Localizada a mais de mil metros de altitude, em plena serra de Montemuro, a aldeia de Campo Benfeito tem 50 moradores no inverno e mais de 300 no verão. O Teatro Regional da Serra do Montemuro e a cooperativa de vestuário artesanal Capuchinhas, fundados há cerca de 30 anos, são duas instituições da aldeia e a prova de que é possível criar postos de trabalho criativos e disruptivos numa aldeia do interior.
Ainda não são sete da manhã e Crisálida já vai afoita e de passada larga, estrada fora, a encurtar o caminho que leva desde sua casa, bem no centro da aldeia de Campo Benfeito, até ao Santuário do Fojo – nome dado à Capela de Nossa Senhora do Refúgio, um local de culto que, reza a lenda, terá sido erguido a mando de um homem que ali sobreviveu a um ataque de lobos.
Estamos em plena serra de Montemuro, e Crisálida leva uma manta pela cabeça, que a aragem matinal acima dos mil metros de altitude recomenda proteção contra o frio. Vai abrir a porta do santuário, fazer as suas orações para começar o dia. Vai apressada, mas não há razões para pressas. Crisálida – que confessa, afinal, ser Maria da Conceição: Maria, nome próprio; da Conceição, apelido da mãe – não sabe ser de outra maneira. “Estou acordada desde as três, não estou a fazer nada na cama. Não tenho paciência. Mal o sol nasce, faço-me à vida!”.
Fica a olhar para o drone, lá no alto. Tem 77 anos e uma curiosidade sem idade. “Estão a tirar-nos fotografias lá do céu? Tirem, tirem que isso é bom. É sinal que lá estamos”, brinca. E depois pede: “Filmem bem a aldeia que é muito, muito bonita. Olhem lá, este ano já temos o tojo todo amarelinho…. Há muito tempo que a urze não estava assim tão bonita”. Crisálida fala ao ritmo rápido das pernas e com um sorriso iluminado. “Só não me fotografem a mim, que eu não gosto”. É pena. O sorriso dela merecia mais do que uma foto.
Em Campo Benfeito todos a conhecem. Aliás, todos se conhecem. Nem podia ser de outra forma, dada a população atual da aldeia. “Somos uns 50 no inverno. Mas no verão temos sempre aqui mais gente. Somos para aí uns 300”, explica. No verão há sempre mais gente por causa dos filhos da terra que regressam para as férias, e por causa dos visitantes do Teatro do Montemuro e do seu Festival Altitudes, que organiza todos os anos, ou por causa da cooperativa de artesanato Capuchinhas.
“O teatro e as Capuchinhas é que seguram na aldeia esta gente toda. Na aldeia vivem os que trabalham no teatro, os que trabalham nas Capuchinhas, mais dois casais, um agricultor; e os restantes são como eu. Reformados, que já não podem trabalhar. Mas olhe que já trabalhámos muito”, afiança Crisálida. Ela não trabalha nas Capuchinhas, mas já participou em peças de teatro; e não falha, na assistência, nenhuma estreia.
Crisálida tem nove irmãos, e foi a única que nunca quis sair da aldeia. Tem um irmão no Havaí, os outros em Lisboa, as sobrinhas no Porto. Mas ela nem visitas lhes vai fazer. “Eu digo que a gente em Lisboa é toda tola. Andam sempre a correr uns atrás dos outros. Se querem ver-me que venham à terra deles”, afirma. E segue caminho, que depois do pequeno-almoço ela também se vai fazer ao trabalho. Ao campo, às couves. “Se ficasse em casa, só a ver televisão, ficava ainda mais tola do que os de Lisboa”, ri-se.
Quase sem exceção, cada casa habitada tem a sua horta com couves e outros legumes. Mas o que mais há em Campo Benfeito – e o nome faz jus à beleza da paisagem – é feno. Ou seja, pasto para as vacas “lindas e gordas” de Afonso, o único pastor da aldeia.
Damas, o cão de guarda, também as acompanha. Mas Afonso Correia diz que ele é mais sociável do que fiel, já que lhe dá para acompanhar todo e qualquer forasteiro que chegue à aldeia. ”E as vacas lá se amanham sozinhas. Na verdade, elas sabem o caminho de casa”, garante.
Afonso Correia é casado com Ester Duarte, fundadora da cooperativa Capuchinhas, onde um grupo de mulheres reinventa, todas as estações, uma peça tradicional de linho, lã ou algodão. Afonso e Ester têm dois filhos, de 22 e 18 anos. Habituaram-se a vê-los por casa, a ajudar no que podem. Miguel, o mais velho, ficou-se pelos estudos em Viseu, trabalha numa oficina de mecânica em Castro Daire, não planeia ir para muito longe. Pedro está no 12º ano, quer tirar Engenharia Aeroespacial, vai tentar entrar na Universidade de Lisboa.
