Corinna é programadora cultural, investigadora e facilitadora. Mas também é escritora, editora e tradutora. É alemã e precisa de pouco mais do que uma boa ligação à internet para continuar a trabalhar para o seu país natal. Mas sente vontade, e necessidade, de criar impacto na terra onde escolheu viver. É a presidente da Veredas da Estrela, e uma força de trabalho e de organização inspiradora para os outros membros da comunidade. Eis o seu testemunho.
“Houve um clique: temos de ser nós a fazer alguma coisa”
Chamo-me Corinna Lawrenz. Nasci no sul da Alemanha. Mas sou de uma família que não é de lá de facto , são provenientes de outras zonas. Havia muitas deslocações relacionadas com a segunda guerra. Portanto acho que nunca tive raízes muito fortes no sítio onde nasci. Fui estudar para Düsseldorf, onde tirei uma licenciatura em Estudos de Cultura. Quis continuar os estudos e fazer um mestrado fora da Alemanha.
O plano era ficar fora dois anos e voltar para a Alemanha. Estava já com o NiK e ponderamos vários sítios, até encontrar um em que batesse tudo certo. Lisboa foi desde logo uma possibilidade. E acabou por ser a escolhida, porque foi a primeira cidade onde percebemos que tudo funcionava e havia os cursos que queríamos. E nós já tínhamos visitado a cidade e tínhamos gostado.
Corinna Lawrenz
Não basta ter o meu computador e o meu espaço de trabalho aqui. É importante também fazer algo que tenha algum impacto neste território.
Como eu e o Nik não terminamos o curso na mesma altura, comecei a andar à procura de trabalho em Lisboa, no meio da crise financeira, que entretanto tinha estourado. Tive muita sorte e acabei por ficar no Instituto Alemão, o Goethe-Institut , na parte da programação cultural – com foco em cinema e produção de eventos.
No Goethe a equipa é muito pequenina, todos fazem um bocadinho de tudo. Eu gostei muito. Nos cinco anos em que estive a fazer programação cultural conseguimos fazer uma transição de uma programação muito focado em pequenos ciclos de cinema – como o festival KINO, que é o festival de cinema alemão – para uma programação que contava com outras vertentes, como a questão da sustentabilidade e das alterações climáticas. Esses temas passaram a ser muito importantes. Comecei também a trabalhar cada vez mais em processos participativos fora da área do cinema e em questões pós-coloniais. E tudo isso se interliga bastante.
Entretanto, a cidade começou a transformar-se muito. A vida de bairro, que nós todos achávamos que era maravilhosa, deixou de existir. Foi desaparecendo aos poucos. Ainda há vestígios, mas é cada vez mais difícil de encontrar. Houve um momento em que um amigo nosso disse “aos quarenta anos quero estar fora deste sítio, já não quero estar em Lisboa”. No início achávamos que aquilo era uma ideia que ia passar. Mas às tantas já éramos nós os quatro – dois casais – a ir pelo país inteiro à procura de um sítio para morar.
Andamos muito na região Norte, em Trás-os-Montes, vimos muitos sítios na Serra do Açor e na Serra da Lousã. Mas foi aqui, em Freixo da Serra, que achamos que esta zona, esta região, tinha qualquer coisa diferente dos outros sítios todos. Nós vínhamos à procura de uma quinta nem muito grande, nem muito pequenina. Na altura já trazíamos a ideia de produzir açafrão, algo que tínhamos experimentado já em Lisboa, e também de uma casa para restaurar. Os nossos amigos encontraram uma casa em Fornos de Algodres. E nós encontramos uma quinta, sem casa, em Figueiró da Serra. Estávamos em 2017, ainda antes do primeiro grande incêndio.
O terreno tinha uma vista maravilhosa, sobre o vale do Mondego e para o vale de Folgosinho que, na altura, ainda era um vale maravilhosamente verde. Tinha castanheiros e carvalhos antigos. Isso atraiu-nos muito.
Esta paisagem era muito diferente dos outros sítios que tínhamos visto. Portugal tem uma floresta muito degradada, mas este sítio ainda era um bocadinho diferente, apesar de já ter também as cicatrizes de outros eventos. Nós ainda tivemos essa visão, a ideia da paisagem que aqui existia. E foi um bocadinho isso que que nos atraiu para cá.
Nós vimos a quinta em 2017. Mas só a compramos mesmo em 2018, já depois do incêndio. Nem sei dizer muito bem porque decidimos continuar cá, depois de tudo o que aconteceu. Tivemos sorte, porque parte da quinta sobreviveu, e tivemos a ajuda dos vizinhos – que na altura nem sabíamos quem eram, não conhecíamos essas pessoas.
