Quando andava na Universidade de Aveiro, Luís Barros era conhecido como “o Favaios”. Hoje, é o mentor da primeira enoteca interativa da Península Ibérica e o responsável pela vaga de turistas que todos os anos ruma à aldeia vinhateira de Favaios. A Quinta da Avessada recebeu 80 mil visitantes em 2019; o próximo projeto é criar pequenos hotéis na aldeia. Eis o seu testemunho.
“Eu nunca hei-de ser rico, todo o dinheiro que ganho gasto em Favaios”
Chamo-me Luís Barros, nasci há 41 anos aqui em Favaios, tirei o curso de Gestão e Planeamento em Turismo na Universidade de Aveiro. Fui dirigente da Associação de Estudantes de Turismo, sempre fui muito ativo e interventivo, e os meus amigos sempre me trataram por “Favaios”. E eu tenho muito orgulho nisso, na minha terra. E tenho muito orgulho no meu nome, o nome do meu pai e do meu avô. Somos Barros, uma das famílias mais antigas aqui de Favaios, e uma das primeiras a fazer o famoso moscatel do Douro.
Quando era criança, o meu pai andava a trabalhar na quinta, a minha mãe foi colocada como professora no Algarve. Por isso, eu fui criado por duas tias-avós, ambas amorosas e as duas muito diferentes. Vivia aqui em Favaios com a tia-avó do Moscatel – que me dizia “vai conhecer o mundo, mas não saias de Favaios”; ela é que me mandava viajar em excursões e me dizia para não comprar fotografias, mas para comprar quadros, para comprar sempre originais e dar valor à arte. A tia-avó do Vinho do Porto, com quem eu estava nas férias dizia “não gastes dinheiro!”; ela é que me ensinou a comer de tudo, a nunca me ir embora sem me despedir dos contínuos, e tinha a casa cheia de santinhos e crucifixos. Foram as duas muito importantes na minha formação.
Aqui em Favaios ainda me conhecem como o menino – porque nunca casei. Já estou velho, e careca, mas para as gentes da terra, para as padeiras de Favaios, por exemplo, com quem ando a conversar porque quero fazer pequenos hotéis com o nome delas, eu sou o menino. Vou ser sempre o menino. Antes ainda me perguntavam se eu não me casava, mas agora já ninguém pergunta. Casei com a Quinta da Avessada, pronto.
De facto, tenho dedicado a minha vida a esta quinta, a este projeto. Foi quando estava a tirar o curso em Aveiro que pensei neste projeto de fazer uma Enoteca de Vinhos em Favaios. Queria construir a primeira Enoteca interativa da Península Ibérica.
Chamaram-me maluