Bárbara Moreira nasceu e cresceu no Porto, teve sempre uma vida urbana. Mas em 2018, com 28 anos de idade, mudou-se para Ima do Jarmelo para concretizar o projeto LAR, de apoio à integração de migrantes e refugiados. Convenceu os moradores da aldeia a cederem casas e terrenos, fez parcerias e contratos e criou na aldeia postos de trabalho. Eis o seu testemunho.
“Nós, país, precisamos disto, de aldeias intergeracionais e interculturais”
Chamo-me Bárbara Moreira, tenho 32 anos, nasci e cresci no Porto. Comecei a trabalhar aos 18 anos, enquanto fazia o curso na área de marketing. Ainda fui para Londres fazer um mestrado, mas tive de voltar.
Tive sempre uma ligação muito forte com a área social, porque fiz voluntariado em varias áreas, por exemplo com pessoas em situação de sem-abrigo, mães adolescentes, crianças.
Fui fazendo voluntariado enquanto a minha vida pessoal e profissional andava entre Porto e Lisboa. Fiz marketing, gestão de marketing e comunicação, em empresas de retalho, da área alimentar, de moda. Quando tinha mais ou menos 21 anos surgiu-me a ideia deste projeto. Na verdade, não surgiu tal como existe hoje. Estava numa viagem de trabalho, e fazia voluntariado com pessoas em situação de sem-abrigo. Estava no carro, numa zona rural de Portugal como temos muitas, creio que era no Alentejo.
Estava a passar numa aldeia completamente despovoada, e constatei o óbvio: caramba, temos tantas aldeias que não têm gente, tantas casas a cair, devolutas, e terrenos que estão baldios, disponíveis e não estão a ser aproveitados.
Pensei, porque não aproveitamos estas casas, as reabilitamos e as pessoas que estão em situação de sem-abrigo vêm para aqui? Habitam estas casas, trabalham estes terrenos… Fazemos uma parceria com a grande distribuição, e o que as pessoas plantarem nesses terrenos é escoado pela grande distribuição… Achei que tinha encontrado a solução para os sem-abrigo. Achei que era um génio. Não sou.
Fui falar com a Paula França, na altura era a responsável do NPISA (Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo) do Porto. Foi a mãe de um amigo meu, que era assistente social, quem me deu esse contacto. Fui com a raça toda de uma miúda de 21 anos: “minha senhora, descobri a solução para os sem-abrigo”, disse-lhe eu.
Ela ouviu e respondeu-me: “você é uma querida, mas a sua ideia não vai funcionar”. Porquê? “Porque vai estar a pegar em pessoas que são altamente desestruturadas e vai acrescer à desestrutura dessas pessoas”. Eu insistia “Não, não! Você é que não está a pensar bem. Isto vai funcionar!”.
Ela dizia-me “repare, eu trabalho nisto há uma data de anos, conheço as fragilidades e as dinâmicas desta população…”. Explicou-me por A mais B, como alguém que efetivamente tem experiência, que não ia funcionar… e eu, sempre a contrapor como alguém que não sabe do que está a falar, mas que é muito chata e persistente.
Eu insisti, insisti, insisti, e ela, claramente para me calar disse, ok, menina, então vou encaminhá-la para este projeto, que é a plataforma Mais Emprego, um projeto giríssimo de reintegração de pessoas em situação de sem-abrigo. E deu-me a conhecer esse projeto, onde eu efetivamente me apercebi que a ideia não era viável tal como a tinha pensado. Estive lá durante um ano e pouco, como voluntária, aprendi imenso. Sou daquelas que precisa de fazer para ver. Mas a senhora que fazia aquilo há uma data de anos tinha razão.
A ideia ficou na gaveta. Mas em 2015 a crise dos refugiados ficou muito próxima de casa. Tivemos aquela imagem hiper-marcante do Alan Kurdi, o menino sírio que morreu afogado numa praia da costa da Turquia, uma imagem chocante para o mundo todo.
E eu pensei que se calhar aquela ideia que tinha tido lá atrás podia fazer sentido para esta população. Comecei a pô-la no papel, a desenhá-la, a falar com algumas pessoas, com colegas que eu achava que podia fazer sentido, a tentar materializá-la.
Nessa altura estava a trabalhar em Lisboa. Conheci a Ghalia [Ghalia Taki, refugiada síria a viver em Portugal desde 2014], e ela disse que também achava que podia ser uma solução. Ela foi uma parte muito importante, fundamental até, e fundou o projeto LAR – Love and Respect comigo. Percebi, na altura, que existiam associações de acolhimento de primeira linha, e não existiam associações de segunda linha.
Nós chamamos de segunda linha porque é para as pessoas que acabam o programa de acolhimento de emergência. Nós funcionamos numa segunda fase. Se as pessoas não se integraram ao fim daqueles 18 meses, estamos aí como uma solução.
Falámos, e achámos que este projeto podia fazer todo o sentido. No caso dos refugiados e dos migrantes, os problemas e as fragilidades que se aplicavam às pessoas sem-abrigo já não se aplicam. Estamos a falar de pessoas que precisam de casas, e as nossas aldeias precisam de pessoas!
Começou então a materializar-se a ideia, desenhou-se um plano de negócios… O objetivo não é ser uma associação que vai precisar de dinheiro e ser subsidiodependente, ou mecenatodependente, a vida toda. É ser uma associação sustentável. Nós queremos é dar a cana e ensinar a pescar, para que isto seja uma alternativa de vida digna, que as pessoas estejam aqui bem integradas, que se criem aldeias sustentáveis e comunidades intergeracionais e interculturais.
