Tirou o curso profissional de Turismo por acaso, sem sonhar que um dia poderia ter a chave da torre de Ucanha e ser guia num dos mais importantes monumentos da aldeia. Mas assim é há já seis anos. Com 28 anos de vida, Flávio diz que há muito na aldeia que possa agradar a um jovem como ele. Eis o seu testemunho.
“Estou sempre disponível para divulgar a minha aldeia”
Chamo-me Flávio Veloso, tenho 28 anos, nasci na Ucanha e tenho o privilégio de trabalhar num sítio de que gosto, aqui mesmo na minha aldeia. Estou a trabalhar como guia turístico na Ponte e na Torre Fortificada da Ucanha, e é uma coisa que eu adoro fazer. Acho que as pessoas reparam, pela forma como eu falo e defendo Ucanha, que eu sou de cá e que gosto mesmo da minha aldeia.
Também acho que quando cá chegam pensam que eu sou um estudante, ou um estagiário. Mas não, eu já trabalho aqui há seis anos, e os dias de trabalho de que eu mais gosto são aqueles em que tenho 200 pessoas a entrarem pela porta da torre adentro. Isto é melhor quando tenho muitas visitas, o tempo passa mais rápido.
Mas, quando não há visitas, eu também não me aborreço. Estudo mais um pouco, pesquiso mais coisas, tiro fotografias à aldeia, à ponte, à torre. E às vezes publico essas fotos e dizem-me sempre: “tu deves ter uma paixão pela tua aldeia”. E tenho mesmo. Eu olho para a ponte, para a torre, e vejo um mundo mágico. Às vezes vou até junto ao rio, fico a ouvir a água… relaxo muito. Apaixono-me todos os dias, por isso gosto de estar aqui. Nas minhas folgas gosto de fazer caminhadas aqui à volta, ou vou até à cidade. Mas eu gosto mesmo é deste sossego.
Não posso dizer que tinha pensado nesta profissão quando fui tirar o curso de Turismo, em Tarouca. Na altura não tinha intenções de ir para a Universidade, e o curso de Turismo era mesmo o único curso disponível em Tarouca. Pensei que era melhor tirar esse curso técnico profissional em vez de seguir Humanidades. Afinal, não tinha intenção de continuar a estudar. Quando acabei o curso fui trabalhar para uma empresa familiar de mármores, também aqui na aldeia da Ucanha. E era lá que eu estava quando surgiu a oportunidade de vir para aqui.
Lembro-me de aqui chegar, no primeiro dia de trabalho e pensar se teria tomado a decisão certa. Estava habituado a estar em família, na minha zona de conforto, e aqui vim parar. Não digo que caí de paraquedas, que eu conhecia bem isto, mas caí aqui a trabalhar sozinho. Mas agora vejo que foi a decisão certa, e trabalhar sozinho é melhor.
Eu sou 100% da Ucanha. Não só porque nasci aqui, mas os meus pais também. Os meus avós paternos e os meus avós maternos também eram de cá. Tenho mais dois irmãos; um vive cá na aldeia, o outro não. O que mais gosto na minha aldeia são as pessoas que cá moram. Elas sabem receber bem os turistas.
As pessoas sentem-se acolhidas, gostam muito da aldeia por ser bem organizada, está sempre tudo limpinho. Houve aqui uma intervenção em 2019, nos exteriores da ponte e da torre, em que se fez uma nova zona ribeirinha, com praia fluvial e área de lazer. Ficou tudo ainda mais bonito.
A ponte e a torre são os monumentos mais interessantes aqui da Ucanha, mas há outras coisas bonitas. No programa das Aldeias Vinhateiras houve um arranjo urbanístico e as casas foram todas arranjadas. É um passeio muito bonito, ir até ao cimo da aldeia, subir pela rua até ao pelourinho, onde estava a antiga cadeia e a antiga Câmara Municipal. Porque Ucanha já foi sede de concelho.
Temos muitas coisas bonitas para ver, mas o que os turistas mais procuram é sem dúvida a ponte e a torre. Principalmente o turista nacional, mas também temos muito turista espanhol, brasileiro, americano, inglês. Antes da pandemia tínhamos muitas visitas de escolas. Nos últimos dois anos desapareceu tudo, espero que agora voltem outra vez.
A visita à torre é gratuita, e muitos grupos que aqui chegam já trazem guia, por isso fazem a visita livremente e eu só auxilio em algumas dúvidas. Quando chegam famílias ou turistas independentes, eu aviso que podem visitar a torre de forma gratuita, pergunto se precisam de ajuda, surge a conversa e eu acabo a fazer uma visita completa.
Explico quando foi construída, para que serviu, como funcionava, e, dependendo da curiosidade das pessoas, as visitas podem demorar mais ou menos tempo. Também temos na torre uma exposição sobre José Leite de Vasconcelos, o maior ilustre que nasceu aqui na nossa aldeia, e eu também gosto de explicar algumas coisas sobre a vida dele.
Ele foi professor, escritor, arqueólogo, filólogo, etnógrafo… foi o responsável pelo registo do dialeto mirandês, foi diretor e fundador do Museu Etnológico Português [atual Museu Nacional de Arqueologia].
Nasceu aqui na nossa aldeia e fez muito pelo nosso país. Só esteve cá até aos seus 16 anos, mas nunca se esqueceu da terra. Foi o responsável por obras importantes nesta torre, como a colocação da cobertura em 1930. Até aí a torre estava a céu aberto, só com as ameias. Ele achava que a torre tinha de ser coberta para preservar o monumento. E foi assim que se colocaram as portadas de madeira e o telhado.
A ponte está relacionada com os monges cistercienses que dominaram esta zona, como provam os dois mosteiros implementados aqui bem perto – o de Salzedas e o de São João de Tarouca. Ucanha e Salzedas estão ligadas em termos históricos por serem o mesmo couto monástico. Aqui em Ucanha era a entrada desse couto monástico. Estes terrenos pertenceram a D. Afonso Henriques, que depois os vai doar a Egas Moniz, casado com Teresa Afonso, fundadora do Mosteiro de Salzedas. Ela fez uma doação aos monges de Salzedas. Na altura chamava-se couto de Algeriz (não era Salzedas) e aqui Vila da Ponte.
Eu gosto muito de ler sobre este período e de contar estas histórias. E adoro quando são organizados eventos e espetáculos a evocar esses momentos. O monumento integra a rede do Vale do Varosa, integrado pelo Museu de Lamego e a Câmara de Tarouca, que fazem a gestão conjunta de cinco monumentos. Além da Ponte e da Torre da Ucanha, temos o Mosteiro Salzedas e o Mosteiro São João de Tarouca, aqui no nosso concelho, e ainda o Convento de Ferreirim e a Capela de São Pedro de Balsemão, no concelho de Lamego. Eu estou a trabalhar para a Junta de Freguesia da Ucanha e Gouviães, com base no protocolo que assinaram com a rede do Vale do Varosa.
Não há muita gente a viver aqui na aldeia durante todo o ano – às tantas não chegamos a 200. Ficaram as pessoas mais idosas, há casais com os filhos até ao décimo segundo ano, por isso ainda há alguns adolescentes. Mas, quando chegam à maioridade, a maior parte emigra… e até vão mais para o estrangeiro do que para o Porto ou para Lisboa. Vão trabalhar em hotéis, restauração, agricultura. Infelizmente, as pessoas pensam muito em cidades, mas nas aldeias a gente também tem muito por onde se divertir.
Desde abril/maio até setembro, não há terra que não tenha festa; de verão temos muito para nos entreter. De inverno é tudo um pouco mais parado. Mas, apesar de sermos da Beira Interior, estamos perto de Vila Real e Viseu; estamos a hora e meia do Porto e a dez minutos de Lamego, que já é uma cidade com muita oferta.
Eu nunca vivi numa cidade, mas vou lá muitas vezes e apercebo-me que o custo de vida é bem mais alto. Aqui a vida é mais barata… as rendas, os restaurantes. Pode até ser difícil arranjar emprego e trabalho, mas os que podem trabalhar em qualquer lado com uma ligação à internet têm aqui uma boa opção. A rede fixa é boa – a móvel às vezes falha. Dentro da torre, por exemplo, não temos grande cobertura. Mas no meio da ponte já há. E eu digo aos turistas, visite a torre primeiro, e depois vai à ponte tirar fotografias. Assim não se distraem (sorrisos).
Eu vivo aqui na Ucanha… e tenciono continuar a viver e a trabalhar aqui. Não sei se irei ficar cá para sempre, mas nos próximos anos é onde me vejo. Quero estar envolvido em projetos na aldeia. Tudo o que sejam projetos para o bem da aldeia e da comunidade, seja ao nível da Junta de Freguesia, da Associação Cultural, da Câmara Municipal de Tarouca, sejam projetos da rede das Aldeias Vinhateiras ou do Vale do Varosa, eu estarei sempre disponível para participar e para ajudar a divulgar a ponte e a torre da Ucanha. Eu sou muito feliz aqui.
Mais sobre Ucanha
Ucanha, a aldeia do vale encantado
Em Ucanha, todas as ruas vão dar à ponte. Aliás, a ponte, com a sua inesperada torre fortificada, moldou a disposição geográfica da aldeia. Todo o vale do rio Varosa é uma espécie de Vale Encantado – chamam-lhe assim desde que os monges de Cister ali se instalaram. Dos monges ficaram os milhos no pote; do Marquês de Pombal ficaram as árvores de sabugueiro. Dos dias de hoje fica o orgulho dos habitantes na aldeia que continua a parecer saída de um conto de fadas.
O que fazer em Ucanha (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Ucanha, no concelho de Tarouca, distrito de Viseu. Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, mosteiros e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
Marta Lourenço, a enóloga
Nasceu numa aldeia de Arganil e queria aprender a ser terapeuta de crianças em Alcoitão. Mas “quis o destino” que fosse parar a Engenharia Agroalimentar e a um estágio na Murganheira. Hoje, com 44 anos, dois filhos e uma paixão pelo Crossfit e pelo BTT, é a enóloga responsável pelos três milhões e meio de garrafas de espumante produzidas anualmente na Murganheira e na Raposeira.
Filomena Matias, a cozinheira
Saiu de Ucanha tinha menos de dois anos, viveu em Lisboa, foi emigrante na Suíça. Quis regressar à aldeia dos avós há 17 anos, e decidiu que havia de (re)criar um prato que justificasse uma romaria. E conseguiu. Na Tasquinha do Matias, os milhos no pote são quase tão conhecidos quanto a Ponte Fortificada de Ucanha.
Luísa Gouveia, a produtora de sabugueiro
Foi durante 38 anos auxiliar na escola primária da aldeia. Mas, depois de se reformar, ficou com mais tempo para se dedicar a uma das atividades que mais gosta: andar no campo, e ver as culturas a crescer. O seu momento do ano preferido é a primavera.