Estudou sempre em Castro Daire, diz que a escola secundária é boa, e que conheceu excelentes professores. Só teve pena de, por falta de alunos, não ter encontrado a oferta de todas as disciplinas. “Preferia ter tido Geometria Descritiva em vez de Biologia no 10º ano. Mas paciência!”, explica. E orgulha-se das suas palavras terem aparecido num manual de português que acabou por ser usado no agrupamento de escolas de Castro Daire.
No manual estava um excerto de uma reportagem em que foram ouvidas quatro crianças: duas a contar a vida numa aldeia, duas a contar a vida na cidade. Pedro foi uma delas. Tinha 9 anos. “Nessa reportagem disse aquilo em que acredito – que viver numa aldeia é muito bom. Aqui não nos falta nada, podemos brincar na rua, estamos mais perto da Natureza. E também temos internet”, diz Pedro, ainda hoje um dos melhores embaixadores da vida na aldeia. “Volte cá à aldeia e traga os seus filhos”, exorta. Pedro quer mesmo ser astronauta, e só por isso não pode ficar em Campo Benfeito. Mas há-de saber sempre o caminho para lá voltar.
A aldeia vai perder um jovem no próximo ano, mas ganhou uma jovem moradora há quase dois. Marta Baptista estava a acabar o curso de Produção na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE), no Porto, quando se candidatou ao primeiro anúncio de emprego. Fez uma entrevista e foi aceite: hoje trabalha na produção e comunicação do Teatro Regional da Serra do Montemuro. E é a mais nova dos sete elementos que aquela companhia remunera a tempo inteiro.
Nascida e criada em Contumil, uma zona rural do Porto, cedo se habituou a ver cabras e ovelhas por perto. Mas nunca tinha precisado de tirar a carta de condução, porque ia de metro para todo o lado. Hoje em dia mora em Campo Benfeito e, desde que melhoraram a rede de telemóvel e arranjaram um ecoponto para continuar a fazer a reciclagem a que sempre se habituou, acha que já não lhe falta nada na aldeia. “Mas continuo a precisar de ir tomar o meu banho de cidade e, por isso, regresso ao Porto ao fim de semana. É lá que estão a minha família e os meus amigos”, admite.
Marta tem 23 anos e, quando diz aos amigos que arrendou por 250€ uma casa inteira, com todas as condições, eles não querem acreditar. “Isso não chega para pagar um quarto, quanto mais uma casa!”, recorda. Marta não acertou à primeira, mas agora, à terceira casa que ocupa em Campo Benfeito, encontrou finalmente o seu lar. “Percebi que aqui o que preciso é de ter um bom fogão a gás e um esquentador. No inverno, às vezes falha a eletricidade. Mas eu com um fogão a gás aqueço a casa toda!”.
Invernos desafiadores na serra do Montemuro
O inverno é, dizem todos, a parte do ano mais desafiadora. Marta recorda-se da primeira noite que passou em Campo Benfeito, era verão alto – “foi na noite de 31 de julho”. De dia estava um calor tórrido. “À noite tive de arranjar roupão e pantufas. Não estava preparada para o frio que senti naquela casa de pedra”, relata.
Marta não estava habituada às amplitudes térmicas. Mas os que nasceram e moraram na aldeia a vida quase toda, também dizem que as noites de inverno são as mais difíceis. Abel Duarte, 47 anos, diz que o problema das noites de inverno era o seu tamanho. “Os dias eram muito pequenos e as noites muito longas. Havia necessidade de passar o tempo”, explica. Em 1990, uma dúzia de jovens da aldeia começou a juntar-se. Faziam ensaios uma ou duas vezes por semana. E foi assim que nasceu o Teatro Regional da Serra do Montemuro.
Abel é um dos atores residentes. Logo ele, que nunca sonhou ser ator, mas que se estreou nos palcos com cerca de 5 anos, pela mão da catequista. Esteve três anos no teatro, mas depois a necessidade de sair da aldeia, de ir “experimentar outra coisa”, falou mais alto. “Fui para Santo Tirso trabalhar numa fábrica de tecelagem e estampagem. Não me identifiquei com aquilo. Mas precisava de o ter feito, senão não sabia… Depois voltei. Desde 1998 que cá estou”, explica.
O teatro é, agora, como um filho. Tem dois de carne e osso: um rapaz com 15 anos, uma menina com 10. O Teatro do Montemuro é “o filho de 30 anos, que ainda não é adulto”. “Eu acho que com mais três décadas em cima ainda vai estar adolescente. Porque isto é um processo de crescimento, sempre”.
