Nos 87 anos que leva de vida, Joaquim Caramelo só conseguiu viver 9 anos fora da Cabreira, emigrado em França. Não gostou muito de lá estar. Mas ainda gosta de morar na aldeia que o viu nascer. Teve 15 irmãos, casou com uma vizinha da aldeia, tem dois filhos e uma boa dose de humor. É um contador de histórias, que mete conversa com todos os que passam na rua. Eis o seu testemunho.
“Se não fossem os vizinhos da ASTA até tinha medo de viver aqui”
Chamo-me Joaquim Caramelo, tenho 87 anos, e passei-os quase todos aqui na Cabreira. Nasci aqui na aldeia, na casa que agora chamam de Casa Cristalina, onde dormem colaboradores da ASTA. Estou casado vai para mais de 60 anos com a Josefa Emília da Fonseca. Logo, vou ao magusto buscar-lhe umas castanhas. Trago-as no bolso para lhe dar. Ela agora já mal sai de casa, custa-lhe das pernas. Só sai de casa com a filha. Eu faço por sair sempre. Venho cá abaixo buscar lenha, subo as escadas com ela às costas, com o meu vagar. É exercício.
A namorada também a arranjei aqui na Cabreira, pois foi. Eu até andei a namorar com uma rapariga ali da Amoreira. Andei 26 meses a falar para ela. Mas depois comecei a falar para a Josefa, mas até era para um primo eu. E ela disse-me assim: “tu não peças para os outros, fala por ti”. Para mim foi meio caminho andado. É verdade ou não é?
Ela tinha um irmão que chegou a falar mal de mim como o diabo. Foi dizer ao pai que eu era este e aquele. Mas depois mais adiante a minha senhora disse: “a minha palavra está dada”, nem que soubesse que morria ao outro dia ela me deixava. E pronto, lá resolvemos, lá casámos e graças a Deus estamos a viver bem. Comprámos ali um terreno, não havia dinheiro naquele tempo…
Vocês não calculam o que eu dei por esta casita… Dei por esta casa, na altura, 65 contos. Quem é que tinha 65 contos naquela altura? Só quem tivesse ido para França, depois comprei uma veiga por 71 contos. Tive um indivíduo que me dava dois mil contos para começar a fazer negócio. Mas nem pensar. Que é um terreno que se eu botar lá umas sementes tiro um vagão de batatas.
Eu trabalhei sempre na agricultura. Estive pouco tempo em França, estive quase sempre em casa dos meus pais, a tratar do gado, a andar com as vacas… Vocês não são daqui, não sabem onde fica a tapada, mas eu ia lá todas as noites dormir com o gado. Eu ordenhava as ovelhas e ficava lá a tomar conta delas. E o meu irmão ia lá buscar as cabras; as cabras vinham sempre dormir à corte, por causa de darem o leite aos chibinhos pequenos.
Ai, vida, vida, vida bem contada, fazia tremer as pedras desta calçada. Agora, está tudo feito, como diz o outro. Compra-se tudo e um homem não faz nada. Vêm-me cá trazer a comida e tudo. Vêm da Amoreira, e até é baratinho. Mas já ouvi dizer que vai aumentar. Não admira nada que aumente, porque a pensão também vai aumentar.
Eu, graças a Deus, sempre tive amigos. Agora, olha, tenho de os perder… eles vão morrendo.
Esta aldeia tinha muita gente, tinha as casas todas ocupadas. Agora não. Agora, se não fossem os vizinhos da ASTA, a gente até tinha medo de viver aqui. Eles é que nos fazem companhia. É verdade. Gostam muito aqui de mim. E eu gosto muito deles, sim senhora. Eu estimo-os bem e eles estimam-me a mim também.
