Conheceram-se no Porto, ainda adolescentes. Mas foi apenas como jovens adultos, e muitas viagens individuais depois, que tiveram a certeza de que tinham um projeto comum. Foram construí-lo no Soajo onde criaram o Joyas da Terra, vivem numa casa off-grid, praticam permacultura, dão formações e, mais recentemente, assumiram também um projeto educativo. Eis os seus testemunhos.
“O Soajo tem um sentido de comunidade muito presente”
[Yassine Benderra]
Chamo-me Yassine Benderra, sou natural do Porto, e tenho origem marroquina. O meu pai é marroquino, a minha mãe é do Porto. Vivi no Porto até aos 19 anos, depois emigrei para Inglaterra, estive lá cinco anos e depois fui fazer uma viagem pela América do Sul durante um ano e pouco. Quando voltei a Portugal andei uns tempos a procurar sítios, a fazer voluntariado em quintas.
[Joana Costa]
Nós já nos conhecíamos desde adolescentes, porque o Yassine jogava basquete na equipa do meu irmão. Mais tarde, ele desapareceu, foi para Inglaterra e eu fiquei a estudar no Porto e fui viver em Itália. Depois, também fui para a América do Sul, e quando voltei, tinha eu uns 23 anos, tinha uma vontade muito grande de viver na natureza, de estar mais ligada com a cultura da terra, e com o sentido de comunidade. Queria recuperar o sentido de comunidade que existia antigamente, quando as pessoas viviam no meio mais rural, em pequenas comunidades.
E uma amiga minha lembrou-me que o Yassine também tinha vindo da América do Sul e também andava cheio de ideias… Calhou que um dia nos encontrássemos e logo ali vimos que havia muita sintonia na nossa visão e do que nós queríamos. Fomos desenvolvendo uma relação de amigos durante muito tempo, mas depois… evoluiu.
Inicialmente, não estávamos à procura de terra para nós mesmos. Vivemos vários anos em quintas de outras pessoas, a ter várias experiências comunitárias. Vivemos mesmo numa comunidade intencional, com cerca de 10 pessoas, em que nos juntámos e partilhávamos tudo. Isso funcionou mais ou menos durante um ano. Depois fomos para outras comunidades.
Joana Costa
Queria recuperar o sentido de comunidade que existia antigamente, quando as pessoas viviam no meio mais rural, em pequenas comunidades
Tentámos experimentar essa vida em comunidade, a vida na terra, até depois decidirmos que queríamos realmente ter o nosso espaço e a nossa independência. Ou seja, o nosso sentido de comunidade não passava por estarmos todos a viver juntos e a dividir terra e todas as decisões em conjunto, etc., mas mais por termos o nosso espaço e termos uma boa vizinhança e uma comunidade também interessante à nossa volta.
[Yassine Benderra]
Creio que essa parte também mudou quando nasceu o Isaac. Acho que até lá estávamos todos a viver juntos, a partilhar as coisas todas. Eram experiências muito interessantes. Mas depois, quando começas a ter aquela coisa da família, queres um bocadinho mais de espaço. Aí é que começámos a dizer, ok, se calhar era fixe ter um cantinho para nós. Mas queríamos na mesma ter uma parte comunitária em que nos pudessemos apoiar. E então viemos a saber do Soajo. Dois amigos nossos do Porto já nos tinham falado, diziam que adoravam o Soajo, que aqui havia muitas aldeias abandonadas e que era um bom sítio para montar uma comunidade. Nós viemos visitar o Soajo e achámos lindo o sítio. Mas não viemos logo para cá.
Andámos em vários sítios à procura, no Centro de Portugal, na Costa Vicentina… Mas sempre que nós queríamos isolar-nos, fugir ou pensar em alguma coisa, vínhamos parar ao Soajo. Mal nos decidimos a vir para cá, no mesmo ano vieram mais duas famílias e um outro amigo.. E apaixonámo-nos pelo Soajo. Há várias coisas aqui que para nós são muito interessantes. Haver água com abundância, água boa e pura. Estar dentro do Parque Nacional, o que tem as suas restrições, mas também tem as suas mais-valias por essas mesmas restrições. E, por fim, ser aqui no Norte, no Minho, mais verde, mais próximo também da nossa família no Porto.
[Joana Costa]
Acho que o Soajo tem um sentido de comunidade ainda muito presente nas pessoas aqui da terra. As pessoas mais velhas viveram isso quando eram crianças também, então elas conhecem o que é essa vida mais partilhada, mais em comunidade, em que estamos mais disponíveis também para ajudar os outros e receber ajuda em troca. E, portanto, há um sentido de troca e de união. Fomos bem recebidos.
[Yassine Benderra]
Quando viemos com essas famílias, o projeto não era ainda criar o Joyas da Terra. Tínhamos um projeto comum que era o projeto agroecológico do Soajo. Mas fomos super bem recebidos. Acho que o facto de termos crianças, foi muito bom. O facto de, nos primeiros anos, as crianças terem ido para a escola aqui do Soajo também. Nós participámos bastante, conhecemos bastante a comunidade local, o pessoal ajudava-nos. Por isso fomos muito bem recebidos.
