Tem 30 anos e é um homem da montanha em todas as suas facetas. Trocou as boas notas e a escola pela pulsão de descobrir e viajar. E as viagens só o levaram a gostar ainda mais da serra onde nasceu. Tornou-se empresário, lidera viagens de exploração e atividades outdoor na serra onde, diz, sente a veia do amor. Eis o seu testemunho.

“Os Soajeiros são o nosso melhor recurso”
Chamo-me Manuel Lage, tenho 31 anos e sou um soajeiro convicto. O Soajo para mim significa o berço, onde nasci, onde fui criado, onde estão as minhas raízes. É a terra mais bonita do mundo, ponto. E em parte foi preciso ir ver o mundo para chegar a esta conclusão. Saí muitas vezes do Soajo e quanto mais saía, mais valor dava ao que eu tinha aqui. Desde o momento de estar nos Alpes e ver umas pessoas a subirem a um rio e eu pensar que podia fazer isto no meu berço, na minha terra; a estar em Atenas, sentir um tremor de terra e pensar que nunca tinha sentido isso no Soajo.
O Soajo sempre me deu muita segurança, eu posso sair muito, posso ir trabalhar para outros sítios, posso ir viajar até aos confins da Terra. Acho que o meu porto seguro vai ser sempre o Soajo. Os vários Soajos. O Soajo da serra, o Soajo do rio, o Soajo da localidade, o Soajo das pessoas e de toda a envolvência natural que tem.
Eu tenho um percurso um bocado diferente do que era suposto. Os meus pais sonhavam que eu fosse para a universidade e eu nunca lá pus os pés. O meu sonho era outro. Desde muito jovem, o meu sonho sempre foi viajar. Eu lia bandas desenhadas de aventureiros, via os filmes do Indiana Jones … A minha maior paixão era, aos fins de semana, antes do jornal da tarde, ver aqueles relatos da BBC Vida Selvagem, e com isso poder estar no Serengeti ou no meio do oceano a ver os tubarões. Desde muito jovem sempre tive essa curiosidade.
A minha infância sempre foi aqui, nestes caminhos, no rio, a saltar de pedra em pedra, a andar de bicicleta com os meus amigos. Andei aqui na primária, mas no quinto e sexto anos já fui para Arcos de Valdevez, que é uma viagem chata de se fazer, para uma criança que tem 11, 12 anos. Eram 40 km de autocarro por dia. Saíamos de casa às sete da manhã, ainda de noite, no inverno às vezes chovia dentro do autocarro, fazíamos o dia todo na escola e na volta, já era de noite outra vez, estávamos cansados de fazer essas viagens, crianças, que só queriam era comer e dormir, e ainda tínhamos de fazer trabalhos de casa e essas coisas todas. Se calhar foi isso que me fez rejeitar o percurso escolar.
Manuel Lage
Penso sempre em grande para depois aproveitar o que for possível.
Nessa época fiz algumas viagens residuais. Uma delas foi nos Estados Unidos com o meu pai e o meu tio, que viviam lá, eram freelancers de camião. Transportavam carga de um Estado para o outro, iam de Nova Iorque até Delaware, depois em Delaware pegavam um outro para levar ao Texas, depois do Texas levavam outro até à Califórnia e assim sucessivamente. Eu tinha 13 anos e fiz uma dessas viagens com eles. Ali realmente entrou-me aquele bichinho da exploração. Andei dois meses no camião, passei por 14 Estados.
Quando terminei o secundário até tinha notas relativamente boas. E estava muito indeciso entre dois cursos, que eram Ciências do Desporto (que o desporto sempre me acompanhou em toda a minha vida) ou Línguas e Culturas Orientais, a pensar na tradução. Foi-me incutido que era um curso com boa saída. Mas eu comecei foi a pensar nas viagens e a universidade acabou por ficar em águas de bacalhau, literalmente.
Houve um momento em que disse aos meus pais – se me quiserem dar parte do dinheiro que tenho para ir para a universidade, eu quero ir viajar. E foi assim. Com 18 anos saí através do programa Erasmus. Estou sempre a reforçar isto: os programas Erasmus não têm de ser focados na universidade. Há programas Erasmus que nos permitem sair durante 2 meses, 3 meses, 6 meses, viver noutros sítios e absorver muito da realidade que existe nesses sítios.
Foi um programa desses que permitiu que uma pessoa com 18 anos, como eu tinha na altura, tivesse alojamento e comida paga no sítio onde estava a viver. Eu aproveitei. Entre os 18 e os 21 andei a viajar pela Europa, fiz várias temporadas de inverno em Andorra. Eu também trabalhava com desporto, com ski.
Foi quando voltei, já com um background muito enriquecido e algumas experiências, que acabei a formar a minha empresa aqui. Comecei pela gestão de alojamento local, a gerir uma casa que a minha madrinha tinha para turismo. Comecei a alugar a casa e depois percebi que as pessoas vinham e não tinham nada para fazer no Soajo. Comecei a falar em trilhos, caiaques, essas coisas, e comecei a abrir várias janelas. Não havia ninguém a fazer isso, comecei a fazer eu. “Eu até gosto disto, gosto de desporto, gosto de natureza. Vou começar a fazer uns trilhos”, pensava.
