Conta-se que, desde há muito tempo, num pequeno vale abrigado por grandes pedras arredondadas, na raia com Espanha e a oeste de um rio que corre para norte e se chama Côa, vivia uma pequena comunidade de gente corajosa, simples e afável. Desde há 25 anos que a aldeia da Cabreira, no concelho de Almeida é também a morada da ASTA, uma associação sócio terapêutica dedicada à deficiência mental, que não tem utentes nem clientes. Tem companheiros e é um caso sério de compromisso com a integração social.
Joaquim Caramelo tem 87 anos, sorriso franco e bigode farto. Morou praticamente a vida toda na aldeia da Cabreira, numa família onde eram 16 irmãos. Por estas terras do concelho de Almeida e distrito da Guarda a vida era dura, o trabalho à volta dos campos e do gado era intensivo permanentemente. Mas Joaquim não queria mais nada, só esteve em França o tempo suficiente para amealhar “algum”. Para poder comprar casa para viver com a sua Josefa, que também nasceu na aldeia.
Recorda-se bem dos tempos em que as casas estavam todas habitadas, havia muita gente nas ruas e ele trabalhava em campos férteis, que a uma sementeira devolviam “um vagão de batatas”. Agora já não mora muita gente na aldeia, e ele já não vai até às hortas. “O melhor da aldeia é comer e beber e estar à boa vida, que agora não fazemos nada”, brinca.
A Cabreira fica numa encosta muito íngreme e acidentada, é o limite de uma estrada sem saída, não é passagem para lado nenhum. Mas é uma aldeia fotogénica, onde pedras gigantes rodeiam as casas antigas, onde há noras e alminhas muito bem conservadas. É um vale verdejante atravessado pela ribeira das Cabras, um curso de água bordejado de freixos, amieiros e salgueiros e onde há peixinhos, lontras e lagostins numa água que corre limpa e cristalina.
No início da tarde, Joaquim está entretido a ir buscar uns barrotes de lenha para pôr ao lume. Fá-lo com calma, desde o armazém onde “guarda tudo” até ao primeiro andar da habitação, onde reside. Fá-lo com calma porque os joelhos pesam e porque assim pode prolongar as histórias e historietas da aldeia onde diz que é “muito feliz” e se sente “estimado por todos”.
Joaquim Caramelo está entusiasmado. “Logo vou lá acima (ao largo da aldeia) ao magusto, ah pois vou! A patroa não quer ir, que agora só sai de casa com a filha. Mas eu vou lá e trago-lhe umas castanhas no bolso”, conta animado.
Mais ao fim do dia haverá festa pelas ruas da aldeia. O dia 11 de novembro é o dia em que moradores, familiares, companheiros, colaboradores e todos os amigos da ASTA tornam o dia de São Martinho especial. A ASTA é a Associação Sócio Terapêutica de Almeida, fundada por Maria José Dinis, que também nasceu na Cabreira, junto à lareira da avó. Foi nessa mesma casa que abriram as primeiras instalações da ASTA, há já 25 anos.
O Magusto é uma instituição no interior da comunidade. Porque há música, há comes e bebes, há convívio junto à fogueira, há um repasto financiado pela Junta de Freguesia e, logo após o pôr-do-sol, há um desfile pelas ruas, com cânticos e candeias, e há uma encenação da Lenda de São Martinho.
Caramelo anuncia que ainda vai ter de trocar de calças “para não ir muito feio”. “Lindo nunca fui, vá”, brinca, sempre bem-disposto.
O ponto de encontro é às 16h00, para se ver a mesa posta ainda com a luz do dia, e o convívio entre amigos, familiares, vizinhos e visitantes se possa fazer ao som da música. Este ano o responsável pelo Pé Coxinho, o grupo musical que surgiu no seio da ASTA, está adoentado, mas uma concertina tornou-se alternativa.
