Mateus Filipe Miragaia é o último fazedor de tesouras de tosquia em Portugal. Aos 80 anos, o “velho da martelada”, como se auto-intitula, ainda acende a sua forja em Donfins para fazer tesouras. De rosto feliz e gargalhada fácil, foi homem de trabalho a vida toda. No centro da aldeia de Donfins, terra de ferreiros, ergue-se uma tesoura gigante em sua homenagem. Eis o seu testemunho.
“Sou o velho da martelada”
Chamo-me Mateus Filipe Miragaia, e nasci em Donfins do Jarmelo em 25 de outubro de 1941. Posso dizer que passei nesta aldeia 79 Natais. Só saí daqui no tempo da vida militar, que foi de 1962 até 1964. Mas tive a sorte de vir passar sempre o Natal a casa.
Donfins era conhecida como terra dos ferreiros. Estavam cá uns oito ferreiros, o que é muita gente para uma terra destas. Mas foram saindo para Belmonte, para Castelo Branco, para Macedo de Cavaleiros. Saíam para os lugares onde já tinham mais clientela. Ainda me lembro de o meu pai me dizer que chegou a ir para Trancoso com o carro das vacas. Demoravam oito dias a ir e vir, a levar ferramentas que eram feitas aqui pelos vários ferreiros para a feira de lá…
Eu comecei a trabalhar em 1957, com 15 anos, na oficina de um cunhado e do pai dele, o Ti António Augusto – foi ele quem me ensinou a arte de fazer tesouras.
A minha vida era levantar às seis da manhã, totalmente às escuras. Trabalhávamos com o clarão, ou com a luz do ferro quente, até às nove da manhã. Eu já não sou do tempo em que alguns ferreiros tinham nas ribeiras em vez de ser uma mó de moinho, uma mó para amolar a ferramenta. Em 1957, o meu cunhado já tinha um pequeno motor a gasóleo que fazia andar esses rebolos. Ainda me lembro de que os rebolos eram de granito desta zona, ali do lado de Espanha, e de lá ir com um lavrador daqui buscar três com um carro de vacas.
Uma tesoura é feita em ferro e aço. A diferença do aço para o ferro, aparentemente, não é nenhuma. Simplesmente o ferro é pobre em carbono, e o aço é rico. Daí que na têmpera depois, que é o aquecimento com arrefecimento, o aço endurece e o ferro não. A tesoura ficava atrás de ferro e na frente de aço. Tudo isto era batido com duas pessoas, o mestre e o empregado – eu era empregado. Na década de 70 começaram a vir os aços laminados, e uma pessoa passou a poder ser ferreiro sozinho, porque já não precisa do empregado para estender o ferro. A esta parte, de mestre e empregado, chamávamos o calçar. Depois, o mestre ficava a forjar (aperfeiçoar uma peça, uma ferramenta) o mais possível, de perfeição a martelo. E o empregado ia a amolar, a gastar depois a ferramenta nos esmeris.
Trabalhei até 1962. Depois de vir da tropa ainda tive aquela maluqueira de ir para França. Por sorte ou por azar, combinei com o passador e paguei-lhe oito contos. Combinámos, “para a semana venho-te buscar”. Passados estes oito dias, ele veio, mas foi outro senhor em meu lugar. Não me convocaram! Foi outro no meu lugar sem eu saber. E eu disse, pronto já não vou!
Isso foi em 1965. Em 1970 casei e a minha esposa também gostou mais disto, e de mim, do que de outras coisas. Também nunca foi muito para sair, então aqui organizámos a nossa vida, sempre à volta da forja. Eu e ela a trabalhar aqui no inverno; no verão mais no campo.
Nós só tivemos luz aqui no Natal de 1971. Lembre-se que eu comecei a trabalhar em 1957, já está a ver os anos em que eu andei a tocar o fole de ferreiro. Tocar o fole era para fazer este vento… A nossa matéria-prima principal era o vento. Agora é uma ventoinha elétrica que o faz, e até tem um lume muito giro.
O empregado tocava o fole, e depois pegava no martelo grande e batia. Depois, o chamado forjar, já era o mestre que fazia tudo. Porque o forjar já é pouco calor. Depois é preciso a têmpera, e nas tesouras tem de ser com um óleo. Se é uma ferramenta grossa, como enxadas e outras coisas assim, admite ser temperada na água. Mas uma tesoura ou as facas, normalmente, são temperadas no óleo para terem um arrefecimento mais lento. Fazíamos o óleo com a banha de borrego e de cabrito derretida com azeite. Há quem tempere com o chamado óleo queimado, mas ficam as ferramentas brandas.
Nós fazíamos tesouras de três tamanhos, consoante o lugar para onde as tesouras iam.
Em Trás-os-Montes queriam umas tesouras maiores, nas beiras era a tesoura mais pequenina, mais perfeita; e no Alentejo era uma tesoura muito comprida da folha. No Alentejo, cheguei a fazer só num ano à volta de 500 tesouras para um senhor que depois vendia em toda a região.
Tinha outro cliente em Trás-os-Montes, em Macedo de Cavaleiros, que me gastava normalmente à volta de 300 tesouras… Eu punha as tesouras nos chamados revendedores. Agora estou a fazer tesouras para Mangualde, que eles põem a marca Verdugo. E faço para Coimbra, onde usam a marca JAP – de José Augusto Pires, um irmão do cunhado com quem eu comecei a trabalhar.
