriculei no mestrado de novas tecnologias nas Belas Artes mandaram-me escolher um tema para o trabalho. E eu pensei que era uma oportunidade não só para homenagear o grupo Folclórico de Alte, que estava a fazer 75 anos, mas para conseguir transpor para uma tela aqueles sentimentos e a dança e o canto do povo português.
Então escolhi para tema do meu trabalho uma dança típica aqui de Alte, a Marcadinha, e que era uma forma não só de homenagear o grupo, mas também todas as pessoas da aldeia. Porque toda a gente de Alte passava por lá, toda a gente dançou e cantou. Eu baseei-me na fotografia, fiz várias experiências nos programas de novas tecnologias, (o Painters e tal) e comecei a desenvolver o meu tema do mestrado. Entretanto, conheci a Renata Violetta no Tejo Bar, um bar em Alfama onde eu parava muito e onde muitas vezes ia cantar fado.
Ela é polaca e também é pintora, muralista, e também gosta de cantar e de fado. Ficámos bons amigos. Ela agora também vive aqui em Alte. Quando viu os meus trabalhos, começou a dizer que eu podia pôr os meus trabalhos nas paredes. E eu refilei um pouco e disse não. Porque eu fui presidente da Assembleia de freguesia desta terra e lutei muito pelas paredes.
Mas ela andava entusiasmada, e eu acho que quando as pessoas se entusiasmam a gente não deve cortar as asas: Também fui assim como professor. Eu não cortei as asas, mas estava renitente. Ela insistia: “porque tens as tuas obras todas na gaveta, e não as mostras aqui, qual é a razão”? Eu dizia não mostro, não quero, por causa disto, assim, assim. Mas ela é teimosa como eu. É artista. E foi fazendo. E eu fui deixando de fazer. Até que chegámos à altura de apresentar o projeto à junta e à Câmara Municipal. E eu fico espantado quando a câmara consentiu. Se a Câmara consentiu, que posso eu dizer? As obras aí estão, na rua. Para todos verem. Isso também me deixa satisfeito.
Eu gosto muito de Alte. E de estar em Alte. Não consigo cá estar muito tempo, porque sou um bocado vagabundo, não gosto de estar muito tempo no mesmo sítio. Ultimamente, estou mais limitado por causa da idade. Eu gosto de estar aqui no sossego, mas também gosto do barulho…. Preciso de ir até Alfama. Eu gosto de viver em Alfama porque é parecido com isto. A sério, Alfama é uma aldeia em Lisboa.
Como gosto de passar os meus dias? Eu sou um homem que gosta de tanta coisa. A primeira coisa que penso é “o que é que vou fazer hoje?”. Venho para aqui… e depois não faço nada. Eu quero fazer, e vou fazendo coisas. Não gosto de terminar nada. Acho que terminar as coisas é morrer.
Como gosto muito de música, ainda gostava de viver algum tempo para poder fazer qualquer coisa daquilo que pensei, ou daquilo que aprendi naquele curso, ou naquela pós-graduação de arte sonora.
Sabe, aqui esta rua era muito cultural. Aqui se fundou o grupo folclórico. Na casa abaixo era a casa do povo, onde se fazia teatro e se dançava. Na casa mais ao lado, havia um senhor, o primo Alfredo, que tocava excecionalmente bem guitarra. Mais abaixo havia umas senhoras que cantavam e o senhor José Francisco que tocava viola. O meu pai tocava viola aqui, na minha casa. A minha mãe cantava o fado à janela. Nesta rua havia também caldeireiros e os sinos da igreja… queria fazer alguma coisa com isso.
Na pintura também não consegui fazer nada de novo. Eu acho que está tudo feito. Mas há um poeta que me influencia muito. O António Aleixo tem um verso que me inspira: “Artista / que bonito é ser artista, / é ver as coisas mais além / do que alcança a nossa vista”. Por isso, mesmo se a gente não cria nada de novo, se nos dá prazer, então devemos fazê-lo.
.
Mais sobre Alte
Alte, aldeia com vista para a arte
Alte fica no coração da serra do Caldeirão, é terra de alfarrobeiras e de cascatas e é uma aldeia que tem sabido preservar também o seu património edificado. Passear na pequena aldeia de Alte é apreciar casas brancas, beirados típicos, chaminés recortadas, caminhos estreitos, vasos às janelas, buganvílias a trepar paredes e a enfeitar as ruas. Alte é também terra de poetas, de artistas plásticos, de músicos. E de ciclistas.
Albertina Madeira, a centenária diretora do jornal
Com 101 anos, ainda dirige um jornal que envia para os emigrantes da aldeia e empenha-se em fazer licores e bolinhos para ofertar a quem a visita. Sabe que é suspeita, mas garante que Alte é a mais bonita aldeia de Portugal – mesmo que não tenha ganho o concurso da aldeia mais portuguesa, lançado pelo antigo regime. Albertina lembra-se dos preparativos para esse concurso – aliás, lembra-se de quase tudo. Mesmo que já tenha passado quase um século.
Ler Artigo Albertina Madeira, a centenária diretora do jornal
Pedro Pirralho, o Germano das bicicletas
Todos o conhecem por Germano – era o nome do avô, foi o nome que deu à marca das bicicletas que se propôs a recuperar, aproveitando material obsoleto. É o nome do café que abriu na aldeia de Alte, a aldeia onde a mãe nasceu para onde voltou no início da sua adolescência. Em Lisboa, onde cresceu, todos os chamam de Pedro Pirralho. Por baptismo, afinal, é Pedro Domingues. Qualquer que seja o nome, o sonho é apenas um: honrar o nome do avô e trazer sempre mais e mais ciclistas à aldeia e à serra do Algarve. Foi o autor do Estendal da Volta.
Aldegundes Gomes, a artesã da Casa do Esparto
É mais velha das quatro artesãs que continua a mostrar, na Casa do Esparto na aldeia de Sarnadas, como é que se trabalha esta fibra selvagem e se transforma em peças utilitárias e decorativas. Com 89 anos, memórias vívidas e apreciadora de contar histórias, Aldegundes diz que é a trabalhar o esparto que consegue descansar. Descansar nem que seja da lida doméstica ou do trabalho atrás do balcão da velha mercearia que continua de portas abertas no centro da aldeia.
Com o apoio de: