Afonso nasceu, cresceu, casou e viveu sempre em Campo Benfeito. Tentou a vida na cidade, mas não aguentou uma semana. Tem um irmão no teatro e é casado com uma das Capuchinhas. O melhor do seu dia a dia, revela, é tratar dos animais, calcorreando a serra com as suas dez vacas de raça Arouquesa. Eis o seu testemunho.
“Sou feliz, claro que sou feliz. Se não fosse, mudava-me.”
Chamo-me Afonso Correia, tenho 54 anos e sou o único pastor da aldeia. Sempre fiz isto, e o que mais gosto nesta minha vida é mesmo de lidar com os animais. Os meus pais já tinham gado quando nasci, e eu continuei. Nunca pensei em ser outra coisa. Cresci aqui, sempre foi o que fiz. E é o que eu gosto de fazer.
Ainda dei ouvidos a um amigo meu, que vivia em Almada e me desafiou. “Ficas aqui em minha casa, o Zeca dá-te trabalho!”. Ele pagava-me bem. Mas não me dava com aquilo. De manhã levantava-me e parecia que não conseguia respirar, era muito calor. Em junho já era muito quente. Ao fim de uma semana disse: vou para cima [para Campo Benfeito].
Os rapazes da minha geração acabaram por voltar. O meu irmão Eduardo, o meu cunhado Paulo, o Abel, todos eles estiveram fora. Mas acabaram todos por voltar.
A minha rotina é sempre a mesma. Levanto-me e a primeira coisa que faço é ir beber café. Vou ao café da aldeia vizinha, Rossão, porque o de Campo Benfeito já fechou. Mas é tão perto que até vou a pé. Depois, venho tratar dos animais, deitar-lhes de comer, levar os vitelos às vacas para eles mamarem. Depois, vou tomar o pequeno-almoço, e então vou tirá-las, levá-las ao monte… e deixo-as lá. E acredita que elas sabem o caminho de casa?
Às vezes venho procurá-las, buscá-las. Mas a verdade é que elas andam por aqui à vontade e quando chega a hora lá vão embora. Entretanto, em casa, eu cuido das que lá ficam. Vou cuidar das lojas, vou cuidar outra vez dos vitelos e faço os trabalhos no campo que for preciso. Entretanto vem a noite, e vou outra vez cuidar dos animais.
É um trabalho diário, tanto vale ser sábado como domingo. É tudo igual. Mas no inverno é mais complicado. Nem é por causa do frio, que eu dou-me melhor com o frio do que com o calor; mas, quando chove muito, os animais às vezes não saem dos currais, e aí é mais complicado. De resto é levar a rotina diária; é tudo uma questão de ritmo. E agora a agricultura é mais fácil com as máquinas. Faz-se bem.
O melhor de viver em Campo Benfeito é mesmo esta tranquilidade. Porque saio de casa e não apanho trânsito, não apanho poluição. Gosto do que faço. Mas o que mais gosto na aldeia são as pessoas. Acho mesmo que as pessoas são o mais importante. Nós damo-nos todos bem uns com os outros, qualquer coisa que a gente precise pode contar com eles. E isso é fundamental.
Eu gostava que houvesse mais gente a viver cá, pelo menos no inverno. No verão não é preciso, às vezes até há gente a mais. Mas no inverno sim, torna-se um bocado monótono porque a gente faz duas vezes a aldeia de cima a baixo e não consegue ver ninguém.
Tenho dois filhos. Um com 22 anos, que estudou em Viseu e agora é mecânico em Castro Daire. O mais novo, que tem agora 18, quer ir para a universidade em Lisboa, lá para o curso que ele escolheu. Vamos ter saudades dele, mas a gente tem de o deixar ir, se é o que ele quer.
De resto, também não há mais agricultores aqui, pelo menos com gado. Os outros moradores da aldeia trabalham na construção, outros no artesanato, nas Capuchinhas e os outros no teatro. Se não fossem as Capuchinhas e o Teatro do Montemuro acho que já não estava cá ninguém. Eles empregam para aí uns 60% das pessoas ativas. Se não fosse isso, já não havia cá ninguém. Havia, se calhar, meia dúzia de pessoas mais velhas e pouco mais.
As pessoas que cá moram reconhecem a importância dos que cá estão, dos que ficaram, dos que aqui trabalham. Têm muito respeito. Mas às vezes quem vem de fora nem sempre reconhece. Há quem chegue aqui e diga: “ah, a aldeia é muito bonita e tal, mas não gostamos da bosta das vacas”, ou “ah, agora vêm aí as cabras e dão-nos cabo de tudo”. Mas se não fossem as vacas e as cabras…
Felizmente, a maior parte das pessoas não é assim. Aliás, há uma série de gente que financeiramente vive muito bem em Lisboa e que tem um respeito muito grande por nós. Muito, muito grande mesmo… Dizem-me “oh pá, não te preocupes, se elas [as vacas] cagarem aqui, não tem problema nenhum”.
Uma vez esteve cá um senhor da Malásia, um fotógrafo profissional de uma revista, que começou a tirar fotografias às pessoas. Os velhotes juntaram-se e começaram a perguntar: “Quem és tu? O que é que tu andas aqui a fazer?”. Dizem que o homem estava encostado ao tanque, cheio de medo, porque as pessoas estavam a interrogá-lo e ele não conseguia responder, porque só falava inglês. E alguém disse: “tenham calma, o homem só está a fazer o trabalho dele, não há problema nenhum”.
Hoje em dia isso já não acontece. As pessoas estão habituadas a lidar com muita gente de fora, a visitar a aldeia. E vem muita gente mesmo, às Capuchinhas, ou para ficar na Vanessa, que tem um Alojamento Local . E para o teatro, claro. É muito importante para a aldeia. Quando apareceu o teatro, e eles ainda eram amadores, eu também ajudava nas luzes ou a acartar material … mas atuar não consigo, é muito difícil para mim. Mas vou ver as peças todas!
A minha vida é o campo e os meus animais. Os senhores da Quercus explicaram-me que é muito importante eu levar os animais lá para cima, para a zona dos Lagoais. E é importante, porque os animais ajudam a manter espécies que agora já são protegidas: a borboleta das trufeiras, a orvalhinha – que é uma planta carnívora -, a fava de água e a urze peluda.
Há um casal que vive numa outra aldeia aqui perto e que tem um rebanho grande. É um casal novo, o rapaz era daqui da zona, a rapariga é alentejana, e viviam em Coimbra. Abalaram-se para cá e estão a criar gado. Às vezes também vão para os Lagoais, mas é mais raro.
Eu vou lá para cima muitas vezes, com as minhas vacas. É um sítio de que eu gosto muito, era onde íamos jogar à bola, quando era miúdo, e andavam lá 600 cabras e 200 vacas a pastar naqueles terrenos. Agora só lá andam as minhas.
Esta é a vida que eu gosto. Sou feliz, claro que sou feliz. Se não fosse, mudava-me.
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