Trabalha no mundo das artes, como figurinista para várias companhias de teatro. Mas sempre teve uma “pancada pelo Freixo da Serra”. Tanto que decidiu estudar turismo e gestão cultural para conseguir investigar e inventariar todas as tradições e património da aldeia onde nasceu a avó. Vendeu a casa que tinha em Lisboa para poder comprar “quase um bairro” na aldeia do Freixo, e ter finalmente um casa com quintal. Eis o seu testemunho.
“Uma das minhas pancadas é dizer a toda a gente que o Freixo da Serra existe”
Chamo-me Rafaela, cresci nos anos setenta em Lisboa, e lembro-me de que todos os meus amigos tinham uma “terra” e isso deixava-me muito frustrada. Eu pensava que era a única que não tinha terra porque os meus pais, na realidade, eram de Lisboa, não eram daqui. Mas os meus avós eram daqui.
Depois eles casaram e tiveram a minha mãe. E como aqui não havia grandes perspetivas de futuro, e o meu avô queria muito que a minha mãe estudasse, foi para Lisboa. Quando a minha mãe tinha dois ou três anos, ela e a minha avó foram ter com ele. Por isso, a minha mãe é de Lisboa. E o meu pai, então, é que não tem mesmo nada a ver com isto, é de Lisboa mesmo.
Uma das minhas pancadas, desde sempre, é dizer a toda a gente que o Freixo da Serra existe. Quando eu tinha cinco anos tive uma peritonite muito má, estive três meses no hospital, parece que estive um mês quase a morrer, toda a gente me fala disso. Quando finalmente saí do hospital, o médico disse que eu precisava dos ares do campo. Então vim para cá com a minha avó. Estivemos aqui um mês e acho que é daí que me vem esta pancada. Porque mais ninguém na minha família tem. Só eu.
A minha avó nem sequer gostava muito disto. Já eu acho que fui mesmo aquela cena de criancinha de apartamento, de ir para a escola de carro e mais não sei quê. E que depois chega aqui e tem esta liberdade… Lembro-me de estar na rua à noite com a minha avó. De a minha avó estar a falar com as outras mulheres nos degraus dos balcões, de eu estar brincar com os putos na rua. Acho que fiquei apanhada por isto para o resto da vida.
Mas não vinha sempre para cá. A dada altura passei a vir raramente. Os meus avós eram pessoas daquele tempo – e a partir de uma certa altura isso começou a tornar-se muito problemático. Porque não podia falar com ninguém, porque uma menina não podia estar com os rapazes, não podia usar minissaias, não podia não sei o quê … Tudo era um escândalo. Portanto, eu deixei de vir. Durante anos.
Entretanto os meus avós morreram. E em 2011, na altura da crise financeira, eu dou por mim, a dada altura, a ter cada vez mais dificuldade em sobreviver, em pagar as contas. Como não tinha um salário fixo, não tinha bem a noção porque é que o dinheiro estava a desaparecer tão depressa. E descobri que estava a ganhar tipo ordenado mínimo, estava em Lisboa a pagar uma casa. Então pensei: se é para ganhar o ordenado mínimo, vou viver para onde eu quero. E fiz as malas e vim-me embora. Vim para o Freixo. Pronto.
Aquele período da crise foi um horror… Para os artistas foi mesmo horrendo, horrendo, com aquela conversa do vai trabalhar, e coisas do género. Pensei que aquilo já não me interessava. Vim para aqui, arranjei um emprego no call center da EDP, em Seia. E na verdade não é tão mau como as pessoas dizem, até era era uma coisa simpática. Mas não queria trabalhar ali para sempre. Mesmo no edifício ao lado era a Escola Superior de Turismo e Hotelaria, que pertence ao Politécnico da Guarda. E eu pensei: já que aqui estou, vou fazer um curso.