Criei o meu RNAT em 2017 e comecei a tratar das coisas mais profissionalmente. Agora já tenho um percurso de nove anos nesta área e o turismo já é a principal fonte de rendimento que tenho e que me permite estar aqui grande parte do ano.
Tenho uma empresa unipessoal focada em atividades de outdoor. Caiaque, paddle, stand up paddle, trilhos, river trekking, canyoning. Nos últimos quatro anos também me foquei nas experiências gastronómicas. Percebi que só fazer o trilho não chegava. Quando comecei a oferecer um jantar no final do trilho, ou um almoço a meio do trilho, a adesão foi muito maior.
Por isso, as atividades outdoor ainda são o meu foco principal, mas começaram a haver outras atividades paralelas, como a Taberna Montanh’ Arriba, a gestão de casas de alojamentos e, desde há quatro anos, também o festival Soajo Outdoor Fest.
A realidade de viver no Interior não é fácil por vários motivos. O maior exemplo que posso dar – e que acabou por ser a maior aventura da minha vida – foi um acidente que tive, quando andava a limpar um trilho, e acabei por cair numa zona de escalada. O meu resgate demorou três horas e meia, e terminou comigo a passar 50 dias no hospital com um pneumotórax e as costelas partidas.
Eu reforço que o Soajo nem é dos sítios mais isolados. Se no Soajo estamos a 1h20 do Porto, sem trânsito, demorou 3h30 a fazer o resgate e até chegar ao hospital mais próximo, de Ponte de Lima, imaginemos numa aldeia que seja mais remota.
Por estas coisas, às vezes, não é fácil viver nestes sítios. Eu entendo perfeitamente as pessoas que queiram sair e ter uma vida mais cómoda, perto de mais recursos. Mas uma coisa também é certa, se saírmos todos daqui, os recursos não se criam. E os que há agora, uma farmácia, um centro de saúde, um restaurante, as padarias, as pastelarias, acabam por fechar. E quando dermos por nós, ou estamos a viver numa Disneyland, uma vila turística, ou então temos um monte de silvas, tudo abandonado.
Não é fácil, eu sei. Eu próprio não estou cá o ano inteiro. Mas grande parte do ano eu estou aqui e quero permanecer aqui. Tive oportunidades, até no estrangeiro, de ter ficado bem assalariado, mas que eu recusei. Eu quero estar aqui durante grande parte do meu ano, que é para manter esta vida também no Soajo, na minha aldeia.
Eu acho que posso passar a palavra a qualquer Manuel que esteja noutra aldeia qualquer, em Portugal ou pelo mundo fora. Realmente nem sempre é fácil viver no Interior, mas temos de ser um bocadinho persistentes e criar e manter os recursos que nós temos cá para não acabarem. E tentar trazer mais pessoas para cá, independentemente dos trabalhos delas. Agora, isto dos nómadas digitais e do trabalho remoto é muito importante. Nós também temos recursos físicos que nos permitem receber pessoas cá e ficarem cá mais tempo.
E isso acaba por se refletir em tudo. Reflete-se na população que aumenta, reflete-se no mini-mercado que não fecha, que vende mais, que se calhar até vai aumentar a faturação. Isto é sucessivo. Mais uma vez, sou empático com as pessoas que emigram e com os meus colegas que emigraram, mas muitos deles quando emigram estão sempre com a ideia de voltar, passados poucos anos, para formar algum negócio aqui. Mas é isso, os negócios não vivem sem pessoas e as pessoas não vivem sem os sítios habitados, portanto é toda uma avalanche de coisas.
Eu tenho perspetivas positivas, até porque sou uma pessoa positiva e gosto também de ver as coisas em grande. Penso sempre em grande para depois aproveitar o que for possível. E posso falar do evento que organizo aqui, o Soajo Outdoor Fest. Começou muito rudimentar, literalmente. Um palco em 16 tábuas e três paletes, eu e mais dois amigos, foi isto, os números são estes. A adesão foi muito maior do que eu esperava. À uma da manhã já não tínhamos bebidas nenhumas. Esgotámos tudo. No segundo ano fizemos dois dias, este ano já foi quatro e para o ano será cinco.
Há pessoal que veio ao festival e que nunca cá tinha vindo, ou se calhar tinham vindo em crianças e já não se lembravam, e gostaram tanto da vila, do festival e de tudo o que rodeia a serra, as vistas, as lagoas, que já deixaram as casas alugadas para o próximo ano, para vir outra vez.
Essas coisas vão fermentando e permitem que se encontrem oportunidades de negócio, se reconstruam as casas que já existem, que se façam outras novas. Pôr o Soajo no mapa com esse tipo de eventos, também vai um bocado por aí. Não é só para nós ganharmos, é para trazer o pessoal de fora.
Manuel Lage
Houve um momento em que disse aos meus pais – se me quiserem dar parte do dinheiro que tenho para ir para a universidade, eu quero ir viajar.
O futuro é por aí. Tentar cativar pessoas, pensando sempre na não-massificação exagerada das coisas – nós estamos num território do Parque Nacional. Temos de pensar num futuro sustentável e essa sustentabilidade parte de quem está cá e de quem nos vem visitar e fica cá.
Eu sinto-me um privilegiado por viver no distrito de Viana do Castelo. Um dia perfeito para mim é levantar-me às oito e meia da manhã, ir à pastelaria aqui do Soajo, tomar o meu pequeno almoço, pegar num grupo e levá-lo até ao rio, almoçar, e depois pegar na minha caravana, ir à praia e dormir na praia. Tenho serra e mar, a uma distância de 45 a 50 minutos.
Eu gosto de dar um checkpoint na praia, ver o mar, mas sem dúvida que sou um homem da serra, sou um homem da montanha. Mesmo nos destinos quase sempre escolhidos, quando vou de férias ou quando vou viajar, é montanha. Alpes, Pirinéus, Andes, Cáucaso… Mas o Soajo é o Soajo. As paisagens que o Soajo tem, os recursos naturais que o Soajo tem, estes caminhos, estas construções feitas pelo meu bisavô, tetravô, é esta fusão do homem e da serra que acho que é brutal.
Em termos de comunidade, acho que já fomos muito melhores do que somos. Já fomos um povo hiper mega comunitário, isso nota-se pelos espigueiros, pela eira comunitária, pelo trabalho entre as pessoas do campo, havia entreajuda; estamos a léguas de tudo isso.
Neste momento temos um bom mix de culturas no Soajo, com pessoas que escolheram vir viver para cá, nacionais ou não. E temos os Soajeiros, que são o nosso melhor recurso. Se eles não tivessem ficado cá, se esta vila não fosse viva, se calhar quem nos visita não ficava, seguia para outras paragens.
E apesar de nós sermos muito bairristas em muitas coisas, quando é hora de acolher alguém que vem de fora, temos essa veia de receber e de acarinhar muito forte. Há outras aldeias e outras vilas por aí fora que também terão, mas eu falo desta em concreto, que é onde eu sinto a veia do amor.
Mais sobre Soajo
Soajo, a aldeia das muitas culturas
No coração do Parque Nacional da Peneda Gerês, a vila do Soajo, no concelho de Arcos de Valdevez, tornou-se muito conhecida pelos seus fotogénicos espigueiros e pela exuberância da natureza envolvente. É uma terra que o turismo pôs no mapa, mas que as gentes locais têm sabido preservar. Mais do que uma biblioteca e um museu, é um ser vivo e vibrante, onde o passado e o futuro se encontram, com gentes de todas as idades e mundividências. Soajeiros de gema, e soajeiros de coração, tornaram-se todos comunidade.
Luís Tiago, o pastor
Trocou a vida da comunicação visual e a correria da cidade para ser pastor na serra do Soajo. Está à frente de um rebanho com 120 ovelhas, rebanho esse que é um investimento familiar e coletivo, uma espécie de rebanho comunitário. Tem um enorme percurso no mundo digital desde o início da World Wide Web e sempre se questionou sobre o impacto da digitalização na natureza. Hoje foca-se na pegada que deixamos no planeta ao usarmos diariamente tantos recursos digitais e defende que são precisos mais pastores para fazer uma gestão saudável e integrada do território de montanha e da paisagem.
Sandra Barreira, a colecionadora de tradições
Advogada de profissão, é por ser profissional independente que admite ter mais tempo para fazer uma das coisas de que mais gosta: garantir coesão e continuidade a um grupo que nasceu de forma informal, as Fiadeiras do Soajo. À conta delas, ganhou o gosto por colecionar tradições e proximidade, e ajudou a fundar uma associação que pretende ser uma espécie de guardiã da tradição oral da freguesia do Soajo.
Rúben Pereira, o criador de garranos
Herdou do avô o gosto pelos cavalos, recebeu o primeiro quando tinha apenas 5 anos de idade. É técnico de Turismo, é quem está, todos os dias, a receber os visitantes do Centro Interpretativo do Soajo onde pode dar asas à paixão que tem por divulgar as tradições da sua terra.
António Neto, o Giacometti do Soajo
Pensou em sair do Soajo a salto, mas o pai emigrado, mandou-o chamar. Foi aos 16 anos que começou a vida de emigrante, passou por Paris e pelos Estados Unidos, e cada ano que passava tinha mais a certeza de que a sua terra era especial. Começou a perceber que as tradições comunitárias da aldeia estavam a desaparecer e sentiu-se impelido a registar tudo com a sua máquina, primeiro de fotografar, depois de filmar também. Empresário da restauração, fotógrafo autodidata, todos conhecem o Tenais e muitos se deixaram fotografar por ele. Por isso é ele o responsável por um importante espólio documental da aldeia e das suas tradições.
Yassine Benderra e Joana Costa, os percursores
Conheceram-se no Porto, ainda adolescentes. Mas foi apenas como jovens adultos, e muitas viagens individuais depois, que tiveram a certeza de que tinham um projeto comum. Foram construí-lo no Soajo onde criaram o “Joyas da Terra”, vivem numa casa off-grid, praticam permacultura, dão formações e, mais recentemente, assumiram também um projeto educativo.
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