Professor de artes visuais, sindicalista, ex-presidente da Junta de Freguesia, Agostinho da Silva nasceu em Ima e respira Jarmelo por todos os poros. Ainda não mora lá, mas vai lá quase todos os dias. Envolve-se nas atividades culturais, recriativas e desportivas e foi um dos grandes entusiastas do projeto de acolher migrantes no território. Eis o seu testemunho.
“Aquela coisa do ‘sou do Jarmelo’ sente-se.”
Chamo-me Agostinho Almeida Monteiro da Silva, nasci na Ima do Jarmelo, a 15 de dezembro de 1965. Parece que estava a nevar, pelo que quando chegou a parteira eu e a minha mãe já estávamos aliviados.
Vivi até aos 10 anos neste território, deslocando-me a pé para a escola primária, quase três quilómetros para cada caminho. O nosso infantário e passatempo era a forja dos ferreiros, passávamos imensas horas a ouvi-los assobiar melodias e a bater ferro.
Estávamos sempre do lado de trás da forja, a apanhar aquele “moreno” na cabeça. Mas tomávamos banho, quer precisássemos quer não precisássemos, uma vez por semana para irmos à missa. Aos dez anos fiz como os meus irmãos, fui para o seminário [a Ordem Religiosa Missionária Verbo Divino] em Tortosendo. Estive lá até ao fim do 9º ano. Depois fiz o 10º , 11º e 12º em Fátima; fiz um ano de noviciado em Espanha; e cinco anos de teologia e artes em Lisboa.
Acabei por sair. Não teve a ver com mulheres, como se costuma dizer. Mas a vida religiosa tem de se levar mais a sério do que eu às vezes levava. Eu era bom rapaz e acho que continuo a ser, mas não o suficiente para consagrar a vida toda naquele ambiente.
Ainda tive uma passagem pela escola António Arroio, em Lisboa, antes de entrar nas Belas-Artes, no Porto. Vivia em casa de um primo meu. No terceiro ano meti o estatuto de trabalhador-estudante, porque precisava de comprar um computador, e eram carotes. Lá acabei o curso e licenciei-me em Design de Comunicação. Em 1999/2000, aos 33 anos, voltei aqui para a terrinha. Dediquei-me à fotografia, às artes gráficas. Fui-me mexendo por aqui durante anos, meti-me nas várias dinâmicas associativas. Desde o futebol e outras iniciativas da Associação Cultural e Desportiva do Jarmelo, até à dinâmica cultural, sempre com o apoio do arquiteto Isidro Almeida, que também é da Ima, como eu.
Avançámos com a feira do Jarmelo. No princípio não percebia nada do que estava a fazer. Costumo dizer que o apaixonar-se é a pior forma de gostar de alguém ou de alguma coisa. Porque em estado de paixão, fazemos coisas que em perfeito juízo não faríamos. Mas os momentos de paixão trazem-nos o brilho nos olhos e a ilusão na vida. E eu apaixonei-me pelo território, pelas pessoas e pelas suas lutas.
Fui parar ao executivo da Junta de Freguesia. Começámos a fazer as nossas reivindicações, as nossas mostras públicas de desagrado porque era um território muito abandonado, muito díspar do resto do concelho. Tínhamos aldeias sem água, sem saneamento, sem piso nas ruas.
Sempre que fazia apresentações em lugares públicos chamava a atenção para o tratamento diferenciado de um território que era muito esquecido em termos políticos. Quando me fui embora estava tudo na mesma, por resolver. Acho que a única coisa que as pessoas levaram da minha passagem foi a sensação de pertença ao território, a auto-estima, o valor de “ser do Jarmelo”.
Por força do casamento, fui viver para a terra da minha amada. Não fui eu quem a conquistou, foi ela quem me conquistou a mim, quando cá veio, uma vez, cantar as Janeiras. Ao fim de cinco anos, conseguimos aproximar-nos da Guarda; ou seja, agora estamos a meio do território entre Jarmelo e o Porto da Carne. Continuo a vir ao Jarmelo com muita frequência. Até aos primeiros anos de casado eu estava na Junta de Freguesia e tinha obrigação de vir cá praticamente todos os dias. Ultimamente, venho um bocadinho menos. Mas de repente, por esta necessidade ou aquela, até venho mais. Por exemplo, por causa deste projeto dos refugiados tive um empenho muito forte. Até porque estávamos em Covid e eu tinha uma certa liberdade de movimentos em alguns aspetos, e podia estar deslocado no território e continuar a cumprir a minha função.
