Quando lhe perguntavam de onde era, Vanessa Sousa sempre respondeu que era de Campo Benfeito, a terra dos avós. Ao contrário da mãe, que considera a aldeia o “fim do mundo”, Vanessa acredita que a aldeia era o princípio de tudo. E quis tanto recuperar a casa da avó e mudar-se para a aldeia que chegou a ir de avião todas as semanas para dar aulas na Universidade de Faro. Hoje gere um Alojamento Local e tem planos para criar um projeto comunitário de desenvolvimento social. Eis o seu testemunho.
“As cidades não existem sem os saberes das aldeias”
Chamo-me Vanessa Duarte de Sousa, nasci em 1977 na maternidade de Oeiras e, até ir fazer o estágio, vivi sempre em Oeiras. Tirei uma licenciatura em Sociologia e Planeamento no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) e depois fui fazer o estágio em Grândola. Acabei por fazer lá também um mestrado, em Planeamento e Avaliação de Processos de Desenvolvimento. As áreas de planeamento e desenvolvimento, de exclusão social, continuam a ser as minhas preocupações políticas e sociais.
Em 2003, por circunstâncias da vida, fui viver para São Brás de Alportel, no Algarve. Comecei a fazer consultoria para câmaras municipais e também um projeto sobre o abandono dos jovens dos espaços rurais, que acabou por ser o tema da minha tese.
Quis saber que razões há para os jovens abandonarem os espaços rurais, e ao mesmo tempo perceber a forma como tentamos colonizar esses espaços com ideias urbanas. Comecei a preocupar-me muito com estas questões e, a dada altura, senti necessidade de mudança.
Lembro-me do momento em que senti o primeiro click. Estava a trabalhar na área da Inovação Social, na Associação In Loco, e houve uma iniciativa que passava por realizar um mercado de trocas. Cada um tinha de pensar numa competência que tivesse e desenvolver produtos ou serviços para vender. Eu pensei no que podia fazer e, como estava calor, comprei ananás e fiz suco de ananás com hortelã. Vim de lá rica: fiz uma massagem, trouxe abóboras, espinafres, pão…
Mas quando me pediram o balanço do mercado e do que soubemos produzir, eu pensei: eu fui ao supermercado, comprei o ananás, fui esperta porque estava calor… Mas eu não sei produzir nada. A minha capacidade como socióloga não me permite vir a um mercado de trocas e fazer trocas efetivas. Esse foi o primeiro click.
O segundo foi quando morreu a minha avó.
A minha avó era daqui, de Campo Benfeito. A minha mãe nasceu nesta casa, mas com nove meses ela e os meus avós foram viver para Lisboa. Lembro-me de virmos sempre para Campo Benfeito. Até aos meus 16 anos, eu passava cá todas as férias grandes. Tinha uma ligação muito forte com estes meus avós. Quando me perguntavam de onde és, eu dizia sempre: “vivo em Oeiras mas sou de Campo Benfeito”.
Lembro-me de olhar para este palheiro [hoje em dia transformado na casa de Alojamento Local Ares do Montemuro] e dizer que queria fazer alguma coisa deste espaço. Quando a minha avó morreu foi um choque. Para mim foi a estrutura que desabou. A dada altura digo à minha mãe que queria vir reabilitar o palheiro, nem que fosse para férias. Foi então que fiz um projeto para turismo.
Comecei sem muito impacto. Dava para suprir as despesas que tinha ao longo do ano com a manutenção da casa. Mas tinha sempre de depender de alguém que viesse aqui abrir a porta; e quando eram estrangeiros era mais complicado. Sempre consegui, mas nunca tive a casa aberta a 100% porque tinha de respeitar o ritmo das pessoas da aldeia.
Nessa altura, estava a coordenar um contrato de desenvolvimento social que surgiu depois de um grande incêndio, em 2012, e que consumiu 48% do território de São Brás de Alportel. Era um trabalho na área das sementes locais. Parte significativa das sementes daquele território desapareceram com os incêndios e nós quisemos começar a revitalizar esse património. Arrancámos com um trabalho de buscar saberes locais, de fazer o pão, o queijo, de procurarmos a interação dos miúdos com aquele território. Era um território muito, muito isolado. Acho que nem Campo Benfeito, que está a mais de mil metros de altitude, é tão isolada. Ali vamos para a serra e só voltamos pela mesma estrada.
Foi esse projeto que me fez lembrar muito as coisas que eu tinha aqui com a minha avó, a minha infância. Quando acabei aquela intervenção, em 2015, senti que estava num território que não era o meu. E comecei a fazer contas e a ver quanto é que gastaria se quisesse viver em Campo Benfeito, fazer consultoria a partir daqui e meter-me num avião para continuar a ir dar aulas ao Algarve.
