Mateus Trindade tem quase 90 anos e uma vida dedicada ao serviço militar. Esteve muitos anos em África e acabou por ficar colocado no Quartel da Guarda, onde foi sendo promovido até chegar a capitão. Reformou-se com 52 anos de idade e 36 de serviço, mas continua a dizer que só sabe trabalhar. Teve receio da chegada de migrantes e refugiados, mas reconhece que vieram dar vida à aldeia. Agora, diz, são todos uma família. Eis o seu testemunho.
“Um dia bom é um dia passado a trabalhar”
Chamo-me Mateus Monteiro Trindade, nasci na Urgueira, uma aldeia aqui do Jarmelo, vou fazer 90 anos no próximo dia 10 de agosto. Vim morar para Ima depois de casar com uma senhora que nasceu naquela casa, a Maria Alcina Reis Almeida Trindade. Ela é mais nova do que eu dez anos, e tem um bocadinho de mim no nome. Casámos mais tarde do que eu pensava. Sempre pensei casar-me lá para os 25 anos, mas só casei aos 38. Não tive hipótese de casar mais cedo.
Fui sargento durante muitos anos, estive onze Natais seguidos em África. Estive quase seis anos em Moçambique e, quando me deram essa comissão por finda, vim para Portugal e casei. Depois levei a mulher para África e estivemos oito meses em Cabinda, Angola. Em Angola cheguei a estar 27 meses. Depois vim de lá, estive cá quatro meses e fui logo para a Guiné-Bissau. Estive lá dois anos, mas a verdade é que paguei 500 escudos para voltar de avião, porque já não queria ficar uma semana à espera de um barco.
Não cheguei a voltar para África, porque entretanto dá-se o 25 de Abril. Senão ainda tinha voltado. Se gostava de lá andar? É a minha profissão. Não tive outra.
São todos muito simpáticos, convivem connosco. Os nossos miúdos, os nossos netos, quando vêm cá vão jogar à bola com eles… Somos uma família autêntica.
Mateus Trindade, a propósito dos novos habitantes de Ima
Os meus estudos foram o terceiro ano do seminário. Não fui para mais lado nenhum, que os meus pais não tinham hipótese de me pôr a estudar em mais banda nenhuma.
Nesses três anos no seminário deu-me para tirar o curso de cabo miliciano, para depois ser promovido a sargento. Só em 1971 , depois de vir da Guiné é que fui frequentar a escola de oficiais em Águeda. Estive lá dois anos, até 1973. Depois fiquei aqui na Guarda, e lá fui sendo promovido até ao posto de capitão. Ainda estive em Lisboa a comandar as tropas em Braço de Prata, e depois a chefiar um quartel-general em Coimbra. Quando cheguei aos 36 anos de serviço, meti os papéis para vir para a reserva, já com 52 anos.
A minha casa é mesmo esta, aqui à frente. Fui eu que a fiz quase toda. Fiz a parte elétrica, fiz os rebocos, fiz tudo. Como aprendi? Eu quando vejo alguém a fazer qualquer coisa, olho sempre para ver como é que se faz.
Agora ando por aqui a reconstruir este muro, que estava quase a vir abaixo. Comprei há pouco tempo esta casa e o terreno, ainda nem fiz a escritura. Mas já meti o projeto à Câmara. Esta fração não pode adquirir licença de habitabilidade, por isso está como abrigo para os animais. E eu ando a compor o muro, e depois vejo o que faço lá dentro. Mas se calhar vou só limpar o que para lá está acumulado.
Para mim, um dia bom é um dia a trabalhar, de manhã à noite. Eu estou assim, com a idade que tenho, porque ando a trabalhar. Senão, já não me mexia.
Desde que me levanto, às 7h30 da manhã, até que me deito – e eu nunca me deito muito cedo! -, só me sento à hora da refeição e à noite um bocadinho…. de resto, é sempre a trabalhar. O que se passa é que entre as três e as cinco da manhã não consigo dormir. E de manhã acaba por ser quando me dá mais sono.
O melhor de viver na aldeia é nós termos as nossas coisinhas. O que nós produzimos é um alimento especial. Eu só produzo para mim, a batatinha, o feijão, umas hortaliças e os castanheiros. No campo já faço pouco. Entreguei os terrenos quase todos. Há aqui um pastor que tem muito gado e tem falta de pastagens, e ele está a usar o terreno. No melhor prédio que tenho na aldeia fiz um furo, que tem água que chegue para mim e para os outros. Dou água à minha cunhada, dou água aos do projeto LAR [da Associação de Apoio à Inclusão de Imigrantes e Refugiados].
Quando nos falaram do projeto LAR – Love And Respect eu fiquei com má impressão, tive algum receio. São religiões diferentes, línguas diferentes, por isso pensei que podia haver problemas. Não houve, felizmente.
São todos muito simpáticos, convivem connosco. Os nossos miúdos, os nossos netos, quando vêm cá vão jogar à bola com eles… Somos uma família autêntica.
Eu tenho três filhos e seis netos: tenho uma filha a viver no Algarve, com duas miúdas; tenho uma filha a viver no Porto com um miúdo, e tenho aqui um filho a viver na Guarda e que é o que vem cá mais vezes. Ele tem dois miúdos e uma miúda.
Para a aldeia, isto [a chegada dos migrantes] foi bom. Agora devemos ser a aldeia com mais movimento. Éramos dois gatos pingados, digamos assim. Eram sete ou oito habitações, só com uma ou duas pessoas em cada casa. De cá éramos uns 20, se tanto. Os imigrantes já são 15, quase tantos quanto os portugueses.
Primeiro chegaram duas famílias, há quase um ano. Esta semana chegou mais uma família. Tivemos um convívio com todos, na Casa do Povo. Foi bom. As castanhas não estavam lá muito bem assadas, mas bebeu-se uma jeropiga (sorrisos). Eles falaram sobre o que sentiam de estar aqui. E estão todos satisfeitos por estarem aqui, sabe? Na verdade, foram bem acolhidos, estão bem instalados e não lhes falta nada. Pode faltar-nos a nós, mas a eles não lhes falta nada. Vem a carrinha buscar os miúdos para ir para a escola; eles andam em três escolas diferentes na Guarda.
Eu não tinha grande fé no projeto, por isso no início fiquei um bocadinho fora. Na verdade eles incomodam-me pouco. Mas se precisarem de alguma coisa, estou sempre disponível. Encontram-me sempre por aí. Ando sempre a fazer as minhas coisinhas.
Mais sobre Jarmelo
Jarmelo: a forjar as aldeias do futuro
Já foi um castro e vila medieval. Hoje, o Jarmelo, na Guarda, é sobretudo um território de pequenos povoados dispersos com o alto do monte, o alto de Jarmelo, a uni-los. Jarmelo é também terra de ferreiros – é lá que vive o último fazedor de tesouras de tosquia – e é terra de inclusão. Em Ima, está a decorrer um projeto-piloto de integração e migrantes e refugiados.
O que fazer em Jarmelo (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Jarmelo, no concelho da Guarda. Inclui o que fazer na aldeia de Ima e arredores – atividades, trilhos e passeios -, onde ficar hospedado, gastronomia e contactos úteis.
Bárbara Moreira, a sonhadora
Bárbara Moreira nasceu e cresceu no Porto, teve sempre uma vida urbana. Mas em 2018, com 28 anos de idade, mudou-se para Ima do Jarmelo para concretizar o projeto LAR, de apoio à integração de migrantes e refugiados. Convenceu os moradores da aldeia a cederem casas e terrenos, fez parcerias e contratos e criou na aldeia postos de trabalho.
Mateus Miragaia, o ferreiro
Mateus Filipe Miragaia é o último fazedor de tesouras de tosquia. Aos 80 anos, o “velho da martelada”, como se auto-intitula, ainda acende a sua forja em Donfins para fazer tesouras. De rosto feliz e gargalhada fácil, foi homem de trabalho a vida toda.
Karima Javaid, a recém-chegada
Ugandesa, casada com um paquistanês, Karima fugiu da violência de Kampala para a Europa, com dois filhos nos braços. Chegou à Alemanha em 2016 e a Portugal em 2019. Em Lisboa, enquanto esperava a regularização, nasceu-lhe mais uma filha. Chegou a Ima, no Jarmelo, em outubro de 2020. Nunca tinha vivido numa aldeia, e agora diz que não quer ir para mais lado nenhum.
Agostinho da Silva, o apaixonado
Professor de artes visuais, sindicalista, ex-presidente da Junta de Freguesia, Agostinho da Silva nasceu em Ima e respira Jarmelo por todos os poros. Ainda não mora lá, mas vai lá quase todos os dias. Envolve-se nas atividades culturais, recriativas e desportivas e foi um dos grandes entusiastas do projeto de acolher migrantes no território.