Trocou a vida da comunicação visual e a correria da cidade para ser pastor na serra do Soajo. Está à frente de um rebanho com 120 ovelhas, rebanho esse que é um investimento familiar e coletivo, uma espécie de rebanho comunitário. Tem um enorme percurso no mundo digital desde o início da World Wide Web e sempre se questionou sobre o impacto da digitalização na natureza. Hoje foca-se na pegada que deixamos no planeta ao usarmos diariamente tantos recursos digitais e defende que são precisos mais pastores para fazer uma gestão saudável e integrada do território de montanha e da paisagem. Eis o seu testemunho.
“Quero contribuir de forma positiva para o lugar onde vivo”
Chamo-me Luís Tiago, tenho 48 anos e sou pastor. Nasci e cresci em Matosinhos, vivi no Porto a maioria da vida adulta, passei por Lisboa, Escócia, França e Angola. Tive a sorte de encontrar este terreno aqui no Soajo em 2016 depois de procurar muito. Mas foi só a seguir à pandemia, que consegui mudar-me para aqui definitivamente.
Tornei-me pastor depois de ter feito muita coisa e experimentado muitos ofícios. Trabalhei muito tempo em comunicação visual, comecei aos 16 anos como desenhador de estampas têxteis, e quase duas décadas depois era Diretor Criativo no setor audiovisual. Aí a paternidade foi o mote para mandar tudo dar uma volta. Literalmente. E ser pai a tempo inteiro e participar ativamente na construção de um mundo melhor.
Nesta altura estávamos a atravessar a crise económica e isso levou-me a procurar alternativas de modelos económicos, juntamente com um grupo alargado de pessoas, criámos uma Moeda Social no Porto, que me levou a Co-Organizar e fundar o Fórum de Finanças Éticas e Solidárias, e a envolver-me em projetos à escala europeia de alternativas relacionadas com a economia social e solidária. Era preciso encontrar outras formas de viver realmente a economia, porque é aquilo que nos afeta a todos. Desde aí que praticamente me dediquei ao terceiro setor. Estive envolvido em vários projetos, de associações e cooperativas. E ainda continuo.
Isto aqui, de ter um rebanho e ser pastor, já estava alinhado há muito tempo, mas faltavam as condições para chegar até aqui. Eu gostava desta zona. Quando era catraio vinha todos os verões para o Vale com a minha avó, para uma zona aqui nos Arcos de Valdevez. O meu bisavô era florista e de Barcelos, tinha uma banca no mercado de Matosinhos. De uma maneira ou de outra a vida no campo sempre fez parte de quem sou.
Luís Tiago
Eu sinto que o conhecimento científico que existe não está traduzido para que o comum dos mortais, ou até mesmo para que os outros pastores, o consigam assimilar e tenham consciência do papel que têm.
Enquanto adolescente sempre fui um péssimo aluno na forma como o ensino está desenhado. Nunca gostei muito da escola, mas sempre gostei de aprender. Acabei por cumprir o serviço militar e fui ter com uns amigos que já estavam a estudar na Grã Bretanha, porque gostava muito de fotografia. E entrei numa faculdade em Inglaterra, para estudar fotografia documental, mas não tinha capacidade financeira para lá ficar, mesmo a trabalhar.
Então decidi regressar a Portugal. Como já fazia serviços de design gráfico e comunicação, foi nessa área que fiquei a trabalhar até aos 30 e muitos anos. O contexto para mandar tudo ao ar foi ter uma criança muito pequenina (tenho uma filha, que agora é adolescente) e um ritmo de vida completamente acelerado. Passava o tempo inteiro em Lisboa, estava separado e não queria que a minha filha ficasse tão longe do pai. Com a crise económica, tudo fez um grande burburinho, e eu acabei a virar a agulheta para o outro lado.
A questão de vir para o campo sempre esteve em cima da mesa. Mas só aconteceu depois de encontrar soluções. Andei uma série de anos à procura de um espaço. Um espaço que tivesse determinadas condições: que fosse próximo do meu núcleo, o Porto, mas não fosse em cima do núcleo, e que eu conhecesse a história do sítio, da terra, de quem era, de quem é, de quem não era.
Acabei por ficar aqui nesta vila e aqui ser casa, ninho. O rebanho veio mais tarde e também não foi fácil. Comecei por conhecer os pastores daqui, passava montes de tempo com o pessoal que anda com os animais, cavalos, ovelhas, vacas… Andava à procura de uma escola de pastores, estive para ir para a Catalunha. Acho muito importante este trabalho que os espaços de aprendizagem deste ofício proporcionam, conhecer outras experiências, outras visões, formas de estar e ser, e fazer rede, para que a pastorícia em modo extensivo tenha escala e mais e mais pastores. Até que surgiu um projeto de Vila Pouca de Aguiar.
Candidatei-me a essa escola de pastores e foi muito porreiro. Era um grupo coeso, uns queriam ser pastores, outros queriam ser produtores, outros já eram. Andámos um ano a conhecer explorações, a conhecer mais pessoas…Tínhamos aulas para conhecimento teórico, mas era importante ter também o conhecimento prático. É tudo muito bonito e muito romântico, mas esta atividade tem muito… É muito ginásio. Pede muito do corpo e da mente também.