Fiz as contas, e achei que valia a pena.
Claro que, do ponto de vista ambiental, não era nada ecológico. Mas foi uma opção que sabia que era temporária; e vim.
Ainda andei, entre os turistas daqui, as aulas no Algarve e alguma consultoria pela região, a pensar como conseguiria mesmo mudar de vida. Até que o dono de uma empresa, que esteve aqui alojado com os funcionários, me disse uma coisa que me marcou: “Tive negócios falhados, mas a sugestão que dou é pensar em montar um negócio que tenha elevado retorno com baixo investimento”. E uma noite estava a lavar a loiça e pensei que tinha aqui ao lado a casa da minha mãe, sem tanto potencial para turismo, mas para onde eu podia ir viver, e investir nesta e pô-la em Alojamento Local. A verdade é que mal a pus no Booking comecei a ter reservas.
Estava nervosíssima. Nunca tinha estado na situação de ser eu a fazer tudo: gestão, reservas, consumos, limpezas… Era a primeira vez que estava com toda a cadeia, e mesmo assim sabia que não podia viver só disto. Isto é muito bonito no verão, mas não tem capacidade para sustentar uma pessoa a tempo inteiro durante todo o ano.
Para mim era complicado, até do ponto de vista ético, continuar a ir para o Algarve trabalhar; fazia-me confusão. Lá, tinha uma equipa excelente, sempre fui convidada para fazer coisas. E aqui era-me difícil entrar. É difícil recomeçar a vida aos 40 sem ter estas redes institucionais – aqui ninguém me conhecia. Mas comecei a mandar currículos para todo o lado e a pensar nas coisas que podia fazer.
Mandei currículos para tanto lado que agora estou a fazer vários projetos e a dar aulas de mestrado, em Viseu e em Coimbra. Criou-se o contexto que favoreceu a minha permanência aqui.
Não fui nada apoiada nesta decisão pela minha mãe, que dizia que isto era o fim do mundo. Ela é claramente urbana, não sabe distinguir uma couve. Esteve aqui 15 dias enquanto fui a um congresso no Algarve e ia-me matando a horta. Mas eu preciso desta horta. Cheguei desse congresso, de jornadas com 12 e 14 horas por dia, e lembro-me de chegar aqui e ir apanhar favas. Apanhei 15 quilos e, depois de apanhar aquilo tudo, era como se não tivesse tido o congresso.
A minha mãe diz que isto é o fim do mundo, mas eu digo que é o princípio, porque é destas bases que tudo vem. As cidades não existem sem estas aldeias, estes saberes. É muito triste que nem os autarcas percebam estes territórios, e os usem de uma forma folclorizada.
Felizmente, hoje tenho vários projetos. Eu e a Anna [moradora em Campo Benfeito, de origem italiana] começámos a pensar que tínhamos de fazer alguma coisa com as sementes locais, a permacultura. Temos o objetivo de fazer a “Casa de Saberes de Montemuro”, para criar um espaço interpretativo e dinamizador de atividades económicas, um espaço de valorização dos produtos locais.
Um dia combinámos com uma senhora em Cutelo [uma aldeia próxima de Campo Benfeito] e percebi que ela estava a vender meias a 2,5€; eu achei escandaloso. Demasiado baixo para o trabalho – tosquiar a ovelha, lavar, cardar, etc. Tenho este sonho de ciar um pólo agregador, uma cozinha colaborativa. Estamos a ver a melhor forma de arrancar.
O melhor de viver em Campo Benfeito é esta paz. A noite é muito especial, há o descanso do corpo e da mente. Já tenho dificuldade em ir à cidade; os shoppings já mexem com o meu sistema nervoso. Mas a minha rotina é multistasking. Eu também sou. É só olhar para as minhas mãos. A parte de cima é urbana – vê-se pelas unhas, pintadas. Mas, a parte de baixo, a palma das mãos, revela a outra parte de mim, que precisa de terra.
Às vezes, sinto a falta do anonimato da cidade. No meu prédio em Oeiras viviam mais pessoas do que nesta aldeia toda. Às vezes, sinto saudades disso, porque aqui todos sabem tudo, e este controlo faz-me confusão. Mas eu preciso muito disto.
Um dia bom, aqui em Campo Benfeito, é a possibilidade de sentir esta tranquilidade, ouvir os pássaros, sentir o silêncio. De estar. É isso que conseguimos nas aldeias: estar.
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