Foi militar em Angola, foi empreendedor nos Estados Unidos. Esteve perto de Providence, em Rhode Island, mais de 50 anos, mas foi na aldeia onde nasceu que escolheu “meter o motor em quinta, e deixá-lo rodar”. Diz que o incêndio de 2017 alterou profundamente a paisagem da região, mas acredita que é possível tentar regenerar a serra. E está empenhado em ajudar. Eis o seu testemunho.
“Aqui na aldeia conseguimos ter uma boa relação com as pessoas”
Sou o Arménio Teixeira, nasci aqui em Freixo da Serra há 77 anos. Mantive-me aqui até aos dezanove anos. Vi os meus pais emigrarem para os Estados Unidos em 1966, mas como eu já tinha mais de 16 anos não pude ir com eles. Acabei por ficar aqui um ano e depois fui para a tropa. Felizmente ou infelizmente, fui parar Angola. Depois quando vim, os meus pais tiveram de me fazer uma carta de chamada para eu poder ir ter com eles aos Estados Unidos. Fui em 1970 e mantive-me lá até 2004.
Quando alguém vai para o estrangeiro acho pensa sempre em voltar ao país onde nasceu, pelo menos. Eu pelo menos sempre pensei nisso. E pela experiência que tive lá, e que foi a de viver numa cidade, o certo é que ao fim daqueles anos todos não me apetecia vir para Portugal para mais uma cidade. Se era para viver numa cidade, vivia lá. Eu queria era vir para aqui.
Nós vivíamos no estado de Rhode Island, perto de Massachussets. De minha casa a Boston deviam ser aí uns quarenta minutos. A Providence eram menos de 10. Fui lá em abril renovar a carta de condução e aquilo tem o talvez o dobro do trânsito que tinha quando eu vim há catorze ou quinze anos. Uma loucura completa!
Acho que a vinda da minha irmã me abriu as portas ao regresso. Ela estudou biologia nos Estados Unidos, em Boston. E depois queria tirar medicina, mas era muito caro. Um curso de medicina custava à volta de quarenta ou cinquenta mil dólares ao ano – e agora custa 100 ou cento e tal mil dólares. Em 1985 ela veio para Portugal, tirar medicina em Coimbra. Quando acabou o curso tirou a especialidade, sempre com a ideia de voltar outra vez para os Estados Unidos. Mas acabou por desistir. Disse que não tinha coragem para sair e deixar as pessoas que a tinham formado e que tinham investido na sua formação.
Portanto, na prática, ela foi a primeira a regressar. E nos vínhamos cá vê-la. Desde que ela veio para cá, passamos a vir todos os anos. Vinha o meu pai, a minha mãe e vinha eu. E ficávamos aqui uns bons dois meses… Eu podia ficar tanto tempo, porque já não trabalhava em fábricas, nem trabalhava para outros.
Eu cheguei a trabalhar numa fábrica de cabos e fios elétricos, mas quando pude, eu e o meu irmão investimos no negócio das bebidas. Tivemos uma Liquor Store durante 35 anos. Esse negócio já me dava a possibilidade de vir aqui no verão. O meu irmão ficava lá, com a ajuda de um empregado ou dois. E eu gastava os meus meses de julho e agosto a passar aqui uns tempos. Portanto mantive sempre muito contacto com Freixo da Serra.
Eu sabia que ninguém me ia prender, que podia vir para Portugal quando quisesse, não era casado, a minha família eram os irmãos e os sobrinhos. Comecei a construir aqui uma casa há 25 anos. E a Fátima, ao decidir ficar em Coimbra contribuiu muito para eu decidir vir mesmo.
Quando vim o meu objetivo era apenas descansar, desfrutar deste clima, e entreter-me por aqui com uma vinha que o meu pai tinha deixado. Na altura, Freixo da Serra tinha uma paisagem espetacular. Antes dos incêndios isto era era lindo. E eu queria vir para aqui cultivar um bocadito de batatas e pimentos, tratar da vinha, fazer vinho, inventar umas coisas e andar por aí com os amigos. Ao fim de uma vida de trabalho era a vida que eu ambicionava. Era relaxar, estar com os amigos, fazer alguma coisa para me entreter e ter um cachorro. Eu sempre adorei cachorros e lá nos Estados Unidos não tinha tempo nem tinha condições para o ter.
Aqui na aldeia conseguimos ter uma boa relação com as pessoas. E consegue-se confiar – que é outra coisa que na cidade não se pode fazer. Eu tinha lá um vizinho, o que morava no segundo andar da minha casa, e nem sabia onde é que ele trabalhava. Aqui toda a gente sabe quem é quem. Portanto pode-se confiar. Ou pronto, se não se confia, mas nós sabemos quem é a pessoa em que não se pode confiar. Jogamos pelo seguro: ou temos uma relação e confiamos abertamente nela ou tem-se aquela amizade de manutenção, para a coisa não deteriorar num ambiente pequeno.
O pior que aqui aconteceu foi mesmo o incêndio de 2017. No fim do incêndio achava que isto não tinha mais condições para se viver aqui. Aquele dia foi terrível. O incêndio veio de lá de cima, varreu tudo. Em menos de meia hora passou aqui pelo centro da aldeia, levou tudo até Vila Cortês. Aqui na aldeia ainda tivemos quatro ou cinco casas queimadas, incluindo a capela no cemitério.
Quando ouvi falar no incêndio de Pedrógão, uns meses antes, questionava-me porque é que as pessoas ficam e acabam por morrer num incêndio. Como e porquê? Depois percebi.