Os temas da ruralidade estão presentes em tudo o que o Teatro do Montemuro faz. “Fazemos questão disso. Porque faz sentido e o tema não se esgota”, explica Abel. Também é preciso experimentar coisas novas, explorar. “É isso que tem vindo a acontecer, gradualmente. Mas sempre com os pés muito bem assentes na terra”.
Os membros do grupo conhecem-se há anos, são amigos, são família, vivem todos na aldeia. O segredo da longevidade é não haver segredos. “Conhecemo-nos há muitos anos, nem sempre estamos de acordo. Mas regemo-nos por um ponto: continuar a fazer o que gostamos de fazer, bem feito e a pensar sempre nas pessoas”, explica. O espetáculo tanto pode ser apresentado numa garagem como num Teatro Nacional. “O público que nos está a ver merece-o da mesma maneira. Para mim esse é o segredo: a sinceridade com que fazemos as coisas, o sermos genuínos”.
Abel não pensa em mudar de vida, nem de profissão, muito menos de aldeia. “Não me imagino a viver em mais lado nenhum. Gosto de sair daqui, de ir para as nossas itinerâncias. Mas depois de 15 dias a três semanas já é demais, fico com muita vontade de voltar”, admite. O campo é um bom sítio para fazer textos, e também para os decorar. “Numa fase mais avançada dos ensaios, a verdade é que ando a mondar, a tirar eras no campo, ao mesmo tempo que vou batendo o texto na cabeça. O campo faz-nos isto”, sorri.
Há uma década poderia ter duvidado que uma aldeia isolada na serra de Montemuro seria um bom local para educar os filhos. Hoje em dia não tem dúvidas. “Eles não estão a perder nada por viverem aqui. Estamos perto de tudo. A meia hora de Viseu, uma grande cidade; a meia hora da Régua; a 15 minutos de Lamego. Os meus filhos tiveram música, piscina… chegamos a tudo num quarto de hora de carro. Se calhar, num grande centro urbano, os pais demoram mais tempo a levar os filhos ao karaté”.
E não é tudo. Para Abel, o melhor de viver na aldeia e o que está a contribuir grandemente para a educação dos filhos é eles terem muita vida social. “Apesar das aldeias terem pouca gente, a verdade é que por aqui convive-se muito mais”, afiança.
As rotinas da aldeia de Campo Benfeito
O convívio acontece, mesmo tendo fechado o único café da aldeia. Agora, Abel e outros madrugadores vão tomar café à Associação Recreativa e Cultural do Rossão, a pouco mais de um quilómetro de Campo Benfeito, antes de começarem o dia. Mas é nas curvas das ruas da aldeia, nas esquinas das casas, junto aos tanques e fontanários que por ela se espalham que os habitantes se cruzam, se cumprimentam. Enquanto se encaminham para os seus afazeres, vão adivinhando as horas do dia – que o sino da torre da igreja há de, invariavelmente, corrigir ou confirmar.
Se encontramos Crisálida a descer a rua da aldeia, é porque já foi ao Fojo, já está de regresso a casa, já devem ser quase umas sete da manhã. Lá pelas nove, a não ser que esteja muito calor e seja preciso sair mais pela fresca, vamos encontrar Assunção Nogueira – a “enciclopédia da aldeia”, como lhe chama o sobrinho – com os seus 97 anos e uma bengala em cada mão a caminhar pela rua, fazendo o seu exercício matinal. A acuidade visual já não acompanha a sua sabedoria e experiência, mas não é isso que lhe retira a alegria e a vontade de conversar.
Por essa altura, estará Henriqueta a chegar à aldeia, e esse é mais um evento que pode substituir o relógio. Vem do Rossão, acompanhada da irmã, costureira. Há encomenda nova para guarda-roupa da nova peça do Teatro do Montemuro, e todas as mãos são poucas para dar conta dos figurinos que é preciso criar. Vão para a antiga escola primária da aldeia. A escola onde Ester Duarte foi muitas vezes chamada ao quadro – e onde apanhou algumas bofetadas, confessa. “Antigamente, as regras eram muitas. Prefiro vir para a escola agora, ter com as minhas amigas”, sorri.
Entre as 9:00 e as 9:30, as capuchinhas vão chegando à escola, uma a uma. Estão Henriqueta e Ester, costureiras e fundadoras da cooperativa. Está Engrácia, irmã da Henriqueta, cunhada da Ester, que faz tricot e tinge as lãs e os algodões com cores naturais. “As cores amarelas conseguimos com os líquenes das árvores e as barbas dos carvalhos; o verde faço-o com os fetos e as urtigas; a folha de nogueira dá o castanho”, explica, diligente.