A partir daí, comecei a colaborar num projeto internacional ligado a criar espaços comuns no mundo digital de projetos regenerativos, com impacto positivo na sociedade e no ambiente, chamemos-lhe assim. Consegui não depender daquilo financeiramente, e juntar alguns troquinhos com a família para comprar o primeiro rebanho e enterrar-me por completo nisto. Que não há outro nome.
Mas só no final de novembro, início de dezembro é que consegui arranjar um rebanho. Só que eu apanhei um inverno mesmo muito rigoroso, foi mesmo a começar a montar as cortes, foi mesmo difícil, foi mesmo duro. Mas pronto, depois desse arranque difícil, tudo melhorou.
Entretanto, um pastor daqui do Soajo também se quis reformar, mas eu já não tinha capacidade financeira para estar a investir num rebanho por inteiro. E lembrei-me de começar a ver se alguém queria ajudar.
Então fiz uma espécie de crowdfunding. Houve um conjunto de pessoas inicial, cada qual juntou um X, outro Y, outro Z, e conseguimos fazer com que esse rebanho não fosse embora daqui e continuasse no Soajo.
Este rebanho de que estou responsável é um híbrido de um rebanho familiar e coletivo, de pessoas que eu não conhecia de lado nenhum a quererem ajudar. Alguns já conheci, já estivemos a conversar. São pessoas com quem, de uma maneira ou de outra, já tinha alguma relação ou que conheciam alguém que me conhecia, havia aqui alguma confiança pelo meio e alguns também seguiam a página no Instagram (@opastor) onde eu vou pondo alguns vídeos…
O pastor é uma raça em vias de extinção, uma espécie tão rara como a ovelha. Ser pastor é diferente de ser criador. O criador acaba por ter uma atividade parecida com isto: abre as ovelhas, deixa-se ficar num terreno, chega ao final do dia, dá-lhes um bocado de ração, milho e feno, no dia a seguir vai para o mesmo terreno ou um para um terreno ao lado. É bom, continua-se a manter a raça, é mais simples o maneio. Cada vez há mais criadores. No entanto, no meu entender, é preciso haver mais pastores.
Falo em pastores no sentido literal, dos que acordam de madrugada, pegam nos animais, dão uma volta pela serra e fazem caminhos 5, 10, 15, 20 quilómetros numa determinada área. Se conseguir concentrar-me nesta área, já é bom. Só espero que se calhar noutra área apareça outra, e noutra área apareça outra, e por aí fora.
Além destas caminhadas que vou dando com esta equipa de Churras do Minho, cuido de umas Cachenas e de uns Garranos, e espero em breve poder acolher umas Bravias. E então aí a equipa fica completa para poder dar continuidade a um projeto em que estou envolvido, de uma associação ambiental e social – o Green Data Earth. Tenho andado a tentar perceber qual é o impacto deles em território de montanha e com base no pastoreio extensivo, na regulação do solo e na gestão da paisagem.
Depois quero aplicar modelos de monitorização e análise de dados, passivos e ativos, e cruzar todos esses dados.
Um dos objetivos é demonstrar que este conjunto de animais, num território de montanha, é capaz de recuperar, de regenerar e de gerar um conjunto de valor acrescentado no que respeita ao ecossistema em que existe, na economia, no desenvolvimento local e social.
O outro objetivo é tentar começar a consciencializar as pessoas para o impacto que tem a nossa vida digital. Não só a nossa atividade digital, mas os nossos modelos e práticas de consumo. Estou envolvido num grupo do W3C, um fórum com vários grupos de voluntários onde se estudam muitas coisas. E há um grupo que trabalha sobre esta questão da sustentabilidade digital e web. E já existe um trabalho extraordinário de pessoas que desenvolveram muito conteúdo educativo sobre esta matéria – o impacto negativo que o mundo digital tem no planeta, que já é maior do que o da indústria aeronáutica (no seu todo). E agora estes desenvolvimentos da Inteligência Artificial ainda vieram piorar o cenário.
Utilizar uma rede social e partilhar um vídeo ou uma imagem ou um texto, tem impactos negativos distintos; um vídeo equivale a um contentor de lixo de uma semana, uma imagem ao balde de lixo que temos em casa, e um texto a um saco de supermercado cheio de lixo, cada um deles tem um impacto negativo, que precisa de ser tratado para minimizar o seu impacto.
No mundo digital é a mesma coisa, até porque não reciclamos o vídeo que filmámos no ano passado, ele ocupa espaço digital nos servidores … onde os nossos websites também, o tempo cada vez maior que estamos online, em apps, tudo isso tem implicações graves no ambiente.
Por exemplo, quando dizemos que temos os nossos dados na nuvem, a nuvem não existe, o que existe são cabos que atravessam os oceanos para levar os dados de um continente para outro, e se pouco conhecemos o impacto das nossas ações nos oceanos, muito menos ainda se consegue perceber qual o impacto desta infraestrutura na biodiversidade oceânica.
