Herdou do avô o gosto pelos cavalos, recebeu o primeiro quando tinha apenas 5 anos de idade. É técnico de Turismo, é quem está, todos os dias, a receber os visitantes do Centro Interpretativo do Soajo onde pode dar asas à paixão que tem por divulgar as tradições da sua terra. Eis o seu testemunho.

“Não vale a pena dizer que somos de uma terra se não fizermos nada por ela”
Chamo-me Rúben Pereira, tenho 29 anos, sou técnico de Turismo e criador de cavalos. Tenho 50 garranos, cavalos selvagens do Soajo. Andam na maioria livres, na serra, controlo-os pelo GPS. Mantemos sempre cerca de dez animais estabulados e no campo, uns pequenos demais para andar na serra, outros já reformados da vida de serra, outros a aguardar o desenvolvimento para os introduzir nas manadas existentes e se encaixarem ou criarem nova manada. E depois temos sempre cinco animais que nunca vão para a serra por opção e porque os uso para montar.
Eu sou soajeiro de gema. A minha mãe é da Várzea, o meu pai é de Cunhas. Sempre vivi aqui, mas desde há dois anos, desde que casei, é que estou a morar na sede de concelho, em Arcos de Valdevez.
Isto de criar cavalos é uma paixão que já tinha o meu bisavô, que eu não cheguei a conhecer. Quem me passou isso a sério foi o meu avô. Tínhamos cavalos em conjunto, íamos a feiras de gado, a concursos de demonstração das raças e tudo…
O meu avô foi dos primeiros criadores de garranos aqui do concelho. Foi ele quem me deu o meu primeiro garrano, quando eu tinha apenas cinco anos. Também tinha comprado para dar ao meu irmão, dava aos meus primos. Mas, na verdade, eu era quem estava sempre ao lado dele, a criarmos cavalos em conjunto. Entretanto, isto cresceu. Há cerca de sete anos tinha 11 animais, neste momento tenho quase 50. E a minha motivação é passar o máximo tempo com eles, fazer o que o meu avô também gostava de fazer, que é sair e acompanhar os cavalos na serra. Lembro-me de o meu avô me levar com ele e levava sempre os pedaços de broa num saco para dar aos cavalos.
Rúben Pereira
O meu avô foi dos primeiros criadores de garranos aqui do concelho.
A minha motivação é, por exemplo, criar esta linhagem que já vem do meu avô e dar a conhecê-la. Temos aqui uma linhagem de cavalos, todos eles inscritos no livro genealógico e com árvore genealógica, e eu quero preservar esta raça e também dar a conhecer esta linhagem que estou a criar, mas isto demora anos a ter resultados.
Porque estes animais tanto estão na serra como amanhã podem estar numa escola a fazer um trabalho de socialização com crianças, a fazer uma demonstração para os miúdos, e estarem ali um bocadinho com eles para lhes dar a perceber o que é o cuidado e bem-estar animal.
Os cavalos garranos, apesar de serem da serra, também requerem algum maneio, requerem desparasitações, requerem cuidados ao longo do ano. Um cavalo com 15 dias de chuva na nossa serra passa de extremamente gordo para uma condição física que compromete a continuidade dele na serra, e tudo isso é um trabalho difícil de gerir e de perceber, e cada animal é um animal. Não podemos simplesmente largar os cavalos na serra à sua mercê.
Estes cavalos, por exemplo, têm GPS que é para eu poder saber mais facilmente onde estão. E apesar deles terem GPS, eu nunca deixo de cá vir.
Venho cá todas as semanas, e mais de uma vez por semana. Não consigo controlar todos os 50 cavalos que tenho numa semana, mas consigo ir por fases. Uma semana vejo estes, na próxima vejo outros. Há manadas de cavalos que vejo quase todos os dias, porque estão mais próximos da casa da minha avó; outros estão no alto da serra é sempre mais difícil, mas vou atrás deles com o auxílio do GPS, chego lá mais rápido, em vez de levar um dia inteiro à procura deles. Demoro uma hora ou duas a pé.
Na verdade, ser criador de cavalos permite-me fazer outras coisas. Eu trabalho na Divisão Sociocultural da Câmara Municipal de Arcos de Valdevez desde 2017, no Serviço da Cultura. Trabalhei como guia no Paço de Giela e neste momento sou o responsável pelo Centro Interpretativo e Etnográfico de Soajo.
Quando trabalhava no Paço de Giela, um monumento nacional onde fazíamos algumas atividades relacionadas com a história, também aí conseguíamos fazer coisas relacionadas com o cavalo-garrano. Eu levava os garranos e estava lá uma arqueóloga a falar, depois os miúdos desenhavam, passavam para o papel, faziam umas figuras, e depois no final acabavam a escovar os garranos. Não a montar, porque acho que não devemos começar por aí. Se a ideia é dar a conhecer o animal e os miúdos perderem o medo não vamos começar logo a montar. Vamos ver como se aproximam do cavalo, como lhe ganham confiança, como lhe dão biscoitos. E eles não deixam de ser cavalos de serra com instinto selvagem.
Estes cavalos são mesmo bravios, já viram o lobo e convivem com ele. Tenho aí uma égua que está mordida, tem uma cicatriz. E outro que foi o único sobrevivente de um ataque. Na manada onde ele estava os outros potros foram todos mortos pelo lobo. Por isso acaba por ser isto. Além dos nossos cavalos ajudarem muito nesta parte da manutenção da paisagem, porque eles estão sempre a comer. Isto é um animal que está sempre a comer. Sempre, sempre, sempre. Se não apoiarem a manutenção desta raça e dos criadores de cavalos, num instante estas serras vão perder este tom verde que têm e passam a ser as máquinas e os incêndios a gerir a paisagem.
Não sou o único criador do Soajo, mas os meus cavalos são os únicos que seguem uma linhagem daqui. Não há cruzamentos com outras raças, mantemos a raça. Acho importante manter a linhagem que recebi do meu avô. Para mim o Soajo também é isto. Além de toda esta imensidão que estamos a ver, e desta tranquilidade, o Soajo é também a história, a cultura. E o preservar dessa história, dessa cultura e dessa identidade através dos cavalos.
Claro que já pensei em sair do Soajo muitas vezes. Já me aborreci muitas vezes, e às vezes também por causa dos cavalos. O lobo é o maior predador do cavalo-garrano, por isso eu tento ter os meus cavalos numa cota o mais baixo possível, porque os lobos andam mais lá em cima. Mas claro que isso às vezes traz alguns dissabores com os vizinhos. Eu não quero que os meus cavalos façam asneiras, mas se vêem uma porta aberta eles vão entrar e os vizinhos chateiam-se. E a mim aborrece-me que eles façam isso. Mas não é culpa deles, obviamente é culpa minha que os habituei aqui.
Uns vizinhos agradecem porque sabem que se não fossem eles muitas zonas estariam fechadas com mato e até nos cedem os terrenos para os cavalos limparem, no entanto há quem não goste de os ver mais perto das povoações o que é compreensível e temos de aceitar e tentar gerir da melhor maneira.
Este trabalho dá-nos alguns dissabores. Eu digo nós, porque isto não é um trabalho só meu. Quem tem 50 animais como eu, acaba por ter um trabalho que influencia toda a família. Até o mais pequeno, o meu filho que tem 8 meses, acaba por ser influenciado nesse aspeto, nem que seja em algum tempo que isto lhe possa roubar com o pai. Isto é um trabalho da família toda, tanto dos meus pais, como da minha avó, como da minha mulher. Toda a gente. E acaba às vezes por nos aborrecer, porque há invernos complicados, porque algum animal nos morre… Já pensámos em desistir. Mas ainda cá estamos. Claro.
Rúben Pereira
Não vale nada nascer cá se não sentirmos e não fizermos nada pelo Soajo.
Eu sinto-me mesmo Soajeiro. Mesmo agora, que moro nos Arcos. Não interessa. Moramos lá, porque a minha mulher trabalha lá. Mas o Soajo, sempre. As vezes que nós nos chateávamos com os da vila, porque tinham a mania que eram melhores do que nós aqui da serra. Nisso somos muito bairristas. Para já o meu filho ainda não fala, mas quando falar vou-lhe dizer: tu és do Soajo! Tu és Soajeiro! Não pode ser de outra maneira! A verdade é que ser soajeiro não é apenas ter nascido cá, é sentir mesmo. Não vale nada nascer cá se não sentirmos e não fizermos nada pelo Soajo. Não nos vale a pena dizer que somos de uma terra se não fizermos nada por ela.
Digo muitas vezes às pessoas do Soajo que não vale a pena encher a boca e dizermos que somos do Soajo se passarmos por um monte de lixo e não o apanharmos, ou se andarmos a criticar o nosso vizinho por tudo e por nada. Isso não é ser do Soajo. Isso é ser só mais um, é ser alguém que está a incomodar os outros que estão a tentar fazer alguma coisa, não é? Todos temos de fazer alguma coisa. Eu tento fazer a minha parte, tento dar a conhecer aqui a nossa serra e a nossa identidade através dos cavalos. E considero que não faço nada demais, temos pessoas em Soajo a trabalhar tanto por Soajo e a levar o nome longe e a fazer coisas por Soajo…
Tento fazer o melhor que sei, dar a conhecer a nossa história e identidade, tanto no meu trabalho no Centro Interpretativo, como através dos cavalos. Tento levar o nome do Soajo sempre a algum lado, e levar o nome dos melhores criadores daqui desta raça.
Mais sobre Soajo
Soajo, a aldeia das muitas culturas
No coração do Parque Nacional da Peneda Gerês, a vila do Soajo, no concelho de Arcos de Valdevez, tornou-se muito conhecida pelos seus fotogénicos espigueiros e pela exuberância da natureza envolvente. É uma terra que o turismo pôs no mapa, mas que as gentes locais têm sabido preservar. Mais do que uma biblioteca e um museu, é um ser vivo e vibrante, onde o passado e o futuro se encontram, com gentes de todas as idades e mundividências. Soajeiros de gema, e soajeiros de coração, tornaram-se todos comunidade.
Luís Tiago, o pastor
Trocou a vida da comunicação visual e a correria da cidade para ser pastor na serra do Soajo. Está à frente de um rebanho com 120 ovelhas, rebanho esse que é um investimento familiar e coletivo, uma espécie de rebanho comunitário. Tem um enorme percurso no mundo digital desde o início da World Wide Web e sempre se questionou sobre o impacto da digitalização na natureza. Hoje foca-se na pegada que deixamos no planeta ao usarmos diariamente tantos recursos digitais e defende que são precisos mais pastores para fazer uma gestão saudável e integrada do território de montanha e da paisagem.
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Advogada de profissão, é por ser profissional independente que admite ter mais tempo para fazer uma das coisas de que mais gosta: garantir coesão e continuidade a um grupo que nasceu de forma informal, as Fiadeiras do Soajo. À conta delas, ganhou o gosto por colecionar tradições e proximidade, e ajudou a fundar uma associação que pretende ser uma espécie de guardiã da tradição oral da freguesia do Soajo.
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Pensou em sair do Soajo a salto, mas o pai emigrado, mandou-o chamar. Foi aos 16 anos que começou a vida de emigrante, passou por Paris e pelos Estados Unidos, e cada ano que passava tinha mais a certeza de que a sua terra era especial. Começou a perceber que as tradições comunitárias da aldeia estavam a desaparecer e sentiu-se impelido a registar tudo com a sua máquina, primeiro de fotografar, depois de filmar também. Empresário da restauração, fotógrafo autodidata, todos conhecem o Tenais e muitos se deixaram fotografar por ele. Por isso é ele o responsável por um importante espólio documental da aldeia e das suas tradições.
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Tem 30 anos e é um homem da montanha em todas as suas facetas. Trocou as boas notas e a escola pela pulsão de descobrir e viajar. E as viagens só o levaram a gostar ainda mais da serra onde nasceu. Tornou-se empresário, lidera viagens de exploração e atividades outdoor na serra onde, diz, sente a veia do amor.
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Yassine Benderra e Joana Costa, os percursores
Conheceram-se no Porto, ainda adolescentes. Mas foi apenas como jovens adultos, e muitas viagens individuais depois, que tiveram a certeza de que tinham um projeto comum. Foram construí-lo no Soajo onde criaram o “Joyas da Terra”, vivem numa casa off-grid, praticam permacultura, dão formações e, mais recentemente, assumiram também um projeto educativo.
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