Pensou em sair do Soajo a salto, mas o pai emigrado mandou-o chamar. Foi aos 16 anos que começou a vida de emigrante, passou por Paris e pelos Estados Unidos, e cada ano que passava tinha mais a certeza de que a sua terra era especial. Começou a perceber que as tradições comunitárias da aldeia estavam a desaparecer e sentiu-se impelido a registar tudo com a sua máquina, primeiro de fotografar, depois de filmar também. Empresário da restauração, fotógrafo autodidata, todos conhecem o Tenais e muitos se deixaram fotografar por ele. Por isso é ele o responsável por um importante espólio documental da aldeia e das suas tradições. Eis o seu testemunho.

“A fotografia foi sempre um hobby, mas era uma verdadeira paixão”
Chamo-me António Neto, nasci aqui no Soajo no dia 10 de dezembro de 1948. Éramos uma família com muitas carências, mesmo muitas. Tinha uma irmã, que já morreu. O meu pai andou sempre a trabalhar fora, primeiro para Alhos Vedros, e depois, por volta de 1960, foi para França. Em 1965, quando eu tinha 16 anos levou-me com ele. Soube que eu queria ir, nem que fosse a salto, e então chamou-me. Ele trabalhava na indústria pesada, no leste de França. E eu fui também trabalhar para lá, numa fábrica de ferro. Lembro-me muitas vezes daquele barulho… Estive lá dois anos, mas depois separei-me do meu pai, e fui trabalhar para outra zona, mais perto de Nancy. Também na área do ferro.
Lembro-me de muitas coisas da minha infância, e de como era a vida aqui no Soajo. Eu comecei cedo a trabalhar, nem a quarta classe fiz. Havia fome em casa, era preciso ir trabalhar. A minha mãe trabalhava na agricultura, e eu ia muitas vezes ajudá-la. Ela andou a plantar árvores para o Estado, e quando eu tinha 13 anos também andei a plantar pinheiros como ela. E depois arderam todos num incêndio. Quando vi arder aqueles pinheirinhos todos foi uma grande dor. Mas foi por a vida ser difícil que decidi sair daqui.
Estava morto por sair daqui para fora. Andavam aí passadores e eu estava a tentar convencê-los a levarem-me. Mas nem sabia como lhes havia de pagar. Não fez falta porque o meu pai soube, e veio-me buscar.
António Neto
Quando cá estava, queria muito sair, ir embora. Mas depois é que dei valor a isto.
Se o meu pai não me viesse buscar, tinha de ir a salto. Mas como era menor, ele pôde levar-me na companhia dele.
Os tempos continuaram difíceis. Quando fui para França ganhava para comer. Os mais velhos ganhavam mais dinheiro, mas acho que eu, com dezasseis anos e a sair da casca do ovo, não juntava dinheiro nenhum. Chapa vinha, chapa ia. Depois de dois anos com o meu pai, e por causa de umas zaragatas lá na fábrica, fui trabalhar para outro lado. Fui para Nancy.
Nessas alturas não vinha ao Soajo todos os anos. Mas em 1969 vim. Vim passar o Natal com a minha mãe e a minha irmã, e depois já não voltei para Nancy. Arranjei trabalho em Paris na construção civil e depois uma namorada Asturiana que me arranjou trabalho num restaurante em Saint-Germain-des-Prés a servir à mesa. Estive cinco anos a trabalhar nesse restaurante e aí posso dizer que estava um bocadinho melhor. Nos dias de folga até ia ao cinema!
Mas eu sou um bocado tímido e não gostava daquele serviço. Dizia à minha namorada que queria voltar para a construção, mas ela pedia-me para não ir, dizia que era um trabalho muito porco, muito sujo. E lá me foi convencendo. Ao fim de cinco anos separámo-nos. Ela já tinha um filho. Ela era mais velha do que eu, tinha um filho com oito anos, e eu não estava mentalizado para casar com uma mulher com um filho. Uma parvoíce. Hoje em dia não é importante, mas naquela altura Deus me livre.
Eu sempre quis regressar ao Soajo, era o meu sonho. Quando cá estava, queria muito sair, ir embora. Mas depois é que dei valor a isto. Nos anos em que estava em Paris vinha cá todos os anos, nas férias – que em agosto Paris é um deserto. E foi aí que comecei a dar valor a isto. Lembrava-me daquelas cavadas e de outras tradições aqui da terra e pensava no que se estava a perder. Eu olhava para as coisas e dizia “eu queria retratar isto”. Então comprei uma câmara.