A verdade é que eu já tinha andado aqui a apagar incêndios anos antes, mas nunca nada com esta violência… Nunca pensei assistir a uma coisa daquelas. Não há ninguém, não há corporação, não há aviação não há nada que pare um incêndio daqueles.
E esta paisagem era incrível antes dos incêndios. Eu dizia que isto era a Suíça portuguesa. Pelos desfiladeiros que tinha, pelo preenchimento de árvores, pela variedade de vegetação – era o pinho, o castanho, era o freixieiro… Agora reduziu-se praticamente a giestas. Quem conhecia esta parte da serra e olhar para ela agora, uma pessoa fica assim um bocadinho… triste.
Antigamente havia a floresta e havia os espaços de cultivação de centeio. Também havia cá mais gente e era o trabalho dessas pessoas que fazia com que isto fosse bonito. Lá em cima, nas Regadas, que era um anexo aqui de Freixo, havia cerca de cem pessoas. Agora não mora lá uma única. E depois havia outras quintas, havia vários pastores (quase toda a gente que vivia nas quintas era pastor) que mantinham os terrenos limpos, plantavam, cuidavam. Os caminhos estavam limpos porque o gado passava … E agora não. Agora, ao fim do ano ou dois se as coisas não forem mexidas, se não forem tocadas, é impossível sair de um caminho para qualquer zona. O terreno fica irreconhecível. E eu achava que depois do incêndio nem podíamos ficar a viver aqui, mas lá mudei de ideias. O que é preciso é trabalhar para tentar recuperar o que é possível. Mas não é fácil.
A seguir a esse incêndio de 2017 organizou-se um grupo, mas que durou pouco tempo. Ainda se tentou arranjar fundos, veio algum dinheiro da Suíça de um jantar que fizeram lá. Mas foi daquelas reuniões de cerveja. E isto é o que eu digo: uma coisa é uma pessoa reunir-se com cerveja e vinho tinto; outra coisa é a fazer uma reunião sem nada. Era tudo muito bonito, regenerar o Freixo e não sei quê mas depois é preciso muito trabalho. E isso é uma coisa que eu admiro na Corinna. Ela é incansável. Se não fosse ela não havia hipótese de nada se organizar.
Porque as aldeias também têm este problema. Para se passar da teoria à prática, ou há gente jovem e que percebe alguma coisa ou é uma tragédia. Mas levares um grupo de quinze ou vinte pessoas e ninguém percebe nada do que é que vai fazer com uma roçadora ou com um motosserra é um bocado complicado.
Eu juntei-me à Veredas da Estrela porque quero colaborar. Mas ao princípio disse à Corinna que eu comparava esta tarefa à luta que o Dom Quixote travou aos moinhos de vento. É uma luta praticamente inglória. Há trinta anos nesta zona a única coisa que tinha que se fazer era meter as sementes na terra, e regá-las a primeira vez ou a segunda. Agora não. Agora se não se cuidarem pelo menos dois ou três anos, regá-las, mantê-las limpas à volta, elas não consegue escapar, acabam por secar.
A Corinna e o Nick também conheceram esta serra antes do incêndio, percebo a vontade deles em dizer “temos que fazer alguma coisa por isso”. Estamos a tentar fazer. Em Folgosinho há baldios, pode-se plantar onde quiser. Mas aqui no Freixo não temos, portanto temos que pedir ordem. E depois há sempre o problema da manutenção, os terrenos têm de ser limpos para as árvores crescerem.
É isso que andamos a fazer na Veredas da Estrela. Andámos a limpar caminhos e agora comprou-se um terreno barato de doze hectares, na zona de Figueiró, para tentar plantar castanheiros e carvalhos. E vamos tentar falar com algum pessoal que tenha terrenos fora das aldeias, ou que fiquem muito próximo das aldeias, para os manterem pelo menos minimamente limpos.
O melhor de viver numa aldeia como a nossa é a qualidade de vida que aqui temos. Temos o sossego, temos a comida biológica… Eu, por exemplo, tenho os figos, azeitonas, batatas, tomates, pimentos, todos esses legumes, tudo em modo biológico. Até o azeite. O pior é haver mesmo pouca gente.
Vivo com o meu irmão, que também costumava ir aos Estados Unidos – que ia e vinha e agora está aí – e aos fins de semana vivo também com a minha irmã, que vem de Coimbra. E vivo com uma mulher de 107 anos, que é a minha mãe. Ela gostava muito dos Estados Unidos, mas veio para cá porque eu também vim. Ela podia ter ficado lá com outras duas filhas, mas decidiu que vir para Freixo da Serra era uma melhor opção.
Às vezes tenho saudades de algumas coisas nos Estados Unidos. Da família que lá está, claro; e de um bom ginásio e de umas lagostas, que lá são baratas e eram boas. E tenho saudades de ir passar um fim de semana a Nova Iorque, por exemplo. Lá íamos a Nova Iorque como aqui vamos a Lisboa. Sempre gostei de dar os meus passeios. Mas agora, a única coisa que eu agora quero fazer, como se diz aqui, é meter o motor em quinta e deixá-lo rolar.
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Trabalha no mundo das artes, como figurinista para várias companhias de teatro. Mas sempre teve uma pancada pelo Freixo da Serra. Tanto que decidiu estudar turismo e gestão cultural para conseguir investigar e inventariar todas as tradições e património da aldeia onde nasceu a avó. Vendeu a casa que tinha em Lisboa para poder comprar quase um bairro na aldeia do Freixo, e ter finalmente um casa com quintal.
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