Depois do sol se pôr, e no lusco-fusco que deixa o céu azul escuro, são as candeias que companheiros e colaboradores estiveram a fazer nos últimos tempos, que vão desfilar nas mãos de cada um pelas ruas da aldeia. Todos têm uma. Companheiros, colaboradores, vizinhos, visitantes. E todos cantam, mais ou menos sintonizados.
“Eu vou com a minha lanterna,
E a minha lanterna comigo
a noite é linda, a noite é longa,
la bimba, la bamba, la bumba”.
As ruas estreitas da aldeia são serpenteadas pela população até chegarem ao largo mais largo da aldeia – o Largo do Lugar. É aí que vai haver a representação teatral da lenda de São Martinho. Surge Joaquim Clemente, habitante da Cabreira, montado no seu cavalo e vestido a rigor, de cavaleiro romano, como diz a lenda.
Pedro Pimentel, que é, afinal, responsável pela oficina de carpintaria na ASTA há quase 18 anos, está vestido de pobre Martinho. Não precisam de dizer nenhuma palavra, que ambos sabem como, com gestos, mostrar emoção. Clemente partilha a capa com Pimentel, a lenda da bondade fica ali representada.
O desfile é retomado, os cânticos também, até terminarem na igreja da aldeia, que fica cheia até à porta.
“Porque gostamos tanto deste tempo de São Martinho?”, pergunta Maria José, no púlpito da igreja. É também ela quem responde: “Porque este é um tempo de partilha, um ato de dar ao outro. E porque mais do que nunca precisamos de olhar o outro, abraçar o outro e dar um pouco daquilo que temos. A nossa capa simbolicamente pode ser uma capa, uma coisa física, mas também pode ser algo de espiritual. Pode ser amor, pode ser compreensão, pode ser escuta”.
Diga-se que estamos numa igreja, mas há pouco de religioso. Há muito de espiritual. Maria José recorda que vamos entrar no inverno, os dias são mais curtos, mais escuros. “Precisamos, em cada local que habitamos, de iluminar um pouco as nossas ações, com a nossa forma de estar. E com as nossas intenções, possamos iluminar aqueles que nos rodeiam”. Está explicada a candeia. E a igreja esvazia-se num ápice, saem todos com as lanternas para casa, a cantar.
“Eu vou com a minha lanterna,
E a minha lanterna comigo
a noite é linda, a noite é longa,
la bimba, la bamba, la bumba”.
Ritos e ritmos
A ASTA arrancou há quase 25 anos, no dia 2 de outubro de 2000. Um dia cheio de simbolismo, já que 2 de outubro é também a data de aniversário de Marco, o filho de Maria José, que nasceu com deficiência intelectual há 46 anos.
Foi ele quem a levou a procurar respostas e a idealizar o sonho que conseguiu ver materializado na Cabreira. “Um sítio onde pessoas com deficiência mental, com deficiência intelectual e multideficiência possam encontrar um caminho de vida, possam encontrar um projeto de vida, um objetivo para a sua existência”, explica.
A instituição baseia-se muito na pedagogia curativa e na socioterapia, assente nos princípios da antroposofia de Rudolf Steiner (os mesmos que permitiram o aparecimento, por exemplo, da agricultura biodinâmica ou da pedagogia Waldorf). No seu funcionamento há, por isso, muitos ritmos e rituais.
A música, a dança, a roda, o agradecer antes e depois das refeições, o cerimonial de arranque do dia ou do fecho do dia, há momentos ritualizados que ajudam a que todos os companheiros, todos com deficiência mental, deficiência cognitiva ou multideficiência, se consigam situar, antecipar momentos e participar em todas as situações.
A palavra companheiro não é fortuita. “Companheiros porque vivemos com eles, lado a lado. Não para eles, mas com eles, aprendendo e ensinando ao mesmo tempo”, explica Maria José Dinis.
A fundadora da ASTA tem consciência de que a resposta social que fundou na aldeia onde nasceu é diferenciada. E diferenciadora: “Não temos aquela coisa clássica da instituição, que só por si é estigmatizadora. O que queremos ter com estes companheiros é uma vida normal. Por isso há casas e núcleos familiares nesta aldeia”, explica.
