Foi quando uma amiga de infância lhe pediu contactos que ele entregou toda a sua ajuda. Ajudou-a a montar a associação, e desempenhou nela muitos papéis. Foi voluntário, depois funcionário, foi pai de casa e agora é responsável pela parte agrícola do projeto ASTA. É presidente da Junta. Eis o seu testemunho.
“A ASTA mudou a vida da minha aldeia e mudou a minha vida”
Chamo-me Luís Fonseca, tenho 54 anos, e não nasci na Cabreira. Os meus pais eram emigrantes, e à última hora pensaram que eu devia nascer em Portugal … e acabei por nascer no caminho. Portanto, nasci a caminho de Portugal, mas sou português e sou oriundo da Cabreira. A Cabreira é a minha casa. Mas eu andei por alguns lados. Os meus pais estiveram em Viseu. Na minha juventude, como os jovens de agora, também quis as grandes cidades, estive em Lisboa. Mas depois vemos a diferença do que é o urbano e acabamos por ter a nostalgia e voltar ao espaço onde fomos felizes.
Estava a trabalhar numa área de serviço na autoestrada, aqui perto, quando me reencontrei com a Maria José, uma amiga de infância. Falou-me do projeto da ASTA que estava a pensar criar, tentou que eu lhe arranjasse contactos, que lhe dissesse o que é que poderia fazer, onde ir e onde não ir. Eu fiquei maravilhado com o projeto, comecei a fazer os contactos juntamente com ela. Apanhou-me numa fase da vida muito particular, tinha-me acabado de falecer uma filha e o projeto de que me falava tinha algo de fabuloso.
A partir daí, vi a vida de uma outra forma. Estive muito do meu tempo ligado ao início da ASTA, mesmo muito. Cheguei a tirar a quarta-feira para trabalhar e ao sábado para dar à ASTA, e estive três anos também sem remuneração. Agradeço a mim mesmo por ter passado por aí. Porque a vida ficou totalmente diferente em mim e na minha família.
Lembro-me que, antes da ASTA vir para cá, não se usavam regularmente as fechaduras, nem chaves. As portas estavam quase sempre abertas. Chegávamos à porta de alguém, batíamos à porta e a seguir o movimento era abrir a porta para dentro, estivesse ou não estivesse gente. Quando dissemos que a ASTA vinha para a aldeia, as pessoas começaram a mudar as fechaduras, a pensar que os doidinhos vinham para aqui e que poderiam fazer algo de mal, não é? Porque culturalmente isto estava imbuído e ainda está muito nas pessoas.
Mas, passado algum tempo, começámos a ouvir as pessoas com outras preocupações. Percebiam que a carrinha chegava, mas que o David não tinha vindo na carrinha, ou porque estava doente, ou tinha tido febre, ou estava constipado. O David foi um dos primeiros companheiros a vir para a ASTA. E aqui na aldeia começaram a perceber que tipo de pessoas nós tínhamos, que não tinha nada que ver com aquilo que estava pressuposto e se pressentia e percebia. E começámos, pelo convívio e pelo estar com as pessoas, a demonstrar o que era a verdadeira deficiência.
Não fizemos workshops, não andámos com formações, não fizemos rigorosamente nada, apenas interagimos com as pessoas da aldeia. Recordo-me muito bem do primeiro São Martinho, com as pessoas todas da aldeia, à volta do Magusto. E eles interagindo connosco e nós com eles. Acho que a melhor forma de demonstrar o que é a deficiência e o que é estarmos dentro de uma aldeia é a vivência uns com os outros. Porque depois acabam por se diluir todos estes preconceitos que existem sobre o quer que seja.
E o que é certo é que as coisas mudaram muito. Antes da ASTA, a aldeia estava a morrer muito rapidamente. A perder população. No Censos de 2001, estávamos no início da ASTA, a população de Castelo Mendo era de 111 pessoas e a população de Cabreira eram as mesmas 111 pessoas. Pois em 2010, nós tínhamos cerca de 70 e poucas pessoas, mas Castelo Mendo só tinha 27 ou 28.
