Nasceu numa aldeia de Arganil e queria aprender a ser terapeuta de crianças em Alcoitão. Mas “quis o destino” que fosse parar a Engenharia Agroalimentar e a um estágio na Murganheira. Hoje, com 44 anos, dois filhos e uma paixão pelo Crossfit e pelo BTT, é a enóloga responsável pelos três milhões e meio de garrafas de espumante produzidas anualmente na Murganheira e na Raposeira. Eis o seu testemunho.
“Tento pôr em cada garrafa o amor das pessoas pela terra”
Chamo-me Marta Lourenço. Nasci em Coimbra mas fui gerada no Alqueve, uma aldeia que fica nas encostas da serra da Estrela, perto do Piódão, onde viviam cerca de 30 pessoas. Agora vivem ainda menos, que a população está muito idosa e houve pouca fixação de gente. Eu vim parar a Ucanha, e à Murganheira, onde agora sou enóloga e gestora de recursos humanos, de uma forma nada premeditada.
Costumo dizer que o meu destino estava traçado, tudo me encaminhou para aqui. E eu nem queria saber de vinho, honestamente – o meu pai gostava muito, e eu fiquei um pouco com aversão.
Os meus pais são pessoas muito humildes, pobres. Eu comecei a trabalhar muito nova, com 5 anos já vendia pinhas e apanhava caruma. Com 11 anos comecei a fazer limpezas, e quando cheguei aos 16 anos já tinha trabalhado em muitos sítios. Tudo o que pudesse apanhar para ganhar dinheiro, lá estava a Marta. Mas nessa altura o Instituto Português da Juventude tinha projetos espetaculares, fiz muitos. Arranjavam coisas muito interessantes e úteis. Ganhávamos 50 euros e íamos ajudar nos lares, limpar a floresta.
Depois trabalhei em cafés. No Eduardus Bar, que ainda hoje é um dos melhores de Arganil, estive quase cinco anos – ficava lá a trabalhar depois de vir da escola. Depois fui para a Coja trabalhar para um café. Teoricamente ia só servir à mesa, mas a cozinheira saiu, assumi a cozinha. E nessa altura também trabalhava no Lidl de Arganil.
Eu trabalhava, mas nunca parei de estudar. No décimo ano fiz Técnicas Laboratoriais de Química e Biologia, e nas aulas de química espetei uma vareta de vidro num dedo mas não fui ao hospital. Fiquei cá com um vidro dentro do dedo e, passados uns três anos, estava eu a trabalhar no café, o meu dedo inchou, ficou preto… o meu organismo estava a rejeitar o vidro. Não podia trabalhar por causa da humidade, e foi nessa altura que eu me questionei se queria estar sempre a trabalhar atrás de um balcão, e comecei a pensar em candidatar-me para continuar a estudar.
Entre todos os trabalhos que tive até então, o que mais gostei foi o de trabalhar com crianças com necessidades especiais. Trabalhei na APPACDM, ia lá todos os dias à hora de almoço ajudar a dar as refeições às crianças, ensiná-las a fazer uma cama, a comer de faca e garfo, a brincar com elas. Eu estava na “Sala dos Pintainhos”, e a maioria dos meninos tinha Trissomia 21. Não consigo explicar a alegria que sentia todos os dias, quando chegava lá e eles me viam, vinham a correr abraçar-me. Era delicioso. Eu adorava trabalhar com aquelas crianças. E quando saí de lá pensei que a minha vocação era ser terapeuta ocupacional, e comecei a ver qual seria a melhor escola.
Decidi tentar entrar em Alcoitão, era a melhor escola. Fui ao Algarve, arranjei emprego no Continente (era preciso pagar os estudos!) e fui candidatar-me. No primeiro ano não entrei por três décimas; no segundo não entrei por uma décima; no terceiro ano já estava a desistir. Resolvi candidatar-me a uma escola pública, e comecei a pensar em cursos ligados à Natureza. Afinal, foi no meio dela que eu cresci. Nesse terceiro ano volto a não entrar por uma décima em Alcoitão – era frustrante para mim. Mas entrei em Engenharia Agroalimentar em Santarém e tinha entrado em Motricidade Humana em Viseu, no Piaget. Entre ir para a pública em Santarém ou para o privado, em Viseu, fui para Santarém.
Nunca chumbei, sempre tive alguma facilidade; ia às aulas, e tirava boas notas. Mas era uma bandida, de domingo a domingo, sempre a sair. Mas nunca fui de beber. Apanhei a minha primeira bebedeira no terceiro ano da faculdade, e já no final….
Bebi sete copitos num café muito famoso que há em Santarém, o Quinzena, e com sete copitos de vinho fiquei num estado que não me tinha.
Ter vindo parar a Enologia foi um acaso. Até porque nem era boa aluna, foi a disciplina em que tirei a pior nota, cheguei a tirar um 9, e fui a exame para conseguir ir para o 11. Mas a minha professora de enologia no segundo ano cismou comigo, dizia que eu tinha de ir fazer vindima para a adega de um amigo dela, que o estágio era remunerado. Falou em remuneração, e isso fez soar as campainhas. Fui para Beja, Casa de Santa Vitória. Gostei da experiência, mas não pensei mais nisso. No ano seguinte queria ir para Dois Portos, para a estação vitivinícola nacional. Eu precisava de fazer o estágio para terminar a minha licenciatura, e dizia-se que quem ia para Dois Portos tinha sempre boas notas. Mas um rapaz fala-me em vir estagiar na adega de um amigo dele – e era para vir para a Raposeira.
Venho cá, falo com o professor Orlando, que nunca aceitou estagiários do ensino superior – só os da escola técnica do Peso da Régua, mas que me aceitou. Eu tinha 22 anos, já namorava há sete com um rapaz de uma aldeia perto de Arganil. Mas o meu orientador de estágio na Raposeira apresentou-me aquele que é agora o meu marido, o Herlander, filho do professor Orlando Lourenço [dono da Murganheira].
Ele andou quatro meses a rondar-me até eu ceder. Ele diz que foi amor à primeira vista. Eu resisti, dizia que não queria nada com ele; ele insistia, eu dizia “esquece, toda a gente vai dizer que eu estou contigo por dinheiro”; ele dizia que me ia fazer mudar de ideias. E fez mesmo. Os sentimentos não se explicam. Nunca tinha sentido por ninguém o que sentia com o meu marido. É mais do que borboletas.
Acabei o outro relacionamento, e saí de Lamego já com um novo namorado. Fui acabar o curso a Santarém, e ele foi sempre muito resiliente. Ia ter comigo a Santarém fim de semana sim, fim de semana não. Estava a terminar a licenciatura, o pai dele sugeriu fazer um estágio na Proenol, e depois surgiu a oportunidade de eu ir trabalhar para as Cavas Gramona, em Espanha. O Herlander pediu-me em casamento, e eu fui para Espanha com um anel de noivado. No fim do estágio profissional, de nove meses, convidaram-me para ficar. Ainda hoje não ganho o que lá me ofereceram na altura, mas eles já sabiam que eu não ia ficar. Estava de casamento marcado, já tinha escolhido o vestido de noiva, amava o meu marido.
Casei em 2006. Em 2008 comecei a trabalhar aqui na Murganheira. Digo muitas vezes que o meu destino estava traçado, que foi o destino que me trouxe à Ucanha.
A Murganheira era a menina dos olhos do professor Orlando. Quando cheguei aqui encontrei uma coisa extraordinária. Toda a gente ajuda o outro – e em 90% das empresas eu diria que não é assim que se trabalha. Mas aqui toda a gente faz de tudo. Trabalham aqui 26 pessoas, e toda a gente faz tudo. São quase todos cá da terra.
O que mais gosto na Ucanha é deste terroir único, singular. Um sol incrível, vinhas plantadas na rocha, amplitudes térmicas muito grandes, temos muito frio e muito calor no mesmo dia, o que nos dá vinhas ímpares, produções belíssimas. É uma região especial. Não precisamos de grandes trabalhos nem de grandes tratamentos fitossanitários. Champanhe chega a ter 30 tratamentos. E eu aqui, num ano mau, faço sete (normalmente ando nos quatro tratamentos).
Na Murganheira recebemos uvas de 100 produtores. Profissionalmente é a minha maior dor de cabeça, a pré-vindima. O segredo está na matéria-prima. Há malta que diz que faz bom vinho de uvas más e uvas boas. Eu não sei fazer isso. Só sei fazer bom vinho de uvas boas.
Honestamente não conheço ninguém, em lado nenhum do mundo, que não fique espantado com o que encontramos aqui nesta região. Deus abençoou o Távora Varosa de uma forma excecional, dá-nos uvas de qualidade ímpar, e aqui temos uma cave com temperatura perfeita para a segunda fermentação – 12,7 graus, seja verão seja inverno. A minha filosofia de trabalho é manipular o menos possível e respeitar a uva o mais possível.
Agora o meu maior desafio é pôr um espumante biológico no mercado. Já estou a trabalhar nele, está quase. Já está na garrafa, a fermentar. Nós já fizemos a nossa parte, agora estão as leveduras a fazer a delas.
Eu cresci no campo, sou muito ligada à Natureza e aquilo que mais me iria fazer feliz era ver toda a região transformada em biológico. Eu não consigo controlar a produção dos outros produtores todos. E aqui na Murganheira sou ainda mais ambiciosa, faço espumante biológico mas vou ainda buscar a biodinâmica – que é ser ainda mais naturalista e mais purista. Eu tenho filhos, quero que os meus filhos no dia de amanhã vivam num mundo melhor.
Eu por cá vou continuando a fazer o que gosto. Fazia pilates, fazia crossfit, entretanto lesionei-me num pé e agora tenho feito só BTT e trail. Pego na bicicleta, subo à serra das Meadas, vou até às eólicas, faça chuva ou faça sol. Todos os dias pego na bicicleta, é o meu momento zen. Só não faço à quarta-feira, porque trabalho numa associação social.
Acho que se todos nós formos fazendo um bocadinho, pequenino que seja, teremos garantidamente um mundo melhor. É isso que eu tento pôr em cada garrafa que me passa pelas mãos, o amor das pessoas pela terra. Quando o consumidor beber um espumante nosso, o objetivo é que a pessoa mergulhe literalmente neste terroir ímpar.
Mais sobre Ucanha
Ucanha, a aldeia do vale encantado
Em Ucanha, todas as ruas vão dar à ponte. Aliás, a ponte, com a sua inesperada torre fortificada, moldou a disposição geográfica da aldeia. Todo o vale do rio Varosa é uma espécie de Vale Encantado – chamam-lhe assim desde que os monges de Cister ali se instalaram. Dos monges ficaram os milhos no pote; do Marquês de Pombal ficaram as árvores de sabugueiro. Dos dias de hoje fica o orgulho dos habitantes na aldeia que continua a parecer saída de um conto de fadas.
O que fazer em Ucanha (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Ucanha, no concelho de Tarouca, distrito de Viseu. Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, mosteiros e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
Flávio Veloso, o guardião da torre
Tirou o curso profissional de Turismo por acaso, sem sonhar que um dia poderia ter a chave da torre de Ucanha e ser guia num dos mais importantes monumentos da aldeia. Mas assim é há já seis anos. Com 28 anos de vida, Flavio diz que há muito na aldeia que possa agradar a um jovem como ele.
Filomena Matias, a cozinheira
Saiu de Ucanha tinha menos de dois anos, viveu em Lisboa, foi emigrante na Suíça. Quis regressar à aldeia dos avós há 17 anos, e decidiu que havia de (re)criar um prato que justificasse uma romaria. E conseguiu. Na Tasquinha do Matias, os milhos no pote são quase tão conhecidos quanto a Ponte Fortificada de Ucanha.
Luísa Gouveia, a produtora de sabugueiro
Foi durante 38 anos auxiliar na escola primária da aldeia. Mas, depois de se reformar, ficou com mais tempo para se dedicar a uma das atividades que mais gosta: andar no campo, e ver as culturas a crescer. O seu momento do ano preferido é a primavera.