A visão do vale de Figueiró da Serra trouxe amor à primeira vista ao jovem casal que, até então, trabalhava numa quinta de permacultura no Algarve. Foi em 2015, quando havia mais gente no vale. Veio o incêndio, e foram todos embora. Gonçalo e Rita ficaram, com uma bebé nos braços. Veio mais um incêndio e um par de gémeos. Gonçalo e Rita aprenderam o lugar dos homens na natureza – e querem ter a certeza que os filhos também vão aprender. Eis o seu testemunho.
“Se compreendermos como é que a Natureza se comporta também percebemos como é que nos devemos comportar no meio dela”
Sou o Gonçalo Teixeira, nasci em Lisboa há 42 anos, e cresci em Carcavelos, portanto em Cascais. Quando fui explorando mais a vida conheci os surfistas em Carcavelos, que me mostraram outras maneiras de viver. Depois também tive a sorte de conhecer um agricultor que fazia agricultura biológica em Sintra, e comecei a explorar esse tema. Depois claro, veio o clássico. A minha avó costumava-me perguntar: queres ser engenheiro ou queres ser doutor? Eu quis ser agricultor, e fui estudar agronomia para o ISA (Instituto Superior de Agronomia).
Fiz mestrado em agricultura biológica e trabalhei algum tempo em investigação de campo. Consegui depois começar a trabalhar em produção, passei por várias quintas na zona oeste. Foi nessa altura que conheci a Rita.
Entretanto fomos convidados a ir trabalhar para o Vale da Lama, uma quinta no Algarve onde os donos faziam mais do que agricultura biológica, faziam permacultura. Estivemos lá a trabalhar três anos. Eu a gerir a quinta e a Rita a trabalhar nos processados, portanto a acrescentar valor às coisas que eu produzia e às coisas que eu colhia da quinta, como alfarrobeiras, amendoeiras, romãzeiras.
Durante esses três anos aprendemos muita coisa, com professores e técnicos que vieram de fora. E que nos alargaram os horizontes, mesmo dentro da permacultura. Foi nessa altura que fiquei a conhecer melhor a agricultura regenerativa e fiquei muito interessado nessa área. Comecei a explorar mais a utilização dos animais para fechar os ciclos na produção vegetal. Essa é uma coisa que ainda estou a explorar, a aprender e a tentar fazer aqui na nossa quinta.
Viemos parar a Figueiró da Serra há oito anos. Estávamos de férias, tínhamos ido à Galiza e ao Gerês visitar uns amigos. Já há muitos anos que no verão tirava duas semanas de férias e vinha para estas zonas do norte, tentar encontrar amigos e projetos onde talvez nos conseguíssemos encaixar. Já só tínhamos mais um ou dois dias de férias e viemos aqui visitar um casal amigo que tinham sido estagiários lá no Vale da Lama.
Chegámos cá à noite e no dia a seguir de manhã, quando vimos o vale e quando começámos a conhecer as pessoas decidimos que era aqui. Achámos que estava na altura de fazer o nosso projeto, estávamos confiantes e já com alguma experiência. Telefonei para o dono da quinta no Vale da Lama e disse “preciso de mais uma semana de férias”, ele disse tudo bem.
Quando voltamos para o Vale da Lama falei com o dono e disse-lhe que ia fazer só mais um mês ou dois, que queríamos vir embora, fazer o nosso projeto. Viemos para cá, logo a seguir ao Natal. Ficámos em quintas de alguns amigos e foi por sorte descobrimos esta quinta. Fiz um papelinho com a descrição do que é que nós queríamos e quem é que nós éramos para pôr nos cafés. E no primeiro café onde fui pedir para pôr o papelinho o dono disse: podes pôr mas tenho uma quinta para te mostrar. Viemos cá e foi logo amor à primeira vista.
Felizmente os nossos pais ajudaram-nos no investimento. Ainda estivemos um tempo a tentar baixar o preço. Depois foram os próprios donos que nos disseram “vá, a gente baixa o preço para vocês ficarem com aquilo”. Mas não foi só pela quinta, também foi pelas pessoas. Já havia gente a viver aqui no vale, sobretudo estrangeiros. E eles são uma boa referência para nós. Se já cá estão pessoas a conseguir, e estão há alguns anos, é bom sinal. Além disso, tínhamos aqui alguns amigos, vizinhos. É sempre importante ter alguma ajuda. As pessoas na aldeia também sempre nos receberam muito bem. Talvez, porque somos portugueses, não somos estrangeiros e isso emocionalmente pesa. Mas de qualquer das maneiras, eles com estrangeiros também estão sempre prontos a ajudar.
É algo que sentimos aqui muito nestas aldeias de montanha. Provavelmente porque as pessoas estão sozinhas há muito tempo, porque viram os filhos e os netos ir embora e estão aqui sozinhos. Para eles qualquer jovem que venha, seja alemão ou português, eles gostam. Porque é uma prova de que isto tem valor, senão não vinha para cá ninguém. Isso para eles traz-lhes alguma felicidade e eles gostam de nos ver aqui.
Infelizmente a maior parte dessas pessoas que viviam aqui no vale foram-se embora seguir ao primeiro incêndio, em outubro de 2017. Nós ficamos nem sei bem porquê. Porque somos malucos, porque somos casmurros e também porque tivemos muita sorte.
Antes de fugirmos deixei ligados dois aspersores atrás da estufa, eu estava a prever que o fogo vinha dessa direção. Eles só fazem quatro metros de raio, mas a verdade é que isso foi suficiente para nos salvar a estufa e os yurts.
Depois do fogo ter passado estivemos umas boas quatro horas com aquela sensação do “perdi tudo… só tenho a carteira e o carro e a roupa que tenho vestida”. E quando há um vizinho que manda uma mensagem a dizer que não ardeu o yurt, que a égua estava viva, que as ovelhas estavam vivas, foi para nós foi uma felicidade indescritível. Essa sensação de que afinal não perdemos tudo, que há uma base para recomeçar. E eu vi isso como uma dádiva, como um sinal: “Ainda podes tentar”.
E desta segunda vez quando o fogo passou para mim foi certo… se a dádiva já me foi dada, eu vou garanti-la. Desta segunda vez fiquei na quinta, não fugi. E com a ajuda do irmão da Rita, que está a viver aqui desde 2020, consegui pôr mais aspersores. E salvámos as outras estruturas que perdemos no primeiro incêndio:o estábulo, os espaços de apoio para os voluntários, a caravana onde está a dormir o irmão da Rita…
Desta vez não perdemos estrutura nenhuma. Nesse aspeto, este segundo incêndio foi melhor para nós; mas, por outro lado, para a natureza foi muito, muito pior. Foi muito mais agressivo. Foi assim mesmo um reset muito forte aqui na paisagem. Agora a paisagem está dominada por herbáceas. As lenhosas levaram uma segunda pancada muito forte e vão demorar bastante tempo a recuperar. Foi uma reviravolta muito forte na ecologia aqui à nossa volta, mas a natureza consegue sempre recuperar.
O que nós estamos a tentar fazer com o nosso projeto é, literalmente, viver em comunhão com a natureza. Tentamos produzir ao máximo aquilo que consumimos, vendemos alguns excedentes frescos, mas tentamos essencialmente vender processados – sejam fermentados, cozinhados ou secos. O lema é transformar e adicionar valor às coisas que temos aqui, que produzimos ou que podemos apanhar à nossa volta. Vendemos localmente, aos vizinhos. Portanto nem é uma pequena escala, é uma microescala.
Tentamos ser o mais possível independentes, mas a auto-suficiência é um sonho muito utópico. Porque nós precisamos de combustível, precisamos de dinheiro para fazer a revisão ao carro, etc. O que tentamos, com certeza, é ser o mais possível autónomos na nossa alimentação. Mas claro que é impossível ser cem por cento autónomo. Até na alimentação.
Por exemplo, nós temos um soito de castanheiros de onde chegámos a tirar duzentos quilos de castanha. O antigo dono chegou a tirar quinhentos. E desde que passou o primeiro fogo não temos castanha nenhuma. E era um produto que nos podia dar muita autonomia alimentar.
Nesses duzentos quilos de castanhas, guardávamos cinquenta quilos para comer durante o inverno, e vendíamos os outros cento e tal quilos. E isso dava-nos uma grande ajuda. Ardeu, e agora para que volte a produzir, ainda para mais com um segundo fogo em cima, vai demorar muito. Desta segunda vez as árvores mais velhas morreram mesmo. As mais novas ainda se conseguem recuperar, mas é preciso podá-las, enxertá-las e só daqui a dez anos no mínimo é poderiam voltar a ser minimamente produtivas.
Mas enfim, fazemos a nossa horta, temos os nossos animais. Tentamos ter a nossa carne, os nossos vegetais. Tentamos produzir cereais, mas ainda não chegamos lá.
Antes de nascer a Dana [a filha mais velha, nasceu em 2017], fiz uma pequena experiência com um método que é utilizado na agricultura regenerativa, e conseguimos fazer centenico. Cultivamos com a técnica com que se faziam cereais antigamente no Egito, antes de haver charruas. Eles deixavam as ovelhas fazer um pastoreio em excesso, para a terra ficar nua. Atiravam os cereais para a terra e deixavam os animais andarem em cima das sementes. E depois era só colher.
Fiz uma experiência com essa técnica e correu muito bem. Só tive que atirar a semente à terra, e pôr lá os animais. Tirar os animais e colher à mão. E colhemos centeio. Foi muito poucochinho, acabei por dá-lo aos animais e guardámos um bocadinho da palha para fazer algum artesanato.
Mas desde que a família cresceu essas experiências vão ficando na gaveta. Felizmente podemos contar com o Estado no apoio à família e essa ajuda tem sido essencial porque não estamos a conseguir rentabilizar o que temos, mesmo com a ajuda dos voluntários. Mas estamos a receber bastante dinheiro todos os meses só para criarmos a nossa família.
Recebemos o abono de família, e neste momento também o RSI. Também estamos a receber um apoio muito bom do IFAP, pelo terreno estar limpo pelas ovelhas e pelas árvores que tinha e que entretanto plantei. Esse dinheiro que estamos a receber tem-nos permitido na verdade continuar e ficar aqui. Porque sem essa ajuda não era possível.
O nosso objetivo é garantir o mínimo de qualidade de vida para os meus filhos, para que eles possam ainda ter algum contacto com a natureza e um ambiente saudável. A segunda razão será para que outras pessoas fora da minha família também possam ser inspiradas com este estilo de vida.
Parece que estamos isolados, mas estamos muito em contacto com as pessoas de Figueiró, com pessoas de Linhares da Beira. E temos também uma ligação muito forte com os vizinhos estrangeiros que estão aqui no vale. No vale de Linhares neste momento há oito adultos com várias crianças. Neste nosso vale, somos os únicos que vivem permanentemente. Há um casal mais acima, mas neste momento tiveram de ir para a Holanda trabalhar. Depois há outras quintas que estão abandonadas, foram-se embora depois do primeiro incêndio.
Não somos muitos, na verdade. Mas tentamos ajudar ao máximo. Todas as segundas-feiras vamos às quintas uns dos outros, fazemos as ajudadas. E também à terça-feira de manhã encontramo-nos com as crianças para as crianças brincarem em conjunto. Foi criada uma associação e em princípio vamos poder utilizar uma escola abandonada na Carrapichana para fazer um espaço de convívio. A ideia é que estas crianças estão em ensino doméstico mas precisam de um espaço para conviver. Mesmo no inverno, quando o tempo não ajude.
