Com 83 anos de idade, Odete Antunes não conhece outra vida que não a de tratar da casa e andar na lavoura, cuidando das colheitas e dos animais. E nunca quis outra. Nascida numa família de sete irmãos, só ela e o irmão Duarte, com 86 anos, escolheram continuar a viver na aldeia. Ela, a trabalhar em casa e no campo; ele na forja, a suceder ao trabalho do pai. Eis o seu testemunho.
“Ajudamo-nos uns aos outros”
Chamo-me Maria Odete Almeida Antunes, tenho 83 anos. Nasci aqui na Ima, com certeza que aqui em casa, porque naquela altura nem para o hospital iam. Por acaso não foi nesta casa onde estou agora que nasci. Os meus pais só arranjaram esta casa depois, mas foi numa casa ali em baixo, onde agora vive o Lelo.
O meu pai era de Donfins, casou-se e veio ficar ali, na casa do sogro.
A minha mãe morreu nova, tinha quase 40 anos. Mas teve sete filhos! Ainda tenho dois irmãos mais novos do que eu. Quando a nossa mãe morreu, a minha irmã mais velha tinha 13 anos, e o Marcolino, o mais novo, teria uns quatro anos e meio.
A minha mãe morreu de pneumonia. Apanhou água num dia em que foi ao enterro de uma cunhada a Pousade, e apanhou a doença. Ao cabo de três semanas, morreu. A minha irmã mais velha mais o meu pai é que ficaram entregues a isto. Criaram-nos a todos. Não tivemos ninguém cá.
A minha irmã mais velha casou-se aos 28 anos e foi para África, mas depois voltou. O marido morreu de acidente, tinha a filha mais nova cinco dias, e ela acabou por vir embora. Nós ficámos sempre por aqui.
O nosso pai tinha ajudantes para a oficina [era ferreiro]; mas assim para casa, para as coisas de casa não havia ninguém.
Nós lá nos fomos criando, sempre com pouco dinheiro. O Duarte [o irmão, de 86 anos, que vive ainda com Odete] começou a ir para a forja lá para os 20 anos, quando o nosso outro irmão foi para a tropa.
O nosso pai trabalhava muito. Estava sempre à espera de ir fazer as feiras à Covilhã, a Belmonte, à Beira Baixa… Mandava vir os carvoeiros e a seguir ao dia da feira procurava pagar tudo. Não tinha dívidas grandes, o dinheiro andava sempre à tabela, foi sempre assim.
Eu trabalhei sempre em casa, a fazer o que era preciso. E muito no campo. A regar, a sachar, a tratar dos animais. Mas para a forja não ia. Há mulheres que sim. A Imelda, em Donfins, ajuda muito o Mateus Miragaia. Mas cá em casa só lá andaram os meus irmãos.
Vivi sempre na Ima, nunca fui para lado nenhum. É esta a vida que eu conheço. Aliás, quando vou a Lisboa acho aquilo tudo muito confuso. Antes também havia muita gente na aldeia. E nós íamos a pé até lá acima, à missa, todos os domingos; e levávamos os sapatinhos num saco, até à pedra de calçar. Era uma laje onde trocávamos o calçado – para o poupar. Mas isso era antes, quando toda a gente se ajeitava para ir à missa. Agora parece que se vai de qualquer maneira; até de sapatilhas vão.
Hoje em dia só vou à missa quando nos levam. O Manuel [outro irmão, que passa grandes temporadas na aldeia] foi para Lisboa. O Duarte não tem carta, só de trator. Por isso às vezes não vamos à missa. Mas assistimos na televisão. Este domingo liguei a TVI e não deu a missa, e nem explicaram nada. Nem percebi porquê.
Graças a Deus vou tendo saúde. E não tomo nada, nunca estive doente. Zero comprimidos. Cá vou andando.
O que eu mais gosto aqui na Ima é do verão. No verão tem de se trabalhar mais, temos a rega, a sacha, as ceifas. Mas agora já não é como antes, que nós começámos a agarrar a vida, começámos a comprar uma malhadeira, e depois outras máquinas. Há sempre trabalho. As máquinas vêm ceifar, mas nós temos de fazer o comer para os que lá andam.
É verdade que o verão é mais custoso, mas o tempo é melhor. A gente lava a roupa e seca num bocadinho. E os dias são mais compridos. Agora, mal amanhece é noite. No inverno não há tanto que fazer no campo, mas é sempre preciso levar os animais.