Hoje são 44 companheiros, com idades compreendidas entre os 19 e os 63 anos. 24 deles são internos. Os restantes 20 companheiros não são internos, conseguem ir a casa todos os dias. A organização emprega ainda 42 colaboradores e voluntários. É um rácio de quase um colaborador para um companheiro. Mas é o rácio necessário para assegurar que tudo funciona numa organização onde cada companheiro é tratado como um indivíduo, tem o seu calendário de atividades, e onde há instalações muito dispersas.
Se o funcionamento oficial da ASTA arrancou em instalações provisórias, no seio da aldeia, naquela que agora é chamada de Casa Maria José, as instalações definitivas, a sede da instituição, haveriam de ser construídas num lugar chamado Alto da Fonte Salgueira. Estes terrenos, amavelmente doados à ASTA pelo irmão de Maria José, Dinis Caramelo, ficam localizados na zona mais alta da encosta que abraça a aldeia e onde abundam pinheiros e outras árvores autóctones.
É aqui que hoje em dia funcionam a Casa da Fonte (Lar Residencial e de Apoio), o Atelier Verde Pino onde estão os vários ateliers ocupacionais e terapêuticos (a olaria, a tecelagem, a lã ) e onde há ainda dois outros edifícios para receber a oficina de carpintaria e o “Ninho”, onde estão os companheiros com incapacidades mais profundas.
Em baixo, no meio da aldeia, há várias instalações, além da já referida Casa Maria José, onde continua a viver a fundadora, o filho Marco e a companheira Fátima. Há a Casa de São Miguel, onde vivem cinco companheiras (a Sara, a Filipa, a Joana, a Lurdes e a Maria) e o pai de casa, o João. Na Casa da Oliveira vivem o Nuno, o António, o David, o Sérgio e o Guilherme. E o pai de casa, o Jean.
Alguns companheiros vão a casa ao fim de semana. Outros vão a casa uma vez por mês, duas ou três vezes por ano. Alguns, nunca. Porque não têm retaguarda familiar, porque têm histórias de vida de abusos, maus tratos, exclusões. A verdade é que o que mais pesa não é a história, a deficiência, o passado. O que mais se valoriza é o presente e a proposta de futuro.
Luís Fonseca, que já fez de tudo na associação (foi voluntário, colaborador, pai de casa, isto é, viveu numa das casas com cinco companheiros) e hoje é o responsável pelo atelier de agricultura e é também presidente da Junta, explica de forma simples a forma como companheiros e aldeões se tornaram vizinhos, e amigos. E dá o exemplo de Ti Joaquim que não saberá dizer qual é a deficiência de David. “Mas sabe descrevê-lo, contar histórias dele, conhece-o e aceita-o”.
No início talvez tivesse havido receio “dos doidinhos que vinham para aí”, admite Luís Fonseca. Mas a verdade é que, hoje em dia, não há qualquer tipo de preconceito sobre esta população. “É o David, é o João, é a Marta, ninguém lhes vê nada de anormal dentro da sua vida diária. Porque os conheceram assim, são assim, aceitaram-nos assim”, argumenta. E com os companheiros da ASTA passa-se o mesmo. “Também aceitam o Sr. Joaquim com o seu bigode, com a sua boina, entendem-se”, conclui Luís Fonseca.
Luís Fonseca diz que há um antes e um depois da chegada da ASTA à Cabreira. As necessidades da ASTA têm permitido a recuperação de vários imóveis na aldeia. O atelier “três ofícios”, onde funciona o Centro de Atividades Ocupacionais da associação, e onde se trata e se trabalha a lã de ovelha, o papel reciclado e a cera de abelha; a quinta dos Três Sóis onde funciona o atelier de Agricultura e Pecuária, em que se tratam de vários animais e se plantam hortícolas e aromáticas; ou ainda a Cozinha S. Francisco, um antigo estábulo de animais transformado em cozinha pedagógica, e onde se preparam e servem refeições para todos os colaboradores e companheiros da associação.
A dinâmica que a ASTA trouxe à aldeia permite que até o velho forno comunitário se mantenha a funcionar de inverno, e pelo menos uma vez por semana, os companheiros da ASTA vão lá cozer pão. Existe ainda a Casa Cristalina, onde vivem colaboradores e a Casa de Mateus, uma suite adaptada na aldeia que está preparada para receber visitantes e turistas.
Ainda há muitas casas para recuperar, mas a dinâmica está mesmo instalada, como confirma Luís Fonseca. “Há uns tempos, ouvi alguém dizer que estava a reconstruir a casa, a fazer um investimento para a sua reforma. E eu perguntei ‘como assim? vens para aqui?’. E não era o caso. O pensamento era outro. Era pensar que a ASTA há de ter um fisioterapeuta, há de ter uma enfermeira, há de ter a Cozinha São Francisco para nos podermos alimentar… Nós que estamos na aldeia sentimos isso. Mas quando ouvimos pessoas de fora a ter este pensamento ficamos ainda mais a acreditar que estes projetos valeram a pena”, argumenta.
Fonseca tem o conhecimento e a autoridade de quem está à frente da União de Freguesias de Amoreira, Parada e Cabreira para poder dizer que as localidades à volta da aldeia estão a beber da experiência da ASTA para se desenvolverem. “Mesmo não havendo ASTA nas outras localidades, as pessoas estão a vir, nas férias, ao fim de semana. Tentam fazer aqui os seus projetos de vida, seja para se instalarem aqui, seja para valorizarem os seus investimentos na reforma”, conclui o presidente da Junta.
À exceção do verão, com o regresso dos emigrantes, os dias sucedem-se na Cabreira com muita tranquilidade e pouco rebuliço. Os cadernos eleitorais apontam para 88 moradores na Cabreira, diz Luís Fonseca. Há duas crianças pequenas – as de um casal jovem que escolheu a aldeia para morar, por ficar a meio caminho do posto de trabalho da mãe, em Vilar Formoso, e do pai, na Guarda.
Mas continua a ser uma população muito envelhecida, aquela que vive e resiste na Cabreira. Joaquim Caramelo diz que se não fossem os companheiros da ASTA e a dinâmica que ali imprimiram os moradores da Cabreira até “tinham medo de aqui morar”.
Contigo, há Descoberta
“Num dia de curiosidades, especulando sobre o porquê do nome desta aldeia, a Cabreira, alguém (não me lembro quem) alvitrou que ele se deveria a uma guardadora de cabras, a cabreira, que um dia se perdeu e não voltou, deixando saudades e lembranças naqueles que a conheciam”. As palavras são de Maria José Dinis, e começam a introdução do livro “A Menina Cabreira” de que é autora. Nesse livro explica porque sentiu a vontade de interpretar aquele lugar, “dando corpo a um modelo inocente e suave, a ter em conta para a memória desta povoação e de todos os seus descendentes e amigos”.
Nesse livro, editado em setembro de 2020, conta que há muito tempo, “num pequeno vale habitado por grandes pedras arredondadas, a que chamam agora barrocos, (…) vivia uma pequena comunidade de gente corajosa, simples e afável”.
E relata a história da menina pastora de quem todos na aldeia gostavam e que todos os dias ao amanhecer subia ao barroco mais alto para saudar o novo dia, acompanhada pelo balido e chocalhos das suas ovelhas. Um dia, a menina pastora deixou de aparecer e a população começou a procurá-la, todos os dias, durante muito tempo pronunciando o seu nome com força e saudade – Cabreira, Cabreira!.
Este mesmo livro havia de ser o mote para, em setembro de 2021, começarem a ser efetuadas as visitas guiadas à aldeia da Cabreira, realizadas pelos companheiros da ASTA que integram o atelier do “Contigo, há Descoberta”. Este programa é uma iniciativa de turismo social, inclusivo e de natureza coordenado por Anémone Leton, uma belga especializada em turismo, que encontrou na Cabreira, e na ASTA, um sentimento de paz e um sentido para a vida.