[Joana Costa]
Quando andávamos à procura de uma terra, tínhamos uma lista de prioridades. Queríamos primeiro que tivesse água, que tivesse minimamente acessos, mas que também não fosse totalmente à beira da estrada, porque gostamos de estar um pouco mais resguardados.
Também havia a questão financeira e o montante que tínhamos disponível na altura para comprar um terreno. Este foi aquele que encaixava. Não tinha a área que queríamos – nós queríamos algo um pouco maior. Mas até foi bom serem terrenos mais pequeninos, porque deu para focar e não dispersar muito, nem ter demasiado trabalho com a terra.
O terreno não tinha nada. Tinha a mina, o tanque… e terra fértil! Estas terras são bastante férteis, também por serem em socalcos, pela maneira como foram cultivadas ao longo de muitos anos. O que fizemos primeiro foi criar as nossas infraestruturas base para vivermos como família, tínhamos o Isaac pequenino e construímos aqui a nossa casa. Este yurt onde estamos agora era a nossa casa, a cozinha, a casa de banho seca… e tínhamos a nossa horta. Desde o início tivemos a horta, para garantir parte da nossa alimentação.
[Yassine Benderra]
Ao nível de energia, agora temos um painel solar. No início vivemos vários anos sem energia. O que é engraçado, porque nos lembramos bem, e o Isaac também se lembra bem do primeiro dia em que acendemos as luzes em casa. E ele dizia wow!
A nossa ideia era viver em contacto com a natureza com alguma profundidade, e podermos usufruir disso. Eu não gosto da palavra auto-sustentável, porque isso é um bocado ilusório. Estamos todos ligados e precisamos todos uns dos outros, materiais de um lado ou de outro, mas tentamos ser o mínimo dependentes de recursos externos. E aí conseguimos, nesse aspeto. Conseguirmos construir as nossas próprias habitações, de termos água potável, de tratarmos a nossa própria água, de termos energia renovável, de não estarmos ligados à rede elétrica, de conseguirmos produzir parte da nossa comida, e então o Soajo foi o sítio ideal.
Temos dois filhos, o Isaac e a Miriam, e o mais importante para nós é eles terem ferramentas tanto práticas como sociais de conseguirem estar em qualquer ambiente. Conseguirem estar num ambiente como este, como irem falar com o presidente da Câmara.
Yassine Benderra
A nossa ideia era viver em contacto com a natureza com alguma profundidade, e podermos usufruir disso.
[Joana Costa]
E terem ferramentas interiores, também. Que eles, como seres individuais, tenham as capacidades para poderem enfrentar os desafios que existem na vida. E estamos a tentar dar-lhes essas ferramentas. Conseguirmos lidar com as nossas emoções. O nosso objetivo sempre foi conseguirmos ter uma certa liberdade, sermos responsáveis por aquilo que escolhemos viver e que escolhemos fazer para ganhar dinheiro, não sermos tão dependentes do sistema.
Estamos muito agradecidos com o sistema, e não pomos isso em causa. Mas ao tentarmos ser mais independentes vimos, por exemplo, na altura do Covid, que realmente estávamos no caminho que nós queríamos. Porque não temos contas para pagar. Parou tudo e aqui continuou tudo na mesma. Fizemos imensas coisas e sentimo-nos bastante livres aqui porque temos o espaço todo à nossa volta. E foi muito positivo. Nesse aspeto é que é ok, é isto o caminho que nós queremos seguir e estamos bem com isso.
E depois tentamos também trazer este tipo de estilo de vida e de vivência comunitária para a educação. Também passamos isso um bocado para os nossos filhos, para que eles tenham a possibilidade de viver um estilo de vida simples, que percebam de onde vêm os seus recursos, como é que tratam deles, o que é que fazem com eles, onde é que vão buscar a comida. Enfim, um ensino mais orientado para fazerem projetos e aprenderem ferramentas na vida, não só a parte intelectual.
Isso nos primeiros anos foi um bocado difícil. Na Escolinha do Soajo correu razoavelmente bem, porque era infantário e não havia muita pressão. Mas a dificuldade foi que não havia muita gente aqui com a mesma ideia que nós. E nos primeiros anos vinham algumas famílias, mas depois iam embora, e depois vinham, e só a partir do Covid é que a coisa andou. Conseguimos arranjar um grupo de famílias focadas e dedicadas a fazer esse tipo de ensino. Nós chamamo-nos uma comunidade de aprendizagem, não é uma escola. É uma espécie de home schooling mas onde estão outras famílias. Estamos nós com os nossos filhos, mas temos várias famílias que estão envolvidas e organizamo-nos para trazer diferentes abordagens e diferentes atividades para eles.
