Foi durante 38 anos auxiliar na escola primária da aldeia. Mas, depois de se reformar, ficou com mais tempo para se dedicar a uma das atividades de que mais gosta: andar no campo e ver as culturas a crescer. O seu momento do ano preferido é a primavera. Eis o seu testemunho.
“Não me canso de abrir a janela e ver os sabugueiros em flor”
Chamo-me Luísa Gouveia, tenho 69 anos e vivo na Ucanha desde que casei. Nasci no povoado aqui ao lado, em Valdevez, que pertence a esta freguesia, e o meu marido é que nasceu aqui na Ucanha. Quando casámos fomos viver na casa onde nasceu o professor José Leite de Vasconcelos. Primeiro fomos caseiros. Mas comprámos a quinta há 38 anos e somos um dos maiores produtores de sabugueiro aqui do concelho. Temos uma área de dois hectares com vários cultivos, mas a maior parte é o sabugueiro.
Uma das coisas de que eu gosto é abrir as janelas de casa e olhar para as árvores da quinta, todas floridas, ali por volta do mês de maio. Acho que é a época do ano mais bonita, que é quando a maior parte da agricultura se desenvolve. Em abril é o trabalho mais duro, das sementeiras, mas em maio é a batata que está a ficar grandinha, o feijão também e o sabugueiro está em flor. O fruto também tem a sua piada, passa por aquela fase de estar tudo verde e de os sabugueiros ficarem todos carregadinhos. Mas lindo, lindo é o mês de maio, a altura da floração. Não me canso de apreciar isso.
Nós vemos as alterações climáticas nas nossas árvores.
Luísa Gouveia
Nós agora temos muitos sabugueiros, porque plantámos muitas árvores. Antigamente só se usava plantar nas beiras das paredes, nas extremas dos campos. Antes de eu comprar esta quinta, tinha aqui vivido um tio meu e até tinha sido ele a plantar as extremas.
Depois, o dono da quinta também mandou plantar alguns, mas toda esta parte, em que vê os calços todos seguidos com sabugueiro, já fomos nós que plantámos. Arrancámos alguns pomares para plantar sabugueiro. Isto porque vender a fruta é complicado, é maior a despesa do que o rendimento. Ou temos quantidades muito grandes, que realmente se consigam manter no mercado, ou então não vale a pena a gente andar a trabalhar. Não é por causa de dar mais ou menos trabalho – antes o sabugueiro não dava trabalho nenhum, mas agora dá, que é preciso regá-lo.
Nós vemos as alterações climáticas nas nossas árvores. Este sabugueiro aqui, por exemplo, há uns anos por esta altura estaria enorme. Agora nota-se que lhes falta aquela humidade. Mesmo com a rega. O sabugueiro dura muito, temos árvores com mais de 40 anos. Mas os que plantámos mais recentemente não aguentam muito tempo. Deram uma puxadinha no primeiro ano, pegam bem, rebentam, mas agora custa mais. A terra deve estar muito seca, mesmo que se regue. Devem precisar daquela humidade que já não há.
Antigamente também toda a gente secava a baga antes de a vender. Agora já quase ninguém seca. Eu ainda ponho algumas nas eiras a secar, e também não é porque paguem melhor ou pior – é verdade que seca se paga melhor um bocadinho, mas é mais pela organização do trabalho.
Ela não amadurece toda ao mesmo tempo. Nós vamos apanhando, pondo a secar na eira, está lá uns quatro dias a secar. Se fosse para apanhar toda para ir para a fábrica que faz a transformação da baga, e cumprir os horários deles, tinha de meter gente… e aí já tinha prejuízo. Essa fábrica só abre em agosto. E nós começamos a apanhar em julho e andamos o mês todo de agosto. Mas às vezes ainda andamos a apanhar em meados de setembro. Isso era quando ela atrasava mais do que agora. Agora amadurece mais cedo.
Sempre me lembro de ver sabugueiros aqui na aldeia. Antes toda a gente tinha, e usava para pôr no vinho – porque dava uma boa cor aos vinhos tintos. Mas agora não se pode – é ilegal. Mas tem muita procura na indústria farmacêutica. O daqui vai quase todo para a Alemanha. Ficamos com pouco para nós. Pode usar-se para fazer licores ou doces, mas eu também não aposto muito nisso. Não faço para vender para fora nem para comer em casa – os meus filhos não são grandes apreciadores.
Fui funcionária do Estado quase 40 anos. Trabalhava na escola primária daqui, era auxiliar de ação educativa. Gostava muito do meu serviço. Mas há uns 12 anos fecharam aqui a escola, concentraram tudo em Tarouca. E aí eu já não aguentei muito tempo. Ainda estive quatro anos, mas depois vim-me embora, pedi a reforma antecipada.
Não é que não me tivessem recebido bem, eu é que não lidava bem com a responsabilidade de trazer os meninos no autocarro. Passava em várias freguesias, e era muito complicado, porque às vezes a gente não sabia a quem os entregava. Eu andava num stress, porque perguntava-me se os teria deixado à pessoa certa.
Por isso, quando fiz 60 anos e percebi que havia a possibilidade de pedir a pré-reforma (até porque se falava que iam aumentar a idade da reforma, para os 66 ou 67) decidi vir para casa. E não me custou isso do “vir para casa”, porque sabia que era para vir para o campo, que foi onde eu trabalhei até aos 20 anos, e ainda podia ajudar muito o meu marido.
O sabugueiro tem muita procura na indústria farmacêutica.
Luísa Gouveia
Há muito menos gente na aldeia, agora. Quando comecei a trabalhar e vinha de Valdevez para cá, e mesmo depois que casei e comecei a trabalhar na escola, eu tinha de atravessar a aldeia. E ao subir a rua até lá acima, fartava-me de dar os bons dias a quem encontrava – havia sempre gente. E agora já subo a rua toda e não dou os bons dias a ninguém. A maior parte dessas casas por aí acima está tudo sem ninguém.
Eu gosto muito de crianças e tenho saudades de trabalhar com os meninos da escola – afinal, foram muitos anos! Mas é engraçado vê-los aí no povo, muitos já crescidos, alguns já com filhos e netos. Eu não tenho netos. Tenho um filho, que tirou o curso de Engenharia Florestal, trabalha na área da topografia e vive aqui connosco. E também tenho uma filha, que ainda trabalhou cá, mas depois foi para Lisboa e gostou. Ficou por lá.
Eu nunca me apeteceu ir para outro lado. Quando organizámos a vida pensámos sempre em ficar por aqui. Acho que não me dava bem na cidade. Gosto de ir, de vez em quando, mas é ir e vir…
Eu já não vou para nova, a vida no campo dá trabalho e eu já ando para aqui toda empenada. Mas é disto que eu gosto. O trabalho é duro, mas não tem stress… não tenho de estar em lado nenhum às oito, para meter meninos no autocarro, para isto ou para aquilo. Posso estar às 8h10. Fazemos ao nosso ritmo e como podemos. O sabugueiro é a nossa maior produção, no ano passado chegámos a fazer 12 mil quilos. É muito volume. E vai tudo para a indústria farmacêutica, para a Alemanha.
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