Eu sinto que o conhecimento científico que existe não está traduzido para que o comum dos mortais, ou até mesmo para que os outros pastores, o consigam assimilar e tenham consciência do papel que têm. Até porque há aqui um conjunto de serviços que são prestados à sociedade que não estão a ser remunerados, e que deviam ser compensados.
Luís Tiago
É tudo muito bonito e muito romântico, mas esta atividade (…) pede muito do corpo e da mente também.
Também estou ligado à Associação de Desenvolvimento Local de Soajo, onde entre outras coisas, estou a coordenar o desenvolvimento da Monografia de Soajo, um projeto de investigação-ação, onde vamos desenvolver um conjunto de atividades na Vila ao longo dos anos de modo a estabelecer um espaço participativo de construção e reconstrução do legado histórico de Soajo e da sua serra.
E assim são os meus dias. Mas andar aqui com as ovelhas por estes caminhos é realmente uma paixão.
Escolhi as ovelhas também por uma questão de sustentabilidade. É o animal que eu prefiro, porque é aquele que tem mais valências. Na realidade, além dos serviços que prestam aos ecossistemas, a vaca, a cabra, o cavalo, permitem produzir a carne aqui da região, mas também têm a pele, para ser processada em termos artesanais ou com menos impacto negativo no ambiente. É complicado.
Enquanto o que está à volta deste animal, a ovelha, além dos outros, a lã todos os anos, ou duas vezes por ano. Se calhar, 90% da lã que é tosquiada no Norte vai para o lixo. E nem sequer é queimada ou enterrada, muito menos reaproveitada. Além de ser outra das minhas paixões, é uma matéria-prima com imenso potencial, da forma como vejo esta atividade.
Já tive alguns encontros com algumas instituições da região, no sentido de desenvolver um programa de valorização das lãs das raças autóctones da região do Minho. Estou a falar de capacitação, porque a lã precisa, por exemplo, de tosquiadores. Há um conjunto de ofícios que estão a desaparecer por completo. Não é só o dos pastores, tosquiadores, fiadeiras, tecedeiras… Há um conjunto de práticas tradicionais à volta da lã que pode ser uma mais-valia para a região, se forem desenhadas com uma visão a longo prazo, se forem pensadas não como um espaço museu, mas sim como atividades económicas sustentáveis.
Eu acho que temos investimento público para fazer a mesma coisa, duas ou três vezes por ano, unicamente para, por exemplo, limpar este tipo de mato, porque ele não é recuperado da forma como deveria ser, é um tiro nos pés. Mais importante era haver uma articulação entre o papel do pastor, os meios mecanizados e o fogo prescrito ou tradicional – que são sempre necessários – para haver uma combinação perfeita e a longo prazo e conseguirmos manter um território como este.
Recordo que quando foi a crise económica, e mesmo agora com o Covid, tudo o que eram pequenos serviços tiveram grandes problemas. Não só em termos económicos. O único que funcionou minimamente e realmente foi o sistema produtivo.
E tendo em conta até esse fator económico, acho que os apoios e investimentos públicos e privados deviam ser desenhados para baixar o número de serviços e aumentar o número de iniciativas de produção. Não estou a falar apenas de produzir carne para exportação. Estou a falar de animais, raças autóctones para fazer a gestão do próprio território e contribuir para a criação de emprego.
Vou tentar contribuir da forma como sei e posso. O meu objetivo é tentar estabelecer uma relação com estas múltiplas dimensões, na expectativa de trazer um nível de transformação do comportamento a longo prazo, naturalmente.
As contas caem sempre todos os meses, nunca fogem. Viver desta atividade não é fácil, tudo depende da nossa própria escala e responsabilidades financeiras. Se isto é o que eu pensava que era? É melhor ainda. Para mim é bem melhor. Eu gosto do campo, gosto de andar, gosto de passear, adoro os animais. Não me importo se me molhar todo… Mas eu sempre tive um bocado de sorte. Mesmo sendo difícil ou não, ao longo da vida, sempre fiz aquilo de que gostava. Estou no meu caminho e tenho o privilégio de poder ter quem me apoie nestas loucuras da vida, quer amigos ou conhecidos, quer ao nível familiar.
O facto de andar aqui com as ovelhas também me permitiu ir desenvolvendo outro tipo de competências, como perceber o tempo, ou perceber o animal, desenvolvimento pessoal, é realmente extraordinário contar com os animais nesse sentido. Vais-te apercebendo de um mundo que se calhar tu tens dentro de ti, e que de outra maneira seria difícil, e tens uma perceção do tempo também completamente diferente.
Não faço grandes planos para o futuro. Só quero seguir o caminho, e durante o caminho é que as coisas se vão moldando. Continuar com esta atividade do pastoreio e tentar, cada vez mais, contribuir de forma positiva para o lugar onde eu vivo, não só aqui, mas no mundo inteiro. De resto, o melhor do meu dia é andar com as ovelhas e aprender com os animais.
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