Está Isabel Rodrigues, a mais nova do grupo, e a última a entrar. Tinha então 18 anos e agora já conta com 43. “Éramos uma família de onze irmãos, eu era a mais nova e fui a única que fiquei na aldeia. Nunca quis sair daqui, quis sempre ficar perto dos meus pais. Chamaram-me para vir aprender a tecer. Vim à experiência, consegui aprender bem, gostei muito”, diz Isabel. E continua a gostar, tantos anos depois. A música do tear não é ruído, é embalo.
Ester, Henriqueta, Engrácia e Isabel gostam de receber visitas. E recebem muitas. De quem quer comprar os seus casacos, vestidos, blusas. De escolas que vão visitar a iniciativa pioneira destas mulheres que mostraram que também na serra e numa aldeia isolada é possível criar um posto de trabalho e agora, com a ajuda da internet, vender para Lisboa, para a Suécia, para o Japão.
O mundo pode ser agora vasto, mas Campo Benfeito continua a ser o seu centro. O lugar onde conseguiram a sua independência financeira, e onde criaram os filhos e os ensinaram a voar. A voar tão alto que, em alguns casos, já só mesmo de foguetão, como quer o jovem Pedro. Ester confessa que vai sentir falta do filho, habituada que está a tê-lo, também, ao seu lado nos bancos da igreja quando, todos os dias, pelas 18:30, vai à capela rezar o terço. Tem um filho de cada lado e são eles os três que dão o tom para os cânticos entre cada dezena.
Quando à hora do terço já é de noite, as mulheres de Campo Benfeito voltam a usar as capuchas de burel sobre as cabeças. “As capuchas dão-nos jeito, porque nos tapam a chuva e nos deixam as mãos livres. Quando andava no monte, podia até levar uma meada para fiar, enquanto olhava as cabras no monte”, conta Rosa.
Por estes dias já não fia a lã, antes desfia as contas do rosário. Há uns meses perdeu a irmã, companheira de toda a vida, para uma doença. A tristeza é amenizada pela companhia dos vizinhos, que sempre a rondam a perguntar de que precisa. Às vezes nem é preciso falar – os vizinhos conhecem os rituais uns dos outros. Crisálida sabe sempre quando Assunção está em casa – basta olhar para a bengala na entrada da porta.
O fim do terço assinala a hora do jantar e o regresso a casa. Nas noites longas de verão, dão-se passeios na estrada para apanhar a brisa fresca. No inverno, ninguém se afasta da lareira. O mote é deitar cedo, e depois cedo erguer. E Crisálida, enquanto puder, lá estará a marcar o ritmo do nascer do novo dia em Campo Benfeito.
Veja também o guia prático com o que fazer em Campo Benfeito.
Mais sobre Campo Benfeito
O que fazer em Campo Benfeito (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Campo Benfeito, na freguesia de Gosende, Castro Daire, em plena serra de Montemuro. Inclui o que fazer na aldeia – atividades, trilhos e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
Eduardo Correia, o diretor artístico
Fundador, há mais de 30 anos, do Teatro Regional da Serra do Montemuro, Eduardo Correia ainda vive na aldeia onde nasceu. Hoje, é diretor artístico da companhia e não pensa sair de Campo Benfeito.
Henriqueta Félix, a capuchinha
Foi uma das impulsionadoras das Capuchinhas, uma cooperativa de produção e venda de vestuário artesanal instalada há mais de 30 anos na antiga escola primária de Campo Benfeito. O seu dia a dia é fazer peças de vestuário em burel, linho e lã, tecidos num tear artesanal em conjunto com mais três mulheres.
Vanessa Sousa, a socióloga
Quando perguntavam a Vanessa Sousa de onde era, sempre respondeu Campo Benfeito, a terra dos avós. Recuperou a casa da avó, transformou-a num Alojamento Local e tem planos para criar um projeto comunitário de desenvolvimento social.
Afonso Correia, o pastor da aldeia
Afonso nasceu, cresceu, casou e sempre viveu em Campo Benfeito. Tem um irmão no teatro e é casado com uma das Capuchinhas. Adora tratar dos animais, calcorreando a serra com as suas dez vacas de raça Arouquesa. Tentou a vida na cidade, mas não aguentou uma semana.
Vestuário em burel, linho e lã pelas Capuchinhas de Campo Benfeito
Vestuário em burel, linho e lã produzido em teares manuais, usando métodos tradicionais mas com um design contemporâneo, no seio de uma cooperativa composta por quatro mulheres da Serra do Montemuro.