É muito engraçado. Enquanto autarca, o meu sonho era repovoar o território. E foi uma moça do Porto que nós não conhecíamos – e ela também não nos conhecia – que apareceu aí com uns familiares meus a perguntar qual era a nossa ideia, e se gostaríamos de participar.
Eu já disse à Bárbara Moreira que ela fez mais pelo território do que eu. E fez pelo meu território aquilo que eu nunca faria. Porque ela tem um investimento pessoal, e também financeiro, neste projeto, que não é suportável para qualquer pessoa.
E a verdade é que se associaram várias coisas. A Ima mais do que duplicou de gente. Não só pelos migrantes, mas também pelos nossos que estavam noutros territórios e que acharam que este era um lugar de acolhimento melhor do que a Grande Lisboa ou o Grande Porto; ou até o estrangeiro. Neste momento estaremos perto das 50 pessoas. O que é fantástico!
A comunidade migrante está a integrar-se. Não é assim muito fácil à partida. Vêm de uns territórios mais cómodos em termos de temperatura, devem ter sentido aqui aquele impacto do frio. Mas estão a ser recebidos como ninguém. As pessoas têm sido de uma simplicidade e de uma humildade e a relação com eles é fantástica.
Sou professor de Artes Visuais numa escola na Guarda. E sou dirigente sindical. Um dia bom é acordarmos os três bem-dispostos – eu, a minha amada, e o nosso filho, de 16 anos. Um dia ideal é vir ao Jarmelo, nem que seja só um bocadinho.
De resto, continuo com muita dinâmica associativa. Costumo dizer que tenho mais sorte que juízo. A vida tem-me dado coisas tremendas. Se me dissessem, quando voltei para o Jarmelo, que ia fazer uma décima parte das coisas que fiz e em que me meti, eu diria que não.
Dá-me uma satisfação tremenda que o nosso grupo de cantares [Ronda do Jarmelo] tenha conseguido ter a dinâmica e a visibilidade que teve. Dá-me um gozo tremendo perceber a visibilidade que o senhor Miragaia e as suas tesouras de tosquia têm neste momento. Dá-me uma alegria enorme o facto de o território do Jarmelo ter salvaguardado a carga genética da vaca jarmelista, e que haja esta sensação de pertença do território e de auto-estima das pessoas. Aquela coisa do “sou do Jarmelo” sente-se.
Se agora fosse embora, já tinha cumprido imenso, o que muita gente nem sonha cumprir. Digo muitas vezes “agora parou, não me meto mais no que vier!”
Mas depois há aquele ímpeto, não sei se será por alguma vaidade. Sei que quando me dou conta já estou lá metido. Espero que isto me continue a dar até aos noventa e tal anos.
Mais sobre Jarmelo
Jarmelo: a forjar as aldeias do futuro
Já foi um castro e vila medieval. Hoje, o Jarmelo, na Guarda, é sobretudo um território de pequenos povoados dispersos com o alto do monte, o alto de Jarmelo, a uni-los. Jarmelo é também terra de ferreiros – é lá que vive o último fazedor de tesouras de tosquia – e é terra de inclusão. Em Ima, está a decorrer um projeto-piloto de integração e migrantes e refugiados.
O que fazer em Jarmelo (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Jarmelo, no concelho da Guarda. Inclui o que fazer na aldeia de Ima e arredores – atividades, trilhos e passeios -, onde ficar hospedado, gastronomia e contactos úteis.
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Odete Antunes, a vizinha
Com 83 anos de idade, Odete Antunes não conhece outra vida que não a de tratar da casa e andar na lavoura, cuidando das colheitas e dos animais. E nunca quis outra. Nascida numa família de sete irmãos, só ela e o irmão Duarte, com 86 anos, escolheram continuar a viver na aldeia. Ela, a trabalhar em casa e no campo; ele na forja, a suceder ao trabalho do pai.