Ugandesa, casada com um paquistanês, Karima fugiu da violência de Kampala para a Europa, com dois filhos nos braços. Chegou à Alemanha em 2016 e a Portugal em 2019. Em Lisboa, enquanto esperava a regularização, nasceu-lhe mais uma filha. Chegou a Ima, no Jarmelo, em outubro de 2020. Nunca tinha vivido numa aldeia, e agora diz que não quer ir para mais lado nenhum. Eis o seu testemunho.
“O meu sonho é o futuro dos meus filhos”
Chamo-me Karima Javaid, tenho 42 anos e venho do Uganda. Nasci e vivi sempre na cidade de Kampala, uma cidade grande, a maior do país. Lá, o meu marido vendia carros. Eu tinha uma boutique, a minha própria boutique. No Uganda havia violência, havia roubos, não era seguro. Fugimos do país. Chegámos à Alemanha em 2016. Mas lá disseram-nos que um lugar bom para as famílias era Portugal, por isso viemos para cá.
Cheguei a Portugal em 2019, era dezembro. Estivemos em Lisboa quase um ano. Estávamos com a Associação Lisbon Project [uma associação sem fins lucrativos], onde os miúdos podiam fazer várias atividades. Ajudaram-nos com muitas coisas. Tentaram registá-los na escola, por exemplo. Mas não conseguiram pois não tínhamos papéis. E depois começou a pandemia. Era preciso um visto de residência, nós não tínhamos. Estávamos a dividir casa com outras pessoas, mas não arranjámos escola, ocupação.
Entretanto surgiu esta oferta, a possibilidade de poder vir viver numa aldeia. A Vanessa [Vanessa Rei, técnica social do projeto] tratou dos papéis, tratou de tudo. Nunca tinha vivido numa aldeia, mas dissemos logo que sim. Quando chegámos aqui, gostámos muito. Chegámos a Ima a 29 de outubro de 2020. Deram-nos casa, levam os miúdos para a escola, tenho trabalho, fizeram todos os nossos papéis.
É verdade que faz muito frio, mas já nos habituámos. Mais difícil é falar português. Para nós, pelo menos, é difícil. Para as crianças é ok, porque elas vão para a escola. Mas para nós não é fácil, porque temos tantas coisas na cabeça, que é difícil. Mas estamos a tentar!
O que eu mais gosto aqui na aldeia é a relação que tenho com as pessoas. Este lugar é tão calmo, tão tranquilo. O que mais gostamos aqui é o amor e o carinho das pessoas. São todas muito amistosas, para todos nós.
O meu marido trabalha na Guarda, no Burger King. Eu estou a trabalhar no projeto LAR. Neste momento, estamos a fazer compotas e a preparar tudo para vender. Usamos os legumes que plantamos aqui na aldeia, e estamos a misturar sabores para fazer chutneys, chili. Estou a gostar muito da experiência. E dos sabores. São todos bons, mas o meu preferido é o achar. Aqui não usam muito achar, pois não? Podes usar onde quiseres. Nós normalmente usamos quando fazemos barbecue [grelhados]. E pomos no roti [tipo de pão feito sem fermento]. Se fizeres fried rice [arroz frito] também podes pôr um bocadinho. Na verdade nós pomos achar em todo o lado. E as malaguetas amarelas que se plantaram aqui também são muito boas.
Estou a aprender muito. Sou muito agradecida. O amor que aqui nos dão é muito forte, muito bom. Não só aqui em Ima, mas em Portugal. Onde quer que vamos, as pessoas gostam de nós, mostram-nos amor, dão-nos o que precisamos. Por isso posso dizer que por agora não precisamos de mais nada, temos tudo. Pretendemos ficar em Portugal. Achamos que é um país muito pacífico, as pessoas são muito simpáticas, e é muito bom. Estamos a gostar.
Os meninos também gostam muito de estar aqui. O Zahid tem 12 anos, o Sani tem nove. E a Fátima, que nasceu em Portugal, no Hospital de Santa Maria, tem um ano e meio. E também anda numa creche. Eles vão todos para a escola. E nós podemos trabalhar. É esse o meu dia normal, levantar os meninos, prepará-los para a escola e seguir para o meu trabalho.
As crianças gostam de ir para a escola. Pode falar com elas. Eles gostam e pelo menos já aprenderam a língua. Estão orgulhosos deles próprios e eu estou orgulhosa deles.
Eu não tenho sonhos para mim. O meu sonho é o futuro dos meus filhos. É que eles tenham sucesso. Para que possam estudar e seguir em frente. É esse o meu sonho. Não quero mais nada.
Mais sobre Jarmelo
Jarmelo: a forjar as aldeias do futuro
Já foi um castro e vila medieval. Hoje, o Jarmelo, na Guarda, é sobretudo um território de pequenos povoados dispersos com o alto do monte, o alto de Jarmelo, a uni-los. Jarmelo é também terra de ferreiros – é lá que vive o último fazedor de tesouras de tosquia – e é terra de inclusão. Em Ima, está a decorrer um projeto-piloto de integração e migrantes e refugiados.
O que fazer em Jarmelo (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Jarmelo, no concelho da Guarda. Inclui o que fazer na aldeia de Ima e arredores – atividades, trilhos e passeios -, onde ficar hospedado, gastronomia e contactos úteis.
Bárbara Moreira, a sonhadora
Bárbara Moreira nasceu e cresceu no Porto, teve sempre uma vida urbana. Mas em 2018, com 28 anos de idade, mudou-se para Ima do Jarmelo para concretizar o projeto LAR, de apoio à integração de migrantes e refugiados. Convenceu os moradores da aldeia a cederem casas e terrenos, fez parcerias e contratos e criou na aldeia postos de trabalho.
Mateus Miragaia, o ferreiro
Mateus Filipe Miragaia é o último fazedor de tesouras de tosquia. Aos 80 anos, o “velho da martelada”, como se auto-intitula, ainda acende a sua forja em Donfins para fazer tesouras. De rosto feliz e gargalhada fácil, foi homem de trabalho a vida toda.
Agostinho da Silva, o apaixonado
Professor de artes visuais, sindicalista, ex-presidente da Junta de Freguesia, Agostinho da Silva nasceu em Ima e respira Jarmelo por todos os poros. Ainda não mora lá, mas vai lá quase todos os dias. Envolve-se nas atividades culturais, recriativas e desportivas e foi um dos grandes entusiastas do projeto de acolher migrantes no território.
Odete Antunes, a vizinha
Com 83 anos de idade, Odete Antunes não conhece outra vida que não a de tratar da casa e andar na lavoura, cuidando das colheitas e dos animais. E nunca quis outra. Nascida numa família de sete irmãos, só ela e o irmão Duarte, com 86 anos, escolheram continuar a viver na aldeia. Ela, a trabalhar em casa e no campo; ele na forja, a suceder ao trabalho do pai.