Quando eu era pequeno (devia ter para aí uns 12 anos) um senhor que veio dos EUA chamado Ti Dias trouxe uma polaroid. Tirou-me uma fotografia a mim e à minha avó, e deu-ma. Talvez tenha sido aí que senti a magia da fotografia. Eu gosto muito de imagens, gosto muito de pinturas. Tanto que quando estava em Paris ia muitas vezes ao Sacré Coeur e a Montmartre e ficava ali tempos infinitos a ver aqueles pintores todos a trabalhar. Mas eu não sei fazer nada. Virei-me para a fotografia. E sempre que vinha ao Soajo, fazia fotografias. Eram sempre fotos de pessoas. É uma coisa que eu adoro, fotografar o ser humano. Mais do que paisagens. Na paisagem eu não sou muito forte. Mas eu sou autodidata, nunca estudei nada de fotografia.
Depois daqueles cinco anos em Paris, regressei ao Soajo e ainda cá estive uns seis meses. Prometi à Emília que me casava com ela, que ela podia ir para os Estados Unidos e voltar, que eu me casava. E assim foi. Quando casámos em setembro, no ano em que regressei de vez de Paris, lá emigrámos os dois. Fomos para perto da família dela, na zona de Boston. Arranjei trabalho para mim e para ela. Primeiro estive como empregado de mesa em New Jersey. Mas não gostei daquilo. Fomos para Massachussets. E ali estivemos. Nessa altura não vínhamos sempre ao Soajo. Estivemos cinco anos sem cá vir. Aliás, quando se deu o 25 de Abril não estávamos cá. Fui em 1973 para a América e depois só vim a primeira vez em 1978. E regressei de vez em 1985. Vendi lá um bruto restaurante que tinha em Lowell. A maior parte das fotos e dos vídeos começaram aí.
Antes de vir para Portugal, fui a Nova Iorque de propósito. Queria vir bem equipado, também com máquina de filmar. Já vinha com essa ideia de fazer vídeos, de registar todas as tradições… cavadas, lavradas, carrejadas, corridas ao lobo. Tenho muita coisa filmada e fotografada, por isso tenho cedido o meu trabalho a biólogos, antropólogos, etnógrafos…
A última batida do lobo que se fez aqui, em 1986 ou 1987, está toda filmada por mim. Tenho filmes dos lobos a correrem pela serra abaixo. Na altura filmei-a. Aquilo não tem qualidade nenhuma, mas graças a esse esforço de registar tudo, os antropólogos e os estudiosos todos podem levar o material. Há aí um autor que está a fazer um projeto sobre o lobo e o cavalo que me levou montes de fotografias. Ao menos servem para alguma coisa.
A fotografia foi sempre um hobby, mas era uma verdadeira paixão. Nas minhas fotografias não há pose. Os meus registos são todos espontâneos. Gostava muito de fotografar as mulheres, sobretudo as de preto. Aqui todas se punham de viúvas, e eu sempre fiquei fascinado com isso. Ia por essas aldeias fora e às vezes punha-me a falar com as velhinhas… “ah, e tal, então você está viúva? não pensou em casar outra vez? eu também sou viúvo e tal… (gargalhada)” E eu punha a câmara e tirava. Ela ouvia o click e dizia… “ah, você é malandro, você está-me a retratar”. E elas quase nunca ficavam zangadas. Por isso é que eu acho que estes registos são importantes.
Há uma fotografia de que eu gosto muito, quando a vejo fico sempre emocionado. É a fotografia à Dona Isabel, de Castro Laboreiro. Vivia numa branda, quem vai para Portos. Ia de carro, olhei para ela e parei o carro e … meti conversa. E fiz várias fotos dela. Ia visitá-la todos os natais. Um dia cheguei lá para a visitar, perguntei por ela e disseram-me “morreu”. Que desgosto! Eu gosto muito dessa foto pela expressão da senhora, pelo lenço na cabeça, pelas rugas, pelos alfinetes, pelo cruzar as mãos… por tudo.
Eu quando saía para fotografar não tinha noção do que andava à procura. Mas acho que nunca estava satisfeito com os retratos que tinha feito, eram sempre poucos. No início fotografava com o rolo, mas depois chegou o digital, e aí então é que eu brincava.