A Dana chegou a frequentar o infantário, na aldeia de Melo. Ela quis ir e nós acedemos, claro. Mas ao fim de dois anos disse que não queria ir mais. Do que percebemos da opinião dela, ela achou-se pressionada pela parte da educadora de infância. Isto foi também uma conversa que eu cheguei a ter com a educadora de infância… ela chegou-me a dizer eu tenho que preparar a Dana para a primária. E eu não compreendo esta necessidade de preparar uma criança para a primária.
Por outro lado ela teve aqui condições como eu nunca tive em Cascais na escola. Idas à piscina, aulas de ioga… fiquei impressionado com a variedade de atividades extracurriculares. Isso foi muito bom. Mas depois a metodologia ainda é do século passado. Ainda estamos muito embrulhados nesta mentalidade da competição, do tem que se fazer, do tem ser…
Agora estou-me a lembrar de uma conversa que tive com uma vizinha, quando ia lá ajudá-la, porque vivia sozinha. No princípio às vezes perguntava-me: tu és mesmo português? Olha que aqui na vida na serra é muito difícil, a comida não cai do céu. E eu dizia ‘então Maria, não caem castanhas das árvores, não caem bolotas?’… E ela riu-se Eu acho que ainda estamos muito neste registo, muito castrados, a querermos obrigar a nós próprios a seguir princípios que já são do século passado.
Agora a minha prioridade é criar estas crianças. Depois da Dana, fomos abençoados com os gémeos – o Aziz e o Arsu – e acompanhar estas crianças é a nossa prioridade, depois logo se verá. Queremos continuar a trabalhar com as ovelhas, com os animais. Queremos continuar a trabalhar com as plantas medicinais. São as duas áreas que já percebemos que são as áreas que fazem mais sentido trabalhar aqui. De resto, as hortícolas e os vegetais vamos fazer sobretudo para nós.
No início fizemos uma horta grande para tentar ter alguma rentabilidade porque era aquilo que eu estava habituado a fazer. Mas dá muito trabalho e o também cada vez há menos voluntários, e os vegetais estão também cada vez mais caros. É uma loucura. Vamos fazer para nós. E espero que comecem a fazer os seus vegetais, que é o que faz sentido.
Nós queremos focar mais na carne, nos ovos. Este ano investimos mais em galinhas, temos mais ovos. Temos vinte e tal ovelhas e eu quero ir até às trinta no máximo cinquenta. Mas não tenciono passar das cinquenta, porque neste momento não tenho terra minha disponível para ter mais do que isso.
A lição que quero passar aos meus filhos é a de que eles possam compreender como é que a natureza funciona e o quão interligados nós estamos com ela. Principalmente através dos animais – porque não deixámos de ser um animal e eu acho que é importante que as pessoas consigam estabelecer essa relação, e perceber que nós também somos parte da natureza.
Tenhamos nós vindo do macaco ou de Marte, ou uma mistura dos dois, nós fazemos parte da natureza. E se compreendermos como é que ela se comporta, também percebemos como é que nos devemos comportar no meio dela. E isso permite-nos também dar mais valor às pessoas.
Se eu perceber a minha interdependência para com os animais e as plantas, vou inevitavelmente compreender que tenho de partilhar esta interdependência com outras pessoas. E para mim isso é o mais importante que temos para aprender neste planeta. Porque se viemos aqui só para aproveitar e gozar o momento e não tentamos partilhar, não deixamos cá nada.
O nosso desejo é que nossos filhos possam ter oportunidade de compreender o seu papel, a sua função, no meio ambiente. E que deve ser, simplesmente, respeitar o que há. Neste momento já é mais complexo do que só respeitar: é respeitar, é proteger e é ajudar a regenerar. É bastante mais desafiante mas eu tenho a certeza que nós, como animal racional e extraordinário que somos, teremos a capacidade para limpar e arrumar a casa que desarrumámos.
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