A ideia de fazer um programa de turismo surgiu com a necessidade de dar resposta aos muitos interessados que, ao longo da existência da ASTA, sempre foram perguntando se era possível ficar mais tempo com os companheiros e conhecer melhor as atividades da instituição.
Anémone (que sempre se interessou pelas potencialidades e pelo impacto que tem o turismo nas populações mais frágeis, como os idosos) nunca havia pensado que iria ser numa aldeia do distrito da Guarda onde iria dar por concluída a sua ânsia de viajante sempre à procura de um lugar e de um propósito.
Começou a trabalhar a oferta turística da ASTA sempre no pressuposto de colocar os companheiros como personagem central destas atividades. “São eles que conduzem as atividades, são eles que mostram os saberes em que se tornaram mestres”, explica.
Além das oficinas de artesanato, onde se procuram manter vivas tradições como a transformação da lã, o trabalho no barro, as práticas tradicionais de tecelagem ou a criação de velas com a cera de abelhas, o programa “Contigo, há Descoberta” – considerado pelo Turismo de Portugal um negócio de animação turística em 2022 – oferece visitas guiadas nas aldeias históricas de Almeida e/ou Castelo Mendo ou vários percursos dentro da aldeia, nos chamados “Trilhos da Pastora”. Há dez companheiros que estão no programa “Contigo, há Descoberta”.
Guilherme Anjos, António Bordalo e Milene Sieiro são os três companheiros que mais visitas guiadas têm feito. “Eles sabem o que têm para contar e para transmitir. Mas, às vezes, ficam um bocadinho nervosos. Assim, basta um olhar, ou basta eu lembrar uma pequena questão, fazer um gesto, e logo vai outra vez fluir”, explica Anémone.
Estas visitas turísticas passaram a estar integradas nas respostas sociais que a ASTA proporciona, lembrando a coordenadora de turismo que acompanha as visitas apenas para apoiar os companheiros.
“É o trabalho deles. A minha preocupação era que não ficassem a dizer as frases como um robô, mas que dessem emoção ao que estão a contar. Às vezes temos os companheiros narradores e temos companheiros a fazer gestos, a interpretar tudo o que eles contam. E é giro ver essa complementaridade”. Os resultados têm sido muito positivos. Para os visitantes e clientes destes programas e também para os companheiros, que têm mostrado que as pessoas com deficiência podem prestar um serviço com qualidade.
Quando o programa foi montado, a responsável da ASTA admite que a expetativa era que os programas de visita a Almeida e a Castelo Mendo fossem os mais procurados. “Mas as pessoas que vêm visitar a ASTA gostam muito mais de ficar na própria aldeia. E os Trilhos da Pastora contam a história desta bonita aldeia. São, afinal, a história deles, a nossa história”, sintetiza Anémone.
Além da autoestima, o que o “Contigo, há Descoberta” aporta aos companheiros é o sentido de responsabilidade, a noção de que é uma profissão, um trabalho a sério, há horários a ter de cumprir. O sentido de responsabilidade do trabalho é muito importante. Anémone leva-lhes autoconfiança, mais do que tudo.
A Menina Cabreira
Milene Sieiro não esconde o entusiasmo por ir guiar mais uma visita. Se lhe perguntam qual é a visita que mais gosta de fazer responde de imediato, “Todas!”. Apresenta-se como a “poderosa do Vale da Mula”, a aldeia perto da fronteira onde nasceu há 30 anos, e a quem o irmão disse que ela devia “ser corajosa e valente e enfrentar os seus próprios medos”. Está na ASTA há quase dez anos, e diz que ter vindo foi a melhor decisão que tomou na vida. “Muito melhor do que estar fechada em casa sem fazer nada!”. Enérgica, desenfreada, divertida, Milene ri-se das suas próprias características – “Já sei, já sei, Calma, Milene! Calma, Milene. Respira, respira!”. Além das visitas guiadas, Milene já passou pela olaria e pela tecelagem. Mas foi nos trabalhos com lã que encontrou a oficina de que mais gosta.