Inscrevi-me em gestão hoteleira. Odiei. Depois mudei para turismo e lazer, que era o curso que toda a gente dizia que não tinha saída nenhuma. E realmente não tem. Aquilo era tudo muito básico. Convenci-me que me devia candidatar a um mestrado. Fui parar a Lisboa outra vez. A primeira tentativa de fazer um mestrado foi na Universidade Nova. Era em práticas culturais para municípios. Mas não o concluí, porque entretanto comecei a trabalhar cada vez mais em teatro e deixei de ter tempo. Mas fiquei sempre fixada no meu objetivo de me mudar para aqui. Acabei por me candidatar a outro mestrado – desta vez gestão cultural no ISCTE e nesse fiz a parte curricular toda até ao fim. Ou seja, tenho pós-graduação, porque a parte da tese é para esquecer.
Certo é que consegui fazer todo o mestrado sobre o Freixo. Só houve uma única cadeira que eu não consegui fazer sobre o Freixo – que era Gestão. Até a cadeira de história da arte consegui fazer com o estudo de um tema do Freixo: fiz sobre os tapetes de flores que as pessoas fazem no Corpo de Deus.
Aguentei-me em Lisboa enquanto estava a fazer o mestrado, mas quando acabei a parte curricular pensei “é agora que vou embora”. Pus a casa à venda em Lisboa, e vendeu-se muita depressa, de uma semana para a outra. E gastei aqui o dinheiro. A arranjar a casa que era da minha avó e a ir comprando e arranjando estes espaços à volta, para ter a certeza de que conseguiria aqui ter a casa com jardim. Comprei estas casinhas aqui pegadas, parece que comprei “um bairro”. Ainda andei uns anos a ir trabalhar a Lisboa e a voltar para aqui sempre que podia. Adoro isto! Depois veio a pandemia e ficou tudo mais complexo outra vez. Parecia que se estava a repetir o filme de 2011. Por causa do trabalho que tive no call center em Seia, tive direito a inscrever-me no fundo de desemprego.
Fiz uma formação online em Empreendedorismo, que no final nos dava a a hipótese de ter um estágio. E convenci a Câmara de Gouveia a deixar-me ir para lá fazer o levantamento dos sítios de interesse cultural do concelho. Andei durante uns meses a fazer isso, a percorrer todas as aldeias, a ver tudo a registar num mapa.
É essas coisas que eu gosto de fazer. Foi no contexto do mestrado, por exemplo, que me decidi finalmente a ir ver o que era o Museu do Freixo. Sempre tinha visto a placa, e nunca tinha lá entrado. Estava sempre fechado. Quando arranjei a chave e abri aquela porta é que vi que era uma coisa extraordinária! Porque é uma espécie de casa da memória, é uma casa do forno cheia de objetos doados por pessoas do Freixo e arredores. Pensei que era um grande desperdício aquela porta estar sempre fechada, e preparei tudo para abrir o museu, pela primeira vez, em agosto de 2018.
O museu estava fechado há 14 anos. Quando reabriu foi muito giro, toda a gente foi lá. Foi um reviver do espírito de comunidade. Eu levava todos os dias um caderninho e ia apontando tudo o que as pessoas diziam. Fiquei a saber montes de coisas. Para já fiquei a saber o que eram as coisas que lá estavam expostas – a maior parte delas não fazia ideia o que era, nem para que é que servia. E depois fiquei a perceber o que havia na aldeia. E no Freixo havia tudo: costureira, sapateiro, pedreiros, carpinteiros, tudo. Uma aldeia viva, muito diferente daquilo que eu conheci. E isso foi muito engraçado.
Quis mesmo apostar no Freixo. Aqui há pouca gente, há uma população envelhecida, mas que por ser envelhecida tem a mais valia de conhecer um mundo que já não existe. A memória tem uma utilidade, contextualiza o espaço. E portanto contar uma história sobre um sítio é uma coisa muito gira. Há gente para contar as histórias.
Entretanto, acabou a pandemia começou a haver muito trabalho em teatro e lá fui eu outra vez para Lisboa trabalhar. Mas entretanto já lá não tinha casa, cansei-me de andar cá e lá e pensei então agora vou arranjar trabalho mesmo, mesmo, mesmo à séria. Aqui no Freixo. Estavam a construir o projeto New Life, candidatei-me a um lugar, consegui e estava completamente convencida que ia ficar lá para sempre. “Agora fico lá até à reforma. Vai correr tudo bem. É giro”, pensava eu. Mas não era. Também era um emprego, com horários e tal.
E nunca deixei de fazer figurinos em Lisboa. Tinha uma assistente maravilhosa, que me permitia que ela estivesse lá e eu continuasse aqui a fazer umas coisas. Começaram a aparecer cada vez mais trabalhos e entretanto a minha assistente decidiu que tinha que arranjar um emprego à séria, e eu já tinha aceite uma quantidade ridícula de trabalho para este ano. Que tive de fazer. Mas que está a acabar. A seguir vou voltar a estar outra vez aqui, a tempo inteiro.
Não sei a fazer o quê, mas logo vejo.
Na verdade tive sempre imensa sorte. Fui sempre sendo salva por coisas completamente fora que iam aparecendo. Eu fui uma adolescente problemática. Boa aluna, mas uma desgraça total. Estava em artes, mas não consegui fazer geometria. Aquilo para mim é impossível, até hoje. Percebi que não conseguiria nunca entrar na universidade.
A minha mãe falou-me da escola de teatro, que tinha um curso de cenografia – e eu nunca tinha ido ao teatro na vida. Perguntaram-me se queria ir para o curso de atores ou para cenografia. Eu disse, que queria ir para o mais fácil. Disseram que atores devia ser mais fácil porque cenografia é preciso saber desenhar. Foi aí que eu pensei que era para cenografia que eu devia ir. Afinal, eu sabia desenhar. Fiz as provas de acesso, entrei e de repente deparei-me com um mundo de adultos que eram aquilo que eu queria ser quando fosse grande – e que toda a gente dizia que era impossível. Aquilo no fundo salvou-me a vida. Foi isso. Antes disso, eu acho que não era nada. Estava completamente perdida. Depois disso, e durante muito tempo – até 2011 – fui essencialmente figurinista.
Lembro-me na primeira vez que fiz figurinos, e de estar cheia de medo no dia da estreia. Estava fechada na casa de banho, mas depois ouvi as palmas. Senti uma cena indescritível. Consegue ser avassalador. Na verdade, mesmo depois de 2011, nunca deixei de trabalhar em figurinos. Até quando trabalhava no call center, arranjava sempre tempo para criar.
Para já, consegui concretizar meu o sonho, que era viver aqui. Fiz as obras, o mais básico possível., mas agora consigo dizer que cumpri o sonho, de uma ligação entre o interior, a casa da minha avó, e o exterior, que é esta paisagem.
Em alturas muito horríveis e de muito stress, ou em que estava muito cansada e às vezes deprimida em Lisboa, eu vinha até aqui ao Freixo. E há uma curva na estrada para Vila Cortês em que dá para meter o carro. De lá olha-se para o vale todo. E eu chegava lá, saía do carro olhava para a paisagem e dizia “pronto, já passou. Está tudo bem”. Acho que esta paisagem é o espelho da minha alma. Olho para isto e isto faz-me feliz.
De resto, viver numa aldeia com tão pouca gente só tem coisas boas. Para começar uma pessoa está muito mais acompanhada, sempre. A aldeia tem pouquíssima gente mas mesmo assim a minha vida social aqui é incomparavelmente mais ativa do que em Lisboa. Em Lisboa eu entro na porta do prédio, subo no elevador, entro no apartamento, fecho a porta e acabou. Não há mundo exterior. Aqui há sempre o mundo exterior, e o mundo exterior está mesmo aqui ao meu lado e bate-me à janela se for preciso. Portanto aqui uma pessoa é puxada para fora.
Acho mesmo que viver aqui só tem coisas boas. A única coisa má é não haver restaurantes indianos. Isso é verdadeiramente trágico. É verdade! (Risos) Isso e não haver um Multibanco – só há na Carrapichana, ou em Sampaio, que é longíssimo. Portanto uma pessoa tem que andar sempre a pensar em levantar dinheiro, em ter cash na carteira. E isso é uma coisa que eu não ainda não me habituei. Ando sempre a cravar cervejas no café. Para já não me queixo de mais nada.
Eu pessoalmente até posso ter um dia mau. Mas se estiver aqui no Freixo ele deve ser um bocadinho menos mau. Gosto de estar aqui e de sentir as estações do ano. Aqui são à seria. No inverno quando fica de noite, meto-me na cama e farto-me de dormir.
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