Mesmo depois de ter o restaurante, continuava a fotografar. Arranjava sempre tempo. E então, quando sabia que se iam dar coisas à moda antiga, as cavadas à leiva, as lavradas, queria sempre registar tudo. A maior parte das minhas fotografias é aqui do Soajo – as mulheres a carrar lenha, a conversar no Eiró, a carrejar o estrume, a fazer as medas… Também tenho muitas do Sistelo. As cavadas e as lavradas são de lá. O moinho fotografei na Gavieira, o forno é da Prazeres, na Peneda. Andava por aqui à volta, em vários sítios.
Por ter para aí tantas fotografias – algumas até já estão no Centro de Etnografia do Soajo – é que um amigo meu andou anos a insistir comigo para editar um livro. E eu andei sempre a adiar, sempre a adiar. Até que me lembrei de um tema e pensei que podia fazer um livro com imagens sobre o ciclo do pão. Era uma forma de homenagear todas as mulheres – porque eram sempre elas a fazer estes trabalhos tão duros, e ao mesmo tempo também a serra, porque a serra é que nos dava o sustento.
A minha motivação com o livro também é deixar uma mensagem clara a pedir respeito pelo Soajo, e pela história fabulosa, riquíssima, que tem. Em 1200 já oferecia sabujos aos reis. O livro já está publicado. Chama-se “Soajo – O Pão que a Serra Amassou”.
Eu amo o Soajo, de verdade. Para mim é… é tudo. Eu adoro a vila e adoro a serra. Adorava passear na serra. Agora, infelizmente, não posso – desde há três anos, que tive um AVC e a minha mobilidade está muito comprometida.
Nem consigo dizer apenas um sítio de eleição, porque eu tenho muitos. Tenho vários no rio, tenho um lá em cima na serra, no alto da Pedrada! Voltei lá há pouco tempo, que tiveram a bondade de me levar de jipe. É o sítio mais alto da serra do Soajo!
António Neto
A última batida do lobo que se fez aqui, em 1986 ou 1987, está toda filmada por mim. Tenho filmes dos lobos a correrem pela serra abaixo.
Nem tenho palavras para descrever o que é ser de Soajo, ser um soajeiro. Já andei por muitos sítios, França, Estados Unidos, Luxemburgo, Alemanha, Itália, Cuba… há muitas coisas diferentes, e até se podia pensar que Soajo não tinha hipóteses, em termos de turismo. Mas tem. Estou cada vez mais convencido disso.
Quando voltei de vez dos Estados Unidos abri um restaurante. É engraçado porque no início, quando andava a construir a casa (porque fui eu que a ajudei a construir) estava a pensar em abrir uma discoteca. Eu achava que fazia falta um espaço desses aqui no Soajo. Aliás, aqui no Soajo todos me conhecem por Tenais por causa de uma música. Quando éramos moços, juntávamo-nos ali ao fundo da avenida, levávamos um gira-discos e púnhamos uns discos a tocar. E eu levava sempre um de um grupo Creedence Clearwater Revival mas era a “Hey Tonight”. E nem inglês sabia falar. Punha-me a cantar “tenais, tenais”. Quando eu chegava com os meus discos, a rapaziada dizia logo “vem aí o tenais”, e assim ficou.
Mas desisti da ideia da discoteca. Um amigo, que é meu vizinho, é que me disse, “oh pá, tu vens da restauração, abre mas é um restaurante”. E eu comecei a pensar que ele tinha razão, e abri. Foi o primeiro restaurante da vila, porque aqui só havia tascas. Quando abrimos o restaurante, nos primeiros dias nem me estava a habituar àquelas vazões de gente. Aos fins de semana, ou quando havia neve na serra tinha sempre tudo, tudo cheio.
E depois foi sempre a melhorar. O Videira, que era uma tasca, modernizou-se, e eu pensei, olha que bem! Depois, foi o Borralho, também está bem, já éramos três, puxávamos uns pelos outros. E todos estão cheios.
Agora já não faço muita coisa, nem na fotografia, nem no restaurante. Vejam lá que ainda nem ao Centro Etnográfico fui ver a exposição que lá está – e tem tantas coisas minhas. Mas ainda lá vou. Só ainda não me deu para tentar subir as escadas. Estou muito feliz aqui no meu canto, e a minha alegria agora é ter mais um netinho. Tinha duas netas, e agora chegou um rapaz. É a alegria da casa.
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