Saiu de Ucanha tinha menos de dois anos, viveu em Lisboa, foi emigrante na Suíça. Quis regressar à aldeia dos avós há 17 anos, e decidiu que havia de (re)criar um prato que justificasse uma romaria. E conseguiu. Na Tasquinha do Matias, os milhos no pote são quase tão conhecidos quanto a Ponte Fortificada de Ucanha. Eis o seu testemunho.
“O amor a esta aldeia e à comida que faço faz-me sentir bem aqui”
Chamo-me Filomena Matias, nasci na Ucanha, mas saí daqui com os meus pais e os meus irmãos quando ainda não tinha dois anos de idade. Vivi quase toda a minha vida em Lisboa, com eles. Vivíamos na zona de Alvalade, os meus pais tinham um negócio na Picheleira – também se chamava Tasquinha do Matias -, mas não era restaurante como este, servia mais petiscos, sandes, bebidas. E eu e os meus irmãos andávamos na escola em Alvalade.
Mas nas férias vínhamos sempre à Ucanha passar o verão com os avós. Não me lembro de ir para Lisboa, que era tão pequenina, mas lembro-me bem que sempre pensei em regressar. Eu gosto muito desta zona, da minha terra, e pensei sempre: “gosto tanto desta aldeia e tenho tanto orgulho de ter nascido aqui, que um dia quando tiver mais idade é para esta terra que eu venho”.
Quando vivi em Lisboa trabalhei dez anos numa charcutaria. Mas depois emigrei para a Suíça. Trabalhava num hotel, e lá fiz de tudo menos de cozinheira. Na Suíça só os homens é que têm chance de trabalhar na cozinha, só eles é que são chefes. Mas aqui vinguei-me, assumi eu a cozinha. Sempre tive uma paixão pela cozinha. Adoro, amo cozinhar.
Quando me vim embora da Suiça já tinha mais de 40 anos, e quando pensei no que podia fazer – eu sabia que não ia ser fácil arranjar um emprego, tinha de ser eu a criar o meu – pensei que esta casa não podia continuar fechada. E decidi reabrir aqui na Ucanha a Tasquinha do Matias, que já estava fechada desde 2002.
A minha mãe tinha regressado de Lisboa, quando o meu pai faleceu, e ficou aqui no norte, a lidar com esta tasquinha até 2002. Mas a partir daí ela não conseguiu habituar-se à nova moeda, ao euro, e resolveu fechar. Eu vim reabrir dois anos mais tarde.
Na altura pensei logo que tinha de arranjar forma de trazer aqui gente, não podia ficar aqui à espera que algo acontecesse. Pensei que devia ter um prato que fosse atrativo, um chamariz, que as pessoas quisessem vir de propósito comer esse prato. Foi quando tive a ideia dos Milhos no Pote, uma receita que desenvolvi a pensar que as pessoas procuram aquilo que está a cair no esquecimento.
Eu aprendi a fazer este prato com a minha avó, desde pequena que a via a fazê-lo. É um prato de lavrador, de comer todos os dias. Quando era a matança do porco, os ricos deitavam fora os couratos. Mas os pobres agarravam neles, cozinhavam-nos com hortaliça, juntavam a farinha de milho e comiam assim. Foi assim que eu aprendi a fazer com a minha avó.
O padre da Abadia de Salzedas – o padre Teixeira, que era meu cliente e meu amigo – disse-me que existia uma receita dos abades da Ordem de Cister que conciliava com o prato da minha avó. Ele deu-me umas dicas, eu dei-lhe o meu toque e cheguei a esta receita final.
Atualmente, é o prato mais procurado aqui no restaurante. Ficámos no terceiro lugar a nível nacional, nas Sete Maravilhas à Mesa, com este prato, não há ninguém que venha ao restaurante que não o queira provar. Muitos mandam vir o pote como entrada, comem um bocadinho, e depois pedem outra coisa. Mas os Milhos no Pote são uma refeição completa, não são apenas uma entrada. Mas as pessoas gostam de provar. E eu, que os faço todos os dias há 14 anos, também não me canso de os comer. Como sempre um pratinho pequenino de sobremesa, apetece-me sempre quando acabo de os fazer… estão fresquinhos, dá-me sempre apetite para os provar.
Eu não faço o prato com os couratos. Uso carnes mais ricas do porco; uso costela, carne da barriga e também uso moiras. A hortaliça mantém-se e os milhos também. A farinha de milho foi sempre muito importante aqui no concelho. Havia sete moinhos, todos a moer em São João de Tarouca. Agora só há três que estão recuperados.
Os meus avós também tinham um moinho – este que está aqui mesmo junto ao restaurante, mas que parou de moer há mais de 20 anos. Eu fiquei lá a dormir algumas vezes, quando os meus avós passavam lá a noite a moer e eu vinha aqui às festas da Ucanha. Mas depois eles venderam-no, e o novo dono ainda não fez lá obras. Mas também não o quer vender, senão quem o comprava era eu e punha lá a moer os meus milhos. Eu compro todos os meses 100 quilos de farinha de milho. É mesmo o meu prato principal, o conceito desta casa são os milhos.
Hoje em dia vêm milhares de pessoas visitar a nossa aldeia, que é uma das aldeias mais bonitas de Portugal. Temos vários componentes para ser visitados, como a ponte e a torre da Ucanha, e eu orgulho-me muito que também me venham procurar a mim.
Para este mês, por exemplo, temos as duas salas lotadas todos os dias. As duas salas dão-me capacidade para sentar 150 pessoas ao mesmo tempo. Tenho marcações até outubro. Atualmente tenho meia dúzia de funcionárias a trabalhar diariamente, e ao fim de semana são dez. Sei que também estou a ajudar a desenvolver o meu concelho.
O melhor de viver aqui na aldeia é a qualidade de vida que a gente tem, e esta facilidade de, em cinco minutos, chegar onde for preciso. Depois de tantos anos em Lisboa, hoje não me digam para ir para lá. Aliás, está muita gente a regressar de lá para aqui. Depois da COVID perceberam que podiam vir embora, que aqui o custo de vida é menor, vamos estando num cantinho sossegado, onde tudo é muito mais tranquilo.
E há este rio, este verde. Eu acho que também é este amor pela minha aldeia e pelo meu concelho de Tarouca, e o amor naquilo que faço, na comida que faço, que me faz sentir aqui tão bem.
O meu sonho ainda não termina por aqui. Ainda quero fazer a minha cozinha de lareira aqui para o restaurante. Eu às vezes ainda vou à casa da minha mãe, que tem uma cozinha muito grande com uma lareira, e forno a lenha, onde levo os potes, faço os milhos, a massa à lavrador, os cordeiros. Mas não quero andar sempre a maçar a minha mãe, e o gás está a subir tanto que está na altura de fazer a lareira.
A minha mãe tem 88 anos, ainda tem uma vida ativa. E ainda me ajuda bastante, descasca batatas, vai buscar hortaliças, tem um quintal aonde nos vai buscar os grelos, couves, alfaces, tomates… enfim, todos os produtos que usamos aqui no restaurante.
Também já cá tenho quatro irmãos. Só dois é que ainda estão em Lisboa, mas já construíram casa na Ucanha para virem quando se reformarem. Dividimos uma quinta que era dos meus pais em seis partes, e todos fizemos uma casa. Consoante se vão reformando assim vêm vindo para cá, para ao pé de mim, para ao pé dos milhos….
Também tenho cá a minha filha Sofia, que é professora em Tarouca. O meu filho Filipe, a mulher e as minhas duas netinhas, a Beatriz e a Maria, é que ainda vivem em Lisboa. Estão sempre a dizer-me para ir para lá, mas agora já ninguém me tira aqui.
Mais sobre Ucanha
Ucanha, a aldeia do vale encantado
Em Ucanha, todas as ruas vão dar à ponte. Aliás, a ponte, com a sua inesperada torre fortificada, moldou a disposição geográfica da aldeia. Todo o vale do rio Varosa é uma espécie de Vale Encantado – chamam-lhe assim desde que os monges de Cister ali se instalaram. Dos monges ficaram os milhos no pote; do Marquês de Pombal ficaram as árvores de sabugueiro. Dos dias de hoje fica o orgulho dos habitantes na aldeia que continua a parecer saída de um conto de fadas.
O que fazer em Ucanha (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Ucanha, no concelho de Tarouca, distrito de Viseu. Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, mosteiros e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
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Tirou o curso profissional de Turismo por acaso, sem sonhar que um dia poderia ter a chave da torre de Ucanha e ser guia num dos mais importantes monumentos da aldeia. Mas assim é há já seis anos. Com 28 anos de vida, Flavio diz que há muito na aldeia que possa agradar a um jovem como ele.
Marta Lourenço, a enóloga
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Luísa Gouveia, a produtora de sabugueiro
Foi durante 38 anos auxiliar na escola primária da aldeia. Mas, depois de se reformar, ficou com mais tempo para se dedicar a uma das atividades que mais gosta: andar no campo, e ver as culturas a crescer. O seu momento do ano preferido é a primavera.