Foi uma das impulsionadoras das Capuchinhas, uma cooperativa de produção e venda de vestuário artesanal instalada há mais de 30 anos na antiga escola primária de Campo Benfeito. O seu dia a dia é fazer peças de vestuário em burel, linho e lã, tecidas num tear artesanal em conjunto com mais três mulheres. Eis o seu testemunho.
“Tivemos a liberdade de poder escolher e criar o nosso próprio trabalho”
Chamo-me Henriqueta Félix, tenho 54 anos, e fui uma das impulsionadoras da Associação Cooperativa Capuchinhas. Nasci na aldeia ao lado de Campo Benfeito, no Rossão. Mas foi aqui, no edifício da antiga escola primária onde a minha amiga Ester ainda teve aulas, que eu e ela tivemos uma formação que havia de estar na base das Capuchinhas.
Estávamos em 1987; eu tinha 20 anos, a Ester 16. Éramos umas meninas. Mas queríamos muito ficar aqui, não queríamos sair da aldeia. Fomos aprender costura. Juntámo-nos com a senhora Cidália e fomos fazer uma formação de corte e costura. E depois fomos ao Porto fazer outro curso, organizado pela CIDM – Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres [hoje designada CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género].
Nesse curso, no Porto, as aulas eram teóricas, ensinavam-nos a calcular preços, por exemplo. Mas também nos ajudaram a pensar no problema das mulheres. Naquela altura ainda havia problemas. E aqui no Montemuro, então, havia bastantes. Não digo que as mulheres eram dominadas, mas não havia igualdade nos direitos. As mulheres até podiam ser muito bem tratadas e estimadas, mas a palavra principal era sempre do marido.
Esse curso foi muito importante, porque nós já tínhamos outra mentalidade e queríamos outra versão da realidade. Foi lá que fomos incentivadas a criar a nossa identidade. E agora já não temos esse problema, porque tivemos a liberdade de poder escolher e criar o nosso próprio trabalho. Hoje em dia somos independentes.
Muitas vezes perguntam-me o que é uma capuchinha. Eu explico que é a capa tradicional que a mulher do Montemuro veste para fazer os trabalhos do campo. É uma capa suspensa pela cabeça, que lhe deixa as mãos livres ao mesmo tempo que protege do frio e da chuva. Foi o que escolhemos para nosso símbolo.
Nós também fazemos capuchas na associação. As primeiras peças que fizemos foram uns coletes, com um restinho das mantas de tecelagem que havia por aqui. Depois, com uns lençóis de linho usados fizemos camisas de linho tradicional. O burel só usámos depois. E fizemos um casaco, não fizemos capucha. Quisemos um artigo para se vestir, que fosse mais prático para as pessoas poderem usar na cidade.
Nós sempre fomos muito ativas e trabalhadoras. Tínhamos vontade de fazer as coisas muito bem feitinhas. Felizmente, tivemos o apoio de uma organização sueca, a Siv Follin, que nos conheceu através da CIDM e que, durante cinco anos consecutivos, pagou à Dona Maria Helena Cardoso, a nossa primeira estilista, para nos apoiar.
Isso permitiu-nos termos coleções diferentes todos os anos. Ela [Helena Cardoso] vinha em março ou abril e fazia uma linha com quatro ou cinco peças. E vinha outra vez no inverno e fazíamos outras tantas. Eram coleções pequenas, mas significava que tínhamos sempre peças novas. Por exemplo, quando havia eventos ou passagens de modelos, nós tínhamos sempre peças de roupa bonitas para apresentar.
Passado um ano ou dois de termos começado, eu e a Ester chamámos a minha mãe para vir trabalhar connosco. E também a Dona Augusta, uma tecedeira aqui da aldeia de Campo Benfeito, que começou a fazer tecelagem para nós confecionarmos. Quando a Dona Augusta deixou de trabalhar connosco, veio a mãe da Ester. E a minha irmã mais nova, a Engrácia, que ficou disponível quando deixou de estudar, também entrou. Pouco tempo depois entrou também a Isabel, que quando fez 18 anos também quis vir trabalhar connosco. Aprendeu a arte e agora é a nossa tecedeira. Assim formámos as Capuchinhas.
Sei que ajudámos a aldeia. Aproveitámos as pessoas que aqui viviam, as pessoas ficaram cá. A minha irmã casou com um irmão da Ester, e agora moram em Campo Benfeito. A Isabel, que também cá nasceu, continua a morar aqui. Tem duas filhas, é mãe da criança mais nova da aldeia. Campo Benfeito agora é uma aldeia com crianças; na altura quase não as tinha.
Eu também casei, tenho uma rapariga e um rapaz, mas continuei a viver em Rossão. É muito pertinho daqui. Vou e venho a pé todos os dias. Quando a minha filha nasceu, esteve aqui comigo até aos três anos, porque na altura não havia infantário nesta zona. Mais tarde foi estudar em Viseu, até ao 12º ano, e depois foi para Lisboa, para a Faculdade de Belas-Artes. Tirou o curso de escultura e já está a trabalhar. Quando cá está, nas férias, gosta de fazer tecelagem neste tear pequenino.
Os nossos filhos apreciam o nosso trabalho. E ajudam. Se houver passagem de modelos, são os nossos filhos e sobrinhos que nos fazem os desfiles. A família dá-nos muito apoio, mas não sabemos se vão dar continuidade ou não. Hoje em dia damos aos nossos filhos o curso para eles seguirem os sonhos deles.
Nós também seguimos o nosso. Nascemos aqui, estamos habituadas a este ambiente. E agora temos condições que antigamente não tínhamos. Todas tirámos a carta de condução, e quando pudemos comprámos um carrito. Vamos às compras a Castro Daire ou a Lamego, onde for preciso. Já temos uma vida diferente da vida de antigamente.
Continuamos a gostar de fazer uma horta, para termos as nossas batatas e cebolas. Depois do horário de trabalho, aqui nas Capuchinhas, vamos fazendo esse cultivo, que nos ajuda a não ter de comprar tudo e a ter uma alimentação mais saudável.
Agora, tanto vendemos para Portugal como para o Japão. A Internet faz tudo, chegamos a todo o mundo. Temos um novo site, o capuchinhas.pt, com Facebook e Instagram, através de uma familiar da Ester que se disponibilizou para nos ajudar. Tem sido uma grande ajuda, sobretudo desde que começou a pandemia.
As pessoas mandavam muitas mensagens, porque gostam muito do que ela vai pondo nas redes sociais, sempre coisas bonitas e algumas novidades. Vinham algumas encomendas, mas pontuais. Não vamos dizer que não temos problemas. Com esta tristeza, e os problemas que houve, as pessoas também não têm vontade. Para quê comprar uma roupa se nem vão sair de casa? Mas dão-nos muita força. E nós vamos andando, devagarinho.
Um dia bom, para mim, é quando estou a fazer uma peça, as coisas andarem sempre em frente e eu não precisar de andar a desmanchar e a fazer de novo. E é quando temos visitas de pessoas que mostram satisfação e agrado pelas coisas bonitas que as Capuchinhas têm. Desde que haja algumas vendas e que o trabalho nos corra bem, nós já estamos felizes.
Neste momento, não temos trabalho para mais gente, que isto é uma coisa pequena e que tem de seguir. Mas se chegarmos a precisar, eu acredito que havemos de conseguir arranjar alguém para aqui fazer formação. Se não for na aldeia, na freguesia. Nós havemos de dar continuidade a este trabalho, para ele não morrer.
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