Vamos vendendo umas coisinhas. Este ano tivemos boa castanha, ainda vendemos duas sacas. Batatas é que não dá para vender. Está muito barata. E ninguém as quer, nem os negociantes. Não sei porquê. No outro dia falámos a um e ele disse “tenho lá muita batata, não quero”. Ai nossa Senhora!
O dinheiro que a gente vai fazendo ainda é dos bezerros. Na forja já não há trabalho há uns anos.
O meu irmão diz que para fazer quatro enxadas à maneira antiga era preciso passar um dia inteiro à volta da forja. Mas agora há uma moda nova, e começaram a fazer com chapa já feita, com aparelhos de soldar com tudo. O Duarte diz que enquanto aqui se faziam quatro enxadas num dia, pela moda nova faziam 15. Mesmo a vendê-las por metade do preço, não podiam trabalhar.
Ainda foi fazendo roçadouras, machados… Mas as fábricas começaram a ser tantas e o pessoal cada vez menos, que acabou. Nós vendíamos em lote aos vendedores, mas alguns já nem vieram buscar as últimas encomendas.
O Duarte diz que não quer que o mandem fazer nada com o frio. Estava habituado a estar na oficina, sempre ao lume. Mas lá anda, como eu. Agora vamos arrumar uns fardos de palha para fazer a cama dos animais.
Nós estamos aqui bem. Temos mais família na aldeia. Tenho aqui outro irmão, que arranjou aquela casa – o Manuel Antunes – que passa cá grandes temporadas no verão. Mas abalou a semana passada para Lisboa. Ele também tem castanhas. Acabou de as apanhar e disse: “agora não há aqui nada que fazer, vou-me embora”. E só volta lá para abril. Vem para semear as batatas e o feijão.
Nós também não passamos o Natal aqui. Vamos passar além [na Guarda] com a minha sobrinha e os meus segundos sobrinhos. São como se fossem netinhos. São os que vieram de África.
Também temos muita companhia desses garotos que vêm jogar à bola para este campo ao lado de nossa casa. Eles moram aqui em frente e são muito educados. Às vezes vêem-nos a carregar coisas e vêm cá perguntar se precisamos de ajuda. A mãe deles [Karima] também é muito simpática. Ajudamo-nos uns aos outros. Gosto muito de os ter cá.
Mais sobre Jarmelo
Jarmelo: a forjar as aldeias do futuro
Já foi um castro e vila medieval. Hoje, o Jarmelo, na Guarda, é sobretudo um território de pequenos povoados dispersos com o alto do monte, o alto de Jarmelo, a uni-los. Jarmelo é também terra de ferreiros – é lá que vive o último fazedor de tesouras de tosquia – e é terra de inclusão. Em Ima, está a decorrer um projeto-piloto de integração e migrantes e refugiados.
O que fazer em Jarmelo (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Jarmelo, no concelho da Guarda. Inclui o que fazer na aldeia de Ima e arredores – atividades, trilhos e passeios -, onde ficar hospedado, gastronomia e contactos úteis.
Bárbara Moreira, a sonhadora
Bárbara Moreira nasceu e cresceu no Porto, teve sempre uma vida urbana. Mas em 2018, com 28 anos de idade, mudou-se para Ima do Jarmelo para concretizar o projeto LAR, de apoio à integração de migrantes e refugiados. Convenceu os moradores da aldeia a cederem casas e terrenos, fez parcerias e contratos e criou na aldeia postos de trabalho.
Mateus Miragaia, o ferreiro
Mateus Filipe Miragaia é o último fazedor de tesouras de tosquia. Aos 80 anos, o “velho da martelada”, como se auto-intitula, ainda acende a sua forja em Donfins para fazer tesouras. De rosto feliz e gargalhada fácil, foi homem de trabalho a vida toda.
Karima Javaid, a recém-chegada
Ugandesa, casada com um paquistanês, Karima fugiu da violência de Kampala para a Europa, com dois filhos nos braços. Chegou à Alemanha em 2016 e a Portugal em 2019. Em Lisboa, enquanto esperava a regularização, nasceu-lhe mais uma filha. Chegou a Ima, no Jarmelo, em outubro de 2020. Nunca tinha vivido numa aldeia, e agora diz que não quer ir para mais lado nenhum.
Agostinho da Silva, o apaixonado
Professor de artes visuais, sindicalista, ex-presidente da Junta de Freguesia, Agostinho da Silva nasceu em Ima e respira Jarmelo por todos os poros. Ainda não mora lá, mas vai lá quase todos os dias. Envolve-se nas atividades culturais, recriativas e desportivas e foi um dos grandes entusiastas do projeto de acolher migrantes no território.