Isto na forja aparentemente é fácil. Mas é negra no trabalho e é negra na cor. Cansativo? Claro. Eu agora já estou velho, mas quando era novo aguentava bastante… Eu chegava a dar à volta de 100 pancadas por minuto. Tenho quase 80 anos, e do que estou mais resistente é dos braços. Daí que o trabalho se não for exagerado dá saúde.
A maior parte dos ferreiros tinha alguma inveja quando comecei a trabalhar. Fazia muitas tesouras. E eu dizia: “isto não se ensina, isto aprende-se com muito trabalho”. É que eu posso dizer para virar o ferro devemos fazer assim, mas não lhe posso agarrar na mão….
Depois do forjar, é preciso pôr as tesouras a casar, pôr-lhes o eixo. Não é como os casamentos de agora, as tesouras nunca mais se separam. Esta safra que aqui tenho já era velha quando eu comecei a trabalhar. Mas vejam tanta martelada que eu aqui dei, que já tem uma poça por causa do eixo…
Depois de estarem no eixo, e se ela está bem feita, de princípio, a tesoura fica a cortar. Mas, às vezes, basta estarem um bocadinho empenadas, nem eu sei, anda a gente 10 ou 15 minutos de volta delas e não as consegue pôr a cortar. Ela tem de lá ir, mas às vezes com muito tempo.
Eu era bom a forjar, mas no esmeril era a minha mulher que me dava baile. A Imelda fez 76 anos, e ela não se deve gabar, mas eu digo que foi uma mulher de coragem, é uma mulher com eles no sítio. Mãe como tiveram os meus garotos não há muitas.
Conheci a Imelda na escola, e eu até nem gostava dela, nem ela de mim. Mas depois, olha… eu quando lhe pedi namoro, ela tinha 19 anos, deu-me nas orelhas. “Eu até gostava de ti, mas via que não tinha capacidade…. Andei a diversificar por outros lados”, dizia-lhe eu. Sabem, a coisa só corre totalmente bem quando o homem faz o que a mulher quer (risos).
Tivemos quatro filhos todos seguidinhos, em 73, 75, 77 e 79. E em 86 apareceu-nos outra pulga elétrica. Ela fez agora 35 anos, e nós fomos aos Açores visitá-la. Já lá tem um reguila com três anos. Somos uma família grande. Tenho cinco filhos e seis netos.
Noutra altura era capaz de dizer que isto aqui [na aldeia] é muito reles. Mas agora cada vez gosto mais deste sossego. Em Donfins já não há quase ninguém. Quando era garoto e andava na escola havia cá tanta gente! Mas na década de 40 e 50 abalou tudo daqui. Só para o Brasil foram em pouco tempo mais de 30 pessoas.
Um dia bom, para mim, é ter saúde. De inverno estou aqui, entretido. Isto é muito bom quando está a chover e a nevar…. A gente a ver a neve cair lá fora e aqui com um luminho… enfim, como foi a vida. De verão ando no campo. Gosto de andar com o trator. Gosto de andar com pedras, agora até ando a fazer mais um muro. Enfim, gosto de trabalhar. Dizem-me “para a idade que tens, tu até estás bom”. E para isso só é preciso uma coisa: trabalhar desde que a gente se levanta até que a gente se deita. No verão gosto de dormir a sesta, mas não gosto de estar parado e sentado.
A minha mulher toca muito bem o realejo. Pertencemos à Ronda do Jarmelo, de cânticos populares, fizemos mais de 100 atuações. A Imelda toca e canta, também é ela que começa os cânticos na igreja. Não desfazendo, ela canta e toca muito bem.
Aqui em casa, fiz este parquinho para os meus filhos quando eram garotos. Fiz ali um cavalinho e pus-lhe um motor… Deixa cá ver se ainda trabalha. Trabalha, pois! Eu também não bato bem da bola (risos). Quando era garoto ia para os barrocos escorregar. Aos meus filhos, fiz-lhes um escorrega. Punham uma almofada para não romperem as calças e…pum, lá iam eles! Isto é mesmo à Mateus Filipe (risos). Isto é um bocadinho de arte e muito de invenção. Mas nisto, digo-vos já, o meu filho Rui é muito melhor que eu. Logo de garoto, com dois ou três ferrinhos, ele tinha um jeito…!
Quando ouvirem dizer que “o velho da martelada” já lá está, já morreu, já sabem que mais ninguém as faz. Isto já não dá para viver. Quem é que hoje gasta as tesouras? Não há consumo, porque as máquinas elétricas substituíram as tesouras. Isto é como tudo, é uma fase, e quer a gente queira quer não, ainda bem que as coisas vão evoluindo.
Faz alguma pena pensar que mais ninguém faz isto. Mas uma coisa é certa: se alguém quisesse fazer, não dava para viver. Eu ainda vou vendendo, porque as pessoas vêem na TV o velho, e dizem: “deixa-me mandar vir uma tesoura ou outra para recordação”.
Aquela escultura que puseram ali no largo da aldeia é uma tesoura do meu filho, Rui Miragaia, que é escultor. Puseram lá aquilo este verão e eu até disse: “Olha lá isto é desejado, mas não é merecido”. Então uma pessoa nunca fez nada na vida, a não ser trabalhar, tem alguma coisa que receber uma homenagem?
Saiba como encomendar tesouras de tosquiar ao ferreiro Mateus Miragaia.
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