Fundador, há mais de 30 anos, do Teatro Regional da Serra do Montemuro, Eduardo Correia ainda vive na aldeia onde nasceu. Hoje, é diretor artístico da companhia que organiza todos os anos o Festival Altitudes. E não pensa sair de Campo Benfeito. Eis o seu testemunho.
“Só seremos grandes lá fora, se formos enormes cá dentro”
Chamo-me Eduardo Correia, tenho 53 anos. Nasci em Campo Benfeito e vivi sempre nesta aldeia. Ainda fiz um período de tempo militar, mas depois regressei, com a expectativa de me fixar cá. Todo o universo de partilha que existe aqui na aldeia levou-me a ficar e a explorar esta questão do teatro e das artes.
A tradição do teatro nas aldeias da região era muito antiga, já dos anos 50 e 60, mas com o despovoamento foi-se desvanecendo. Numa aldeia aqui vizinha, Mezio, residia uma associação internacional que promovia as aldeias a norte de Castro Daire, o Instituto de Assuntos Culturais (ICA). E uma das áreas que desenvolviam era exatamente o teatro.
O ICA promovia um encontro anual entre aldeias, onde as crianças do primeiro ciclo criavam uma pequena peça, juntamente com elementos dessa organização, e apresentavam-na. Era uma espécie de festival.
Nós, em Campo Benfeito, acatámos logo essa ideia, e fomos participar. Já éramos um grupo de pessoas mais velhas, mais adolescentes que crianças. Foi aí que apareceu o Graeme Pulleyn, um dos voluntários do ICA, que tinha formação de teatro, e nos desafiou. “Malta, já que vocês têm esta vontade, e já têm mais idade, podiam fazer alguma coisa um pouco mais séria”.
Estávamos em 1990, e o Teatro Regional da Serra do Montemuro apareceu nessa altura. Nenhum de nós tinha formação na área, a não ser o Graeme. Mas fizemos muita formação, tivemos oportunidade de fazer muitos trabalhos, residências artísticas, parcerias, viagens…
Em 1994 surgiu um projeto de co-produção com uma companhia inglesa, que nos quis conhecer, e fazer algo em comum. Foi assim que surgiu a peça Lobo/Wolf, que foi pensada para ter uma pequena digressão na Beira Alta e em Inglaterra. Quando nos mostrámos em Tondela, num festival de teatro, estava lá um crítico, o Manuel João Gomes, que adorou o espetáculo e fez uma crítica fantástica. E daí surgiram novas oportunidades.
Por incentivo de várias pessoas, candidatámo-nos aos apoios do Estado e conseguimos o primeiro logo em 1995, para um projeto a realizar no ano seguinte. Desde aí temos tido sempre apoios, que agora são quadrienais. Apresentamos um plano do que queremos fazer nos quatro anos seguintes, e cumprimos.
Normalmente, trabalhamos em textos originais que surgem da cabeça das sete pessoas que formam a equipa do Teatro do Montemuro. Mas o núcleo vai crescendo, dependendo dos projetos. Temos como princípio ter esta corrente de pessoas que nos ajudam na criação dos próprios projetos artísticos – desde autores a encenadores, diretores musicais, cenógrafos e figurinistas.
O Teatro do Montemuro trabalha diferentes áreas, desde o trabalho com bonecos, com universo da máscara, commedia dell’arte… Mas muito da matriz, da identidade cultural da companhia, baseia-se nesta magia da serra. Todo o universo da serra inspira-nos muito. Em termos artísticos e dramatúrgicos, a companhia de teatro foi crescendo, sempre muito assente na noção da ruralidade.
E em que é que estarmos sedeados numa aldeia torna o nosso projeto diferente? Não temos termos de comparação, mas aqui podemos dizer o que ouvimos e o que sentimos. Aqui o tempo parece que rende mais. Não há nada que nos distraia, estamos muito focados no trabalho.
O facto de a aldeia nos permitir estar aqui muito concentrados é uma mais-valia. Também traz desafios, como o distanciamento dos meios urbanos. Quando temos de trabalhar com as comunidades, temos de sair da aldeia, e isso é sempre em horário pós-laboral, o que poderia trazer desgaste. Mas como se criam energias e empatias com as pessoas, há toda uma corrente de afetos que nos mantém muito ativos e entusiasmados com os projetos.
Somos claramente uma companhia de itinerância, não só como princípio mas também como necessidade, dado estarmos aqui numa zona tão isolada. Somos recebidos por muita gente, quer instituições públicas quer privadas, e reservamos um tempo também para acolher. Estamos muito disponíveis para ouvir e para ver. E também para, de algum modo, contribuir para esta dinâmica dos que estão sedentos das artes e não têm muitas oportunidades, dado o afastamento aos meios urbanos.
Que me desculpe o público que vai aos Teatros Nacionais – que eu também gosto tanto de lá ver teatro! -, mas às vezes sinto-me mais realizado quando fazemos espetáculos na aldeia. Talvez pela escassez de oportunidades, a gente sente que as pessoas estão muito disponíveis, muito entusiasmadas para ver o que vai acontecer.
Obviamente que num salão paroquial ou num auditório municipal não temos as mesmas condições que na Culturgest ou no Teatro Carlos Alberto. Mas quando criamos um objeto artístico sabemos que o espetáculo não pode sair prejudicado por esta dinâmica. Está tudo ponderado, nada vai influenciar a qualidade do próprio espetáculo. O espetáculo é sempre o mesmo.
A vantagem é que aqui [na aldeia] sente-se a proximidade. Num teatro convencional, clássico, a questão formal está mais vincada, a partilha com o público é menor. Aqui, quando terminamos o espetáculo, mesmo depois da desmontagem, estão lá as pessoas, que de uma forma ou de outra são muito genuínas nas suas opiniões. Sabemos quando eles gostaram muito, quando não gostaram tanto. Esse entusiasmo é puro, ajuda-nos imenso e também nos satisfaz.
O Festival Altitudes, que organizamos todos os anos no verão, por exemplo, é de extrema importância na nossa dinâmica. Felizmente, agora não temos de nos esforçar muito para convencer as companhias a virem ao festival. Já todas nos conhecem e vêm a Campo Benfeito com muito gosto. Eles dizem-nos isso. Pela diversidade que encontram, pela própria geografia, mas também por esta relação que se foi criando ao longo dos anos.
E nós sentimos essa sinceridade, quando nos dizem que gostam de vir cá, quer ao festival, quer aos Serões da Serra, que é outro programa de entretenimento do Teatro do Montemuro. Uma vez por mês, procuramos acolher outra estrutura ligada às artes, desde o teatro até à dança, passando pela música.
Claro que já pensei em viver fora de Campo Benfeito. Obviamente que isso passa pela cabeça de todos os jovens que nascem nas aldeias mais remotas de Portugal. Mas, com o surgimento desta oportunidade, nunca mais pensei em sair. É aqui que eu gosto de estar, e enquanto fizer sentido por aqui estarei. E eu sinto que ainda há um longo caminho pela frente.
Tudo o que foi feito tem valorizado não só esta aldeia, como toda a região. Sentimos essa responsabilidade, que somos uma referência, que mostramos que é possível criarmos projetos fora dos grandes centros e em perfeita igualdade com as outras estruturas profissionais que existem pelo país.
Um orgulho muito grande que eu tenho – e o Teatro do Montemuro também – é que houve uma aceitação destas gentes ao teatro. Principalmente numa fase inicial, em que foi tão difícil em termos económicos. As receitas eram nulas, mas esta resiliência de todos, o aceitar deste envolvimento da aldeia, esta força que nos transmitiram, foi fundamental para a existência do Teatro do Montemuro.
As pessoas aqui da aldeia vão ao teatro. Todas. Agora temos este espaço, mais próximo da aldeia. Mas durante muitos anos estávamos num salão afastado, e era muito giro ver as pessoas a irem a pé e juntarem-se à porta uma hora mais cedo.
O Tiago Rodrigues [diretor do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa] fez recentemente uma iniciativa, quando abriu a nova época do teatro, e deu entradas gratuitas. O resultado foi uma fila de pessoas que passava pelo Rossio. Nós já temos isto aqui na aldeia há muito tempo. As pessoas fazem fila para ir ao teatro há anos.
De resto, o melhor de viver em Campo Benfeito são as pessoas, claramente. Um dia feliz, para mim, é ver as outras pessoas felizes. Não é demagogia, é verdade. Uma pessoa vai na rua, cruza-se com alguém (e é difícil a gente cruzar-se aqui com pessoas) e vê essa pessoa bem disposta… isso deixa-nos bem dispostos também.
Sinto que a nossa região cresceu muito, culturalmente. Temos feito espetáculos em várias regiões, e sentimos que a aceitação – e a própria valorização! – do nosso trabalho cresceu imenso aqui nas aldeias.
Mas o meu sonho é conseguir uma dinâmica ainda mais forte, mais integrada, com mais estruturas e associações em diferentes áreas. Eu acredito muito que este sentimento de pertença vai levar as pessoas a fixarem-se.
Uma das coisas que nos prejudica é a dimensão do nosso projeto. O Teatro do Montemuro não tem o impacto em termos nacionais que eu acho que devia ter. Sinceramente, acho que fazemos projetos enormes, que se estivéssemos num centro urbano com outra dimensão tinha uma cobertura de imprensa maior. Sabemos disso, e sabemos quais as razões. Não estou a culpar nada, só a constatar um facto.
Por isso, fazer itinerância também é uma necessidade. Quando ficamos cá muito tempo, sentimos que há um vazio, que precisamos de sair, de apresentar fora. Mas acreditamos muito que, quanto mais trabalharmos na nossa região, maior é a corrente de público, maior a envolvência. Só seremos grandes lá fora, se formos enormes cá dentro. É esse o princípio que eu sonho.
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