O frenesim de Milene é temperado pela tranquilidade de António Bordalo. Também é de Almeida, também está na ASTA há quase dez anos. Mas se Milene regressa a casa todos os dias, António só vai ao fim de semana. Além das visitas guiadas é o tocador de bombo e o tenor de eleição da banda Pé Coxinho, um grupo musical que já fez muitas apresentações públicas na região.
São eles quem nos vão guiar em mais um percurso ao longo dos Trilhos da Pastora, e dar explicações acerca das alminhas e das noras que encontramos ao longo do percurso, nos explicam o nome da Ribeira das Cabras, descrevem a vegetação que se encontra no percurso. Até vão poder mostrar “a parte mais importante da história”, como diz Milene, para logo acrescentar que não pode revelar o final, o segredo mais bem guardado.
É António Bordalo quem dá o mote: “Um dia o sol nasceu e só lá estavam as cabras em cima do barroco. As pessoas subiram ao barroco mais alto e chamaram “Cabreira, cabreirinha, onde estás tu agora?”. E não ouviram nada. Só ouviram os ecos do vento. E ficaram muito tristes por muito, muito tempo. Andaram à procura, mas não a encontraram. Até que um dia decidiram voltar ao barroco mais alto e voltaram a chamar.
– Cabreira! Cabreirinha! Onde estás tu agora?
E aí, ouviram algo de novo.
– Ah, o que será?, pergunta Anémone.
– Até que se ouviu a voz da menina cabreira, responde António.
– O que é que ela respondeu?, insiste Anémone.
– Pois, diz lá Tó, espicaça Milene.
– Eu estou aqui e sempre estarei, enquanto os pássaros chilrearem, as abelhas zumbirem, as crianças brincarem, e toda a gente chamar por mim, eu estarei aqui.
– Ou seja, ela está por todo o lado. Por toda a natureza.
O diálogo é orgânico, o entusiasmo é honesto e o desfecho é convincente.
À conta destas visitas guiadas, Milene e António aprenderam muito. E tornaram-se eficientes em transmiti-lo – as deficiências são barreiras que aprendem a ultrapassar. E os Trilhos da Pastora e a história da menina Cabreira que dá nome à aldeia fazem com que gostem ainda mais dela. António Bordalo diz que os seus vizinhos de toda a semana “são muito boas pessoas”. Guilherme Anjos, que vive sempre na aldeia, na Casa da Oliveira, corrobora. “Todas as pessoas são especiais”, afirma.
Guilherme é mesmo um dos companheiros mais novos a viver na Cabreira. Tem apenas 21 anos, vive na ASTA desde os 19. É natural do concelho de Almeida (de Figueira de Castelo Rodrigo), estava institucionalizado no Lar dos Maristas, em Ermesinde, uma casa de acolhimento que dá resposta social a crianças e jovens em risco de exclusão.
Quando se aproximavam os 18 anos de idade, Guilherme procurou na internet uma solução para o seu problema. “Procurei uma segunda família para mim. Procurei amigos, novos amigos, novas pessoas, uma comunidade diferente do habitual”, explica. E encontrou-as. “Para mim, as pessoas são todas especiais”. E, quando soube que lhe ia ser pedido um pequeno depoimento, fez uma pequena noitada para escrever uma nota emocionada dedicada a Maria José e ao filho Marco – “porque se não fossem vocês [os dois] os companheiros não estavam aqui”. Guilherme agradece a ajuda preciosa que lhe têm dado todos os colaboradores da ASTA.
“A Cabreira enriqueceu-se com a nossa presença”, confirma Maria José, habituada a dar e a receber afetos (mesmo que nem suspeite deste, em concreto, do Guilherme). Ainda há muitas casas para recuperar, e também há lista de espera para entrar na ASTA, há projetos para financiar e burocracias cada vez mais difíceis de resolver. Mas o tempo não pára e a vontade de fazer mais e mais também não. Maria José já não está na direção executiva da ASTA – reformou-se. Mas não parou de sonhar, nem de pretender que a comunidade terapêutica que idealizou possa dar resposta a cada vez mais companheiros.
O parágrafo final do livro “A Menina Cabreira” escrito por Maria José pode também ser o parágrafo final desta reportagem.
“A aldeia cresceu, com novas casas e novos habitantes, mas não muito – para que possam continuar a ouvir-se os ecos da natureza, ainda pura. Há mais gente que parte, ou que parte e que volta, porque os caminhos foram-se alargando e prolongando para muitos outros lugares. Ainda se vêem algumas cabras e ovelhas pastando e hortas despontando; os barcos estão iguais, cheios de rostos, histórias e mistérios; os passos das gentes ainda percorrem, agora mais apressados nas idas e vindas, os trilhos da pastora. Mas há ouvidos atentos que, às vezes, conseguem escutar nos ecos do vento, a voz da Cabreira que anda por aí – sim, ela vive por aí… hão de encontrá-la e reconhecê-la aqueles que a amarem”.
Cabreira, cabreirinha! Onde estás?
Mais sobre Cabreira
“Contigo, há Descoberta”, um programa de turismo inclusivo
Iniciativa de turismo social, inclusivo e de natureza é dinamizada pela ASTA – Associação Sócio Terapêutica de Almeida, e tem uma oferta estruturada de um, dois dias ou uma semana direcionada para adultos e crianças, empresas e famílias, todos os que procurem uma experiência turística humanizada e humanizadora.
Ler Artigo “Contigo, há Descoberta”, um programa de turismo inclusivo
Maria José Dinis, a mãe
Natural da Cabreira, aldeia de Almeida onde nasceu há 69 anos, Maria José aprendeu a ser pedagoga e socioterapeuta por causa do Marco, um filho que lhe nasceu deficiente. Maria José apresenta-se como mãe de Marco e é, também, mãe da ASTA, a associação sócio terapêutica com 44 companheiros e 42 colaboradores que ajudam a povoar e a dar sentido a esta pequena aldeia do Interior. Uma aldeia que tem magia.
Anémone Leton, a viajante que encontrou a paz
Nasceu na Bélgica, viajou pelo mundo, é profissional de turismo. Aos 34 anos diz ter a sorte, e o privilégio, de ter encontrado no projeto da ASTA um sentido para a vida e um espaço onde quer montar um ninho familiar, e continuar a aprender. É coordenadora do projeto “Contigo, há Descoberta!”, uma iniciativa de turismo social, inclusivo e de natureza. Agora só está preocupada em continuar a aprender, vai tirar o curso de Socioterapia e Pedagogia Curativa para poder partilhar com os companheiros muitas descobertas.
Guilherme Anjos, o guia turístico
Nasceu numa aldeia de Figueira de Castelo Rodrigo, mas passou a infância e a juventude numa casa de acolhimento para jovens em risco, perto do Porto. Antes de chegar aos 18 anos, foi ele quem pesquisou na Net e procurou o seu destino. Encontrou a ASTA e desde há três anos é um dos companheiros que vive na Casa da Oliveira, bem no centro da pequena aldeia de Cabreira do Côa. É, entre muitas outras coisas, um apaixonado guia turístico.
Luís Fonseca, o braço direito
Foi quando uma amiga de infância lhe pediu contactos que ele entregou toda a sua ajuda. Ajudou-a a montar a associação, e desempenhou nela muitos papéis. Foi voluntário, depois funcionário, foi pai de casa e agora é responsável pela parte agrícola do projeto ASTA. É presidente da Junta.
Milene Sieiro, a miúda forte e valente
Tem energia inesgotável, um eterno ar de menina traquina, um sorriso contagiante. Milene Sieiro tem 30 anos mas sente-se com 19. Não é residente da aldeia, mas é uma das companheiras que vem para a ASTA todos dos dias, há já 9 anos. É, também, uma das guias turísticas habilitadas para acompanhar visitantes no programa “Contigo, há Descoberta”.