Eu nem sei bem quantos companheiros vivem cá em baixo na aldeia. Sei que o carro vai sempre cheio, com uns nove ou dez. E à conta disso também vão compondo umas casas. A da cozinha, por exemplo, a Cozinha de São Francisco, era uma corte de vacas, cavalos, o que calhava. E a Zé [Maria José Dinis] tem composto umas poucas de casas. Essa onde vocês estão agora, chegaram a dar 200 contos para a comprar à dona, e a dona não vendia. Mas depois deu-a à Maria José. Elas também são primas. Na verdade, aqui somos todos família.
O melhor de viver aqui na Cabreira é estar sempre à boa vida, como eu. Sim, que eu agora já não faço nada. Mas vamos lá, vou ver se mudo estas calças, para depois ir lá acima ao magusto e não ir assim muito feio. Lindo nunca fui, mas vá…
Mais sobre Cabreira
Cabreira do Côa, a aldeia dos companheiros
Conta-se que, desde há muito tempo, num pequeno vale abrigado por grandes pedras arredondadas, na raia com Espanha e a oeste de um rio que corre para norte e se chama Côa, vivia uma pequena comunidade de gente corajosa, simples e afável. Desde há 25 anos que a aldeia da Cabreira, no concelho de Almeida é também a morada da ASTA, uma associação sócio terapêutica dedicada à deficiência mental, que não tem utentes nem clientes. Tem companheiros e é um caso sério de compromisso com a integração social.
“Contigo, há Descoberta”, um programa de turismo inclusivo
Iniciativa de turismo social, inclusivo e de natureza é dinamizada pela ASTA – Associação Sócio Terapêutica de Almeida, e tem uma oferta estruturada de um, dois dias ou uma semana direcionada para adultos e crianças, empresas e famílias, todos os que procurem uma experiência turística humanizada e humanizadora.
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Maria José Dinis, a mãe
Natural da Cabreira, aldeia de Almeida onde nasceu há 69 anos, Maria José aprendeu a ser pedagoga e socioterapeuta por causa do Marco, um filho que lhe nasceu deficiente. Maria José apresenta-se como mãe de Marco e é, também, mãe da ASTA, a associação sócio terapêutica com 44 companheiros e 42 colaboradores que ajudam a povoar e a dar sentido a esta pequena aldeia do Interior. Uma aldeia que tem magia.
Anémone Leton, a viajante que encontrou a paz
Nasceu na Bélgica, viajou pelo mundo, é profissional de turismo. Aos 34 anos diz ter a sorte, e o privilégio, de ter encontrado no projeto da ASTA um sentido para a vida e um espaço onde quer montar um ninho familiar, e continuar a aprender. É coordenadora do projeto “Contigo, há Descoberta!”, uma iniciativa de turismo social, inclusivo e de natureza. Agora só está preocupada em continuar a aprender, vai tirar o curso de Socioterapia e Pedagogia Curativa para poder partilhar com os companheiros muitas descobertas.
Guilherme Anjos, o guia turístico
Nasceu numa aldeia de Figueira de Castelo Rodrigo, mas passou a infância e a juventude numa casa de acolhimento para jovens em risco, perto do Porto. Antes de chegar aos 18 anos, foi ele quem pesquisou na Net e procurou o seu destino. Encontrou a ASTA e desde há três anos é um dos companheiros que vive na Casa da Oliveira, bem no centro da pequena aldeia de Cabreira do Côa. É, entre muitas outras coisas, um apaixonado guia turístico.
Luís Fonseca, o braço direito
Foi quando uma amiga de infância lhe pediu contactos que ele entregou toda a sua ajuda. Ajudou-a a montar a associação, e desempenhou nela muitos papéis. Foi voluntário, depois funcionário, foi pai de casa e agora é responsável pela parte agrícola do projeto ASTA. É presidente da Junta.
Milene Sieiro, a miúda forte e valente
Tem energia inesgotável, um eterno ar de menina traquina, um sorriso contagiante. Milene Sieiro tem 30 anos mas sente-se com 19. Não é residente da aldeia, mas é uma das companheiras que vem para a ASTA todos dos dias, há já 9 anos. É, também, uma das guias turísticas habilitadas para acompanhar visitantes no programa “Contigo, há Descoberta”.