Nós, país, precisamos disto.
Definimos quais eram as necessidades da aldeia ideal para implementar o projeto. Teria de ser uma aldeia despovoada, mas isso é o que há mais, infelizmente. Teria de ser próxima de uma cidade, de um sítio com escolas, hospitais, universidades, os serviços para as pessoas criarem uma vida. Foi assim que vim parar a Ima.
Houve pessoas que me cediam terrenos em Montalegre, mas não tinha nada próximo; no Alentejo, também não. E aqui tinha tudo. Fica a 15 minutos da cidade da Guarda, e lá existem os serviços todos.
Um amigo meu tinha aqui terrenos. Eu vim aqui parar porque ele é primo do Agostinho da Silva. Fizemos uma reunião na Casa do Povo, onde estavam todos os senhores da aldeia. Estava a fazer a apresentação e, de repente, o senhor Rabaça diz: “Não preciso de ouvir mais nada, já ouvi o que tinha de ouvir. A minha casa é para vocês. Se é para pessoas que vêm por bem, podem vir! Se precisam da casa, podem usufruir dela”.
Eu a tentar mostrar-me forte, mas já tinha uma lágrima no canto do olho… Fiquei derretida e rendida a estas pessoas. Eu costumo dizer que só é preciso o primeiro acreditar. E assim foi. Nós queríamos só quatro casas, porque não podemos ter uma comunidade desequilibrada. E tivemos quatro proprietários a cederem-nos as casas. E cá estamos.
Eu vim viver para Ima em 2018. Arrendei uma casa nas Casas da Ima. As Casas da Ima foram reabilitadas para Alojamento Local pelo Isidro, filho do senhor Joaquim Almeida que é arquiteto na Câmara e também nos ajudou muito.
O meu dia-a-dia aqui na aldeia era muito focado no trabalho. Estava aqui numa missão, de fazer isto acontecer. Tivemos desde logo muitos parceiros, como o Pingo Doce, que era muito importante para o escoamento dos produtos.
Mas era um dia-a-dia muito tranquilo. Tinha a vantagem de ter coisas na horta, estava tudo bem se não fosse ao supermercado. Há uma entreajuda muito grande. Não sou agricultora – cheguei a ter uma formação, mas não é o meu métier. O senhor Joaquim ajudou-me a plantar tudo. Se eu precisasse de alguma coisa, os vizinhos estavam lá…. A Paula, que mora na casa ao lado da minha, fazia-me muitas vezes o jantar. Era uma pessoa que nunca foi muito fã do projeto – tinha as razões dela – mas sempre me tratou maravilhosamente bem.
Nunca me faltou nada em Ima. Apesar de não termos aqui na aldeia um café, um supermercado, nada, a verdade é que temos tudo. É uma vida pacata, obviamente, sobretudo para quem viveu no Porto e em Lisboa. Não chego à sexta-feira e vou para as Galerias. Mas é uma tranquilidade enorme. É ver as estrelas de uma forma que não se vê em muitos sítios. As vacas a passar são uma super companhia – estou sempre a brincar, falo imenso com elas. Ela não respondem muito, mas se respondessem também tinha de ir ver isso rápido, alguma coisa estava mal (risos). Mas é uma paz!
Isto é o melhor de viver numa aldeia. Além da tranquilidade, há a segurança, a amizade e a proximidade. Toda a gente se trata pelo nome. Há um cuidado com a necessidade do próximo muito grande.
À medida que as pessoas vão desaparecendo, isso vai deixar de existir, porque as pessoas já são muito idosas. Há pessoas que estão aqui sozinhas, muito sozinhas. É preciso que haja aqui uma comunidade, que haja pessoas novas, e não me refiro apenas às recém-chegadas, refiro-me a novas em idade. Pessoas que venham dar uma nova vida, uma nova alma e que venham fazer companhia. Sejam cuidadores informais.
Quando comecei o projeto tinha visualizado o que seria o sonho. Eram putos a correr na rua. E eu já vi putos a correr várias vezes. Portanto, está a correr como eu sonhei. Há imensos entraves e dificuldades. O tema refugiados é um tema a que muitas pessoas torcem o nariz, por desconhecimento, por ignorância pura.
Não é fácil, às vezes, obter apoio ou braços abertos. Mas não é isso que nós fazemos exclusivamente. Nós acolhemos seres humanos que precisam de apoio e estamos a criar comunidades do futuro. É preciso que as pessoas tenham consciência que se não acolhermos pessoas no interior – e migrantes, porque portugueses não querem vir para cá, mas nós recebemos portugueses sem problema – as aldeias vão desaparecer. Portanto, esta é a solução para o futuro.
Ninguém destas famílias está preso aqui. A ideia é que queiram ficar aqui porque este é o sítio para ficar. Temos duas famílias que já cá estão há mais de um ano e não mostraram nenhum sinal de querer ir embora. E aqueles que olham para Portugal como ponto de passagem, o que acontece é que chegam e vão.
O projeto foi feito a pensar em integração eficaz a longo prazo. Por isso criámos postos de trabalho, as casas têm contratos com mais de dez anos. Criámos as redes – a Vanessa trabalha muito com a questão da parceria e das redes para as pessoas depois…. a ideia é nós, enquanto associação, deixarmos de existir aqui e que as pessoas fiquem completamente autónomas. Se me perguntarem qual é o sonho máximo, eu direi que é esse: nós não existirmos e as pessoas estarem completamente autónomas.
A ideia é replicar depois o projeto noutro sítio. Sim. Uma aldeia de cada vez.
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Jarmelo: a forjar as aldeias do futuro
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