Fiquei estupefacto, há uns tempos, quando ouvi alguém dizer que estava a reconstruir a casa e que estava a fazer um investimento para a sua reforma. E eu perguntei “como assim? vens para aqui?”. E não era o caso. O pensamento era outro. Era pensar que a ASTA há de ter um fisioterapeuta, há de ter uma enfermeira, há de ter a Cozinha São Francisco para nos podermos alimentar, e isto para mim é um grande investimento para a reforma. Nós que estamos na aldeia sentimos isso. Mas quando ouvimos pessoas de fora a ter este pensamento, e este sentimento, ficamos mais ainda a acreditar que estes projetos valeram a pena e estão no caminho certo e por isso vai havendo menos perda populacional.
Já fui muitas coisas na ASTA. Agora sou o responsável pela agricultura e sou, também, presidente da União das Freguesias de Amoreira, Parada e Cabreira. Eu digo que sou autarca por causa da ASTA. Se não fosse a ASTA, eu não era autarca.
Eu acho que a ASTA consegue fazer o desenvolvimento em toda a sua volta. Portanto, vemos o Pai Lobo, vemos a Amoreira, vemos todas estas localidades à nossa volta a virem beber um pouco daquilo que a Cabreira fez com a ASTA. Mesmo não havendo Astas nas outras localidades.
Eu vivi em cidades, estive três anos em Lisboa, e o que lhe posso dizer é que saímos de casa a um quarto para as nove e cinco minutos depois já estamos na ASTA a tomar o café com os colegas antes de começar o dia de trabalho às nove.
Portanto, esse tempo que se perde nas zonas urbanas a caminho do trabalho é tempo que eu tenho a mais por dia para estar com a minha família. E depois, viver numa aldeia permite-nos ter a nossa própria horta. As hortas eram os frigoríficos de antigamente, e nós também ainda temos esse frigorífico. Uma hortinha pequenina de 10 ou 15 metros quadrados é quanto chega. E sabemos que a comida é totalmente diferente. Eu já não consigo comer um tomate ou uma alface do supermercado.
E, já na ASTA, assumi a questão agrícola a sério. Tirei um curso em agricultura biológica e em biodinâmica, também na vertente da antroposofia. Temos uma quinta pedagógica, com muitos animais (galinhas, cabras, ovelhas, burros) e também fazemos muita agricultura. Não somos autosuficientes, mas aproveitamos tudo, tudo o que a horta nos dá. Temos uma pequena estufa onde pomos as primeiras sementes – agora está o cebolo, por exemplo, para o fazer crescer.
Durante a semana temos sempre aqui oficinas com os companheiros. Há sempre o que fazer. E quando não há coisas na horta propriamente dita, há manutenção dos equipamentos e dos espaços. Aqui é um espaço de trabalho, todos têm as suas atividades e funções, ao longo de todo o ano.
Os companheiros sentem-se muito bem aqui inseridos, dentro da natureza, e a paisagem também nos ajuda, porque estamos dentro da aldeia e fora dela. Conseguimos ouvir o sino, conseguimos ouvir o padeiro que chega e apita, mesmo quando existe algum silêncio nas atividades que vamos fazendo a nível agrícola, orientamo-nos pelo som do padeiro que chega mais ou menos às onze, orientamo-nos pelo sino da igreja, e eles sentem-se bastante bem aqui dentro deste contexto.
Há sempre atividades programadas no âmbito da oficina. Ao fim de semana, não há tantos companheiros – muitos vão a casa – mas os companheiros da Casa da Oliveira estão sempre ligados à agricultura. Vêm fechar os animais, vêm abrir, vêm fazer as ordenhas. Todas as casas são autónomas para definir as suas atividades, há uma espécie de distribuição de tarefas entre os companheiros. Nós não temos empregadas de casa, portanto, são as próprias pessoas que vivem na casa que cuidam dela. E além de cuidarem da casa cuidam também da nossa quinta aos fins de semana. E eles acabam por gostar – acaba por ser uma responsabilidade. O Guilherme fala sobre isso, se todos fizermos e dividirmos entre todos custa menos. Nós tentamos sempre incutir a responsabilidade de cada um de nós dentro da comunidade. Se estamos numa comunidade temos de ter alguma responsabilidade sobre alguma coisa.
E a vida dos companheiros acaba por decorrer normalmente no seio da aldeia. Se perguntarmos, por exemplo, ao Sr. Joaquim qual é a deficiência do David, ele não vai saber responder. Mas se lhe perguntar quem é o David, ele vai-lhe responder e vai-lhe contar as histórias de quando ele ia com as vacas e depois trazia as vacas, e de como uma, uma vez, já não queria vir. Para ele não há preconceitos com esta população. É o David, é o João, é a Margarida, porque não lhes vê nada de anormal dentro da sua vida diária, porque os conheceu assim. E são assim. E aceitou-os assim. Naturalmente.
E os companheiros da ASTA também aceitam o Sr. Joaquim com o seu bigode, com a sua boina, as suas conversas, entendem-se. Não tem nada que seja anormal e vivemos assim todos felizes dentro da comunidade. E ajudamo-nos uns aos outros também, quando é preciso, quando o Sr. Joaquim precisar. Eu digo o Sr. Joaquim, mas falo da população toda. Ajudamo-nos também uns aos outros. Quando nós precisamos, eles também nos ajudam, e nós, quando eles precisam, também fazemos essa interação e essa ajuda que é maravilhoso.
Acho que essa é a verdadeira essência da integração.
Mais sobre Cabreira
Cabreira do Côa, a aldeia dos companheiros
Conta-se que, desde há muito tempo, num pequeno vale abrigado por grandes pedras arredondadas, na raia com Espanha e a oeste de um rio que corre para norte e se chama Côa, vivia uma pequena comunidade de gente corajosa, simples e afável. Desde há 25 anos que a aldeia da Cabreira, no concelho de Almeida é também a morada da ASTA, uma associação sócio terapêutica dedicada à deficiência mental, que não tem utentes nem clientes. Tem companheiros e é um caso sério de compromisso com a integração social.
“Contigo, há Descoberta”, um programa de turismo inclusivo
Iniciativa de turismo social, inclusivo e de natureza é dinamizada pela ASTA – Associação Sócio Terapêutica de Almeida, e tem uma oferta estruturada de um, dois dias ou uma semana direcionada para adultos e crianças, empresas e famílias, todos os que procurem uma experiência turística humanizada e humanizadora.
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Maria José Dinis, a mãe
Natural da Cabreira, aldeia de Almeida onde nasceu há 69 anos, Maria José aprendeu a ser pedagoga e socioterapeuta por causa do Marco, um filho que lhe nasceu deficiente. Maria José apresenta-se como mãe de Marco e é, também, mãe da ASTA, a associação sócio terapêutica com 44 companheiros e 42 colaboradores que ajudam a povoar e a dar sentido a esta pequena aldeia do Interior. Uma aldeia que tem magia.
Anémone Leton, a viajante que encontrou a paz
Nasceu na Bélgica, viajou pelo mundo, é profissional de turismo. Aos 34 anos diz ter a sorte, e o privilégio, de ter encontrado no projeto da ASTA um sentido para a vida e um espaço onde quer montar um ninho familiar, e continuar a aprender. É coordenadora do projeto “Contigo, há Descoberta!”, uma iniciativa de turismo social, inclusivo e de natureza. Agora só está preocupada em continuar a aprender, vai tirar o curso de Socioterapia e Pedagogia Curativa para poder partilhar com os companheiros muitas descobertas.
Guilherme Anjos, o guia turístico
Nasceu numa aldeia de Figueira de Castelo Rodrigo, mas passou a infância e a juventude numa casa de acolhimento para jovens em risco, perto do Porto. Antes de chegar aos 18 anos, foi ele quem pesquisou na Net e procurou o seu destino. Encontrou a ASTA e desde há três anos é um dos companheiros que vive na Casa da Oliveira, bem no centro da pequena aldeia de Cabreira do Côa. É, entre muitas outras coisas, um apaixonado guia turístico.
Milene Sieiro, a miúda forte e valente
Tem energia inesgotável, um eterno ar de menina traquina, um sorriso contagiante. Milene Sieiro tem 30 anos mas sente-se com 19. Não é residente da aldeia, mas é uma das companheiras que vem para a ASTA todos dos dias, há já 9 anos. É, também, uma das guias turísticas habilitadas para acompanhar visitantes no programa “Contigo, há Descoberta”.
Joaquim Caramelo, o vizinho da Cabreira
Nos 87 anos que leva de vida, Joaquim Caramelo só conseguiu viver 9 anos fora da Cabreira, emigrado em França. Não gostou muito de lá estar. Mas ainda gosta de morar na aldeia que o viu nascer. Teve 15 irmãos, casou com uma vizinha da aldeia, tem dois filhos e uma boa dose de humor. É um contador de histórias, que mete conversa com todos os que passam na rua.