No dia do incêndio estávamos em Mafra. Era o meu aniversário, tínhamos ido à praia. Já nem sei quantos incêndios é que vimos no caminho desde a praia de Mafra até Lisboa. Quando chegámos a casa e ligámos a televisão, vimos que isto estava tudo a arder. Dois ou três dias mais tarde ligamos para a presidente da Junta. Ela disse “a vossa quinta está salva, mas a aldeia foi muito afetada”. Nós na altura queríamos perceber se podíamos fazer alguma coisa mas ainda não estávamos cá… Foi uma fase assim muito difícil logo no início. Mas acho que já houve qualquer coisa que nos fez continuar neste caminho.
Percebemos desde o início que estas aldeias são diferentes. Há aqui pessoas que ainda cuidam dos terrenos, que ainda se preocupam, que ainda querem fazer qualquer coisa. Muitas vezes quando se fala nas pessoas que vêm para o interior temos o discurso como se isso fosse um ato heróico… Eu acho que é bem mais importante que haja pessoas que já estejam nesses sítios, que tenham optado por fazer as vidas delas nesses sítios. Porque só assim quem vem pode encontrar uma comunidade viva, aldeias vivas.
Quando andas pelo país fora encontras aldeias que estão mortas, à volta das aldeias já não há nada. Aqui não é o caso. A comunidade ainda está ativa, viva. Na verdade a comunidade, os vizinhos, ajudaram a impedir que o problema fosse maior, que o fogo chegasse à aldeia. Como aquilo foi em todo o lado ao mesmo tempo, foi muito rápido, não havia bombeiros, foi a própria população que se defendeu.
Viemos em 2018, alugamos uma casa mesmo no meio da aldeia de Figueiró e começamos a regenerar a nossa quinta. Na verdade, eu vim por fases. Houve uma altura em que a linha da Beira Alta era a minha terceira casa – andava sempre entre Figueiró e Lisboa, ia e vinha todas as semanas, continuava a trabalhar no Instituto Alemão.
Vim para cá definitivamente em março de 2020, com o estalar na pandemia. Trouxe o meu trabalho para Figueiró. Comecei a trabalhar mais na parte da edição online e menos na parte da programação de eventos. Ainda fui algumas vezes a Lisboa, mas passei sempre mais tempo aqui, aproveitando o facto de aqui termos todas as condições. Na realidade, as condições necessárias são uma boa ligação de fibra. Permite-me continuar a trabalhar para a Alemanha, de forma digital, por exemplo.
No início não tínhamos essa boa ligação, e mesmo assim dava para trabalhar. Agora é muito mais fácil. Entretanto, fui-me apercebendo que estava a criar raízes aqui e que começava a deixar de fazer sentido trabalhar para uma programação que é maioritariamente feita para uma grande cidade e para um contexto completamente diferente.
Percebi que há aqui muitos temas a abordar e muitas questões que se poderia trabalhar. E essa vontade estava sempre lá e portanto acho que foi muito importante dar esse salto: não basta ter o meu computador e o meu espaço de trabalho aqui. É importante também fazer algo que tenha algum impacto neste território. O projeto “À Escuta: Casa Floresta”, foi muito importante para isso.
O projeto “À Escuta” foi criado pelos músicos Joana Sá e Luís Martins, na pequena aldeia das Frádigas, no sul da serra, em Seia. Eu entrei em 2021 a fazer coordenação de produção. Nessa altura o projeto estava focado nessa aldeia e em todas as histórias e memórias e vivências das pessoas com o território. No fim desse primeiro projeto, começamos a desenhar um outro, o “À Escuta: Casa Floresta” já com a ideia de tentar cruzar perspetivas de dois lados da serra. Porque às vezes olha-se para o território da Serra da Estrela como se ele fosse homogéneo, mas não é.
Nós queríamos trabalhar a questão da floresta a partir de dois sítios com experiências e vivências completamente distintas, com paisagens distintas e com histórias diferentes. O projeto começou em junho de 2022. Quando começamos a fazer recolhas, e em todas as conversas que tivemos e nas várias atividades, já se sentia que havia essa vontade de fazer algo. Mas esse algo ainda não era concreto.
Tudo começou depois do segundo incêndio. Eu acho que, apesar de não ter sido um momento tão traumático, porque o incêndio de 2017 foi de noite, a aldeia ficou sem luz, sem comunicação, no do ano passado percebemos sobretudo que tínhamos de ser nós a fazer alguma coisa. Desta vez quase se conseguia adivinhar quando é que o incêndio cá chegava – e, quando chegou, não havia bombeiros na mesma.
Acho que aí se fez um clique, em várias pessoas ao mesmo tempo: a sensação que temos que ser nós a fazer alguma coisa. Não podemos ficar aqui parados. Houve várias conversas com várias pessoas. E combinamos um primeiro encontro no dia 19 de agosto, poucos dias depois do incêndio. Estivemos reunidos no pátio da Junta de Freguesia em Figueiró, pessoas de Freixo e pessoas de Figueiró, pessoas que vieram de fora, pessoas que sempre cá viveram. Já nessa altura foi um encontro intergeracional e intercultural. E esse encontro resultou numa lista muito longa de ideias, de problemas, de questões. Formámos logo naquele primeiro encontro um grupo de trabalho, que depois se dividiu em vários, para serem trabalhados vários assuntos de forma célere e eficaz.
Não sei qual é que foi exatamente o momento em que voltamos a reunir enquanto comunidade, e a apresentar os resultados dos grupos de trabalho. Foi assim que surgiram os estatutos da associação, e que começamos a trabalhar. O processo formal demorou muito tempo, levou quase meio ano. Mas na realidade já fizemos muita coisa. E acho que isto aconteceu assim mesmo por necessidade, por um impulso muito forte de querer fazer diferente.
Há ainda outra coisa que, para mim pelo menos, é muito importante. Esta questão de, desde o início, ser um projeto da comunidade e um projeto falado, discutido e desenvolvido em comunidade. Também nisso acho que o nosso caso é relativamente único. Primeiro, é uma comunidade diversa. Temos pessoas de todos os lados, temos pessoas de todas as idades e pessoas com talentos extremamente diversos também. Eu acho que essa mistura de pessoas, por si só, já vale a pena. Enquanto freguesia que cresceu nos últimos censos, o que é uma coisa extremamente rara nestes territórios, acho que temos também aqui uma oportunidade.
Os passinhos que já se foram dando estão a ter resultados. E isso deve dar aquela sensação de que estamos no caminho certo. Dá força para continuar. Obviamente sabemos que não podemos mudar o mundo. Se olharmos só para o macro, para o global, podemos desistir muito facilmente. Se olharmos para o nosso espaço micro e para aquilo que é possível fazer, acho que dá muito mais força e vontade.
Corinna Lawrenz
Quando andas pelo país fora encontras aldeias que estão mortas, à volta das aldeias já não há nada. Aqui não é o caso. A comunidade ainda está ativa, viva. Isso foi algo que nos chamou para cá.
De resto, temos muitos planos para a nossa quinta. Vamos continuar com o açafrão, porque sabemos que se adapta bem a verões secos e quentes e gosta de invernos húmidos e frios – portanto esta é o sítio ideal para isso. Acho que nunca foi produzido nesta zona mesmo, mas na Covilhã há receitas tradicionais com açafrão portanto deve ter havido alguma coisa. E como é uma planta que durante o verão está por debaixo da terra, é uma planta muito adaptada a uma zona com incêndios frequentes…
Outra coisa em que queremos apostar é na vinha. No início não tencionávamos fazer nada com ela, mas agora tornou-se uma pequena paixão, além de também ser um ótimo corta-fogo. Aprendi a fazer vinho, e gosto muito. Dá-nos trabalho o ano todo, mas sabermos o que está no vinho que bebemos é importante. E temos sempre ajuda dos vizinhos, adoro o momento das vindimas.
Por fim, tanto a nível pessoal, como a nível da Veredas da Estrela, queremos muito perceber a questão dos cereais. Para além da regeneração da área florestal da nossa quinta, queremos resgatar as variedades antigas de cereais, como o centeio e a cevada. Soubemos que antigamente havia cá cevada porque há várias pessoas que falam, mas ainda não conseguimos identificar uma variedade daqui. Portanto vamos fazer um pequeno teste com uma variedade de montanha da Áustria – a ver se corre bem aqui.
Para mim, um dia em que tudo isto se encaixa bem é um dia bom. Um dia em que consigo fazer o trabalho de escritório (que continua a ser o meu trabalho principal) de uma forma produtiva e me permita sair cedo para ainda conseguir ir fazer algum trabalho na quinta. Terminar lá o dia a assistir ao pôr do sol debaixo do nosso sobreiro – que tem mais de cem anos e é uma árvore maravilhosa! E se calhar depois ir ao café da aldeia, beber uma cervejinha com os amigos e cozinhar algo em casa com os produtos daqui. Esse é um dia bom.
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