[Yassine Benderra]
Fomos uma espécie de pioneiros, sim. Não é que isso seja importante, mas também foi assim com a permacultura, fomos os primeiros em Portugal a dar cursos em português. Antes de virmos para cá, para o Soajo, fazíamos estas formações fora – porque não tínhamos quinta, não tínhamos espaço, então fazíamos em vários sítios, no Porto, em quintas de outras pessoas. Depois de virmos para cá e de começarmos a montar os sistemas, passou a ser aqui. E é interessante quando as pessoas vêm cá e percebem que conseguem passar 12 dias a viver dessa forma. Conseguem perceber como é que as coisas funcionam e fazem parte desse processo de tratar dos resíduos, de ir à horta, dessas coisas.
O Joyas da Terra nasceu assim. É o nosso projeto familiar. Começou com os yurts, depois passou ao curso de permacultura, e quando viemos para cá, passou a ser este espaço, em que fazemos, além de cursos, retiros de meditação e yoga. E somos um núcleo em que muita gente vem cá para isso. No verão nunca estamos sozinhos.
[Joana Costa]
O melhor de vivermos num sítio como o Soajo é poder ter esta natureza à volta, o clima é bom, as pessoas são boas. Muitas pessoas são ligadas ainda a essa forma de vida mais tradicional, ligada à terra, ao sentido de comunidade. Eu gosto disso. Aliás, os melhores dias para mim é quando acontecem o que nós chamamos de ajudadas. São dias de trabalho coletivo, em que chamamos o pessoal e estamos aí uns 15 a trabalhar juntos e a comer juntos.
No nosso grupo, como somos todos mais ou menos freelancers, temos todos um bocado da capacidade de, ok, vamos trabalhar juntos e ajudamos. São os melhores dias, para mim.
Mais sobre Soajo
Soajo, a aldeia das muitas culturas
No coração do Parque Nacional da Peneda Gerês, a vila do Soajo, no concelho de Arcos de Valdevez, tornou-se muito conhecida pelos seus fotogénicos espigueiros e pela exuberância da natureza envolvente. É uma terra que o turismo pôs no mapa, mas que as gentes locais têm sabido preservar. Mais do que uma biblioteca e um museu, é um ser vivo e vibrante, onde o passado e o futuro se encontram, com gentes de todas as idades e mundividências. Soajeiros de gema, e soajeiros de coração, tornaram-se todos comunidade.
Luís Tiago, o pastor
Trocou a vida da comunicação visual e a correria da cidade para ser pastor na serra do Soajo. Está à frente de um rebanho com 120 ovelhas, rebanho esse que é um investimento familiar e coletivo, uma espécie de rebanho comunitário. Tem um enorme percurso no mundo digital desde o início da World Wide Web e sempre se questionou sobre o impacto da digitalização na natureza. Hoje foca-se na pegada que deixamos no planeta ao usarmos diariamente tantos recursos digitais e defende que são precisos mais pastores para fazer uma gestão saudável e integrada do território de montanha e da paisagem.
Sandra Barreira, a colecionadora de tradições
Advogada de profissão, é por ser profissional independente que admite ter mais tempo para fazer uma das coisas de que mais gosta: garantir coesão e continuidade a um grupo que nasceu de forma informal, as Fiadeiras do Soajo. À conta delas, ganhou o gosto por colecionar tradições e proximidade, e ajudou a fundar uma associação que pretende ser uma espécie de guardiã da tradição oral da freguesia do Soajo.
Rúben Pereira, o criador de garranos
Herdou do avô o gosto pelos cavalos, recebeu o primeiro quando tinha apenas 5 anos de idade. É técnico de Turismo, é quem está, todos os dias, a receber os visitantes do Centro Interpretativo do Soajo onde pode dar asas à paixão que tem por divulgar as tradições da sua terra.
António Neto, o Giacometti do Soajo
Pensou em sair do Soajo a salto, mas o pai emigrado, mandou-o chamar. Foi aos 16 anos que começou a vida de emigrante, passou por Paris e pelos Estados Unidos, e cada ano que passava tinha mais a certeza de que a sua terra era especial. Começou a perceber que as tradições comunitárias da aldeia estavam a desaparecer e sentiu-se impelido a registar tudo com a sua máquina, primeiro de fotografar, depois de filmar também. Empresário da restauração, fotógrafo autodidata, todos conhecem o Tenais e muitos se deixaram fotografar por ele. Por isso é ele o responsável por um importante espólio documental da aldeia e das suas tradições.
Manuel Lage, o soajeiro que dá às raízes movimento
Tem 30 anos e é um homem da montanha em todas as suas facetas. Trocou as boas notas e a escola pela pulsão de descobrir e viajar. E as viagens só o levaram a gostar ainda mais da serra onde nasceu. Tornou-se empresário, lidera viagens de exploração e atividades outdoor na serra onde, diz, sente a veia do amor.
Ler Artigo Manuel Lage, o soajeiro que dá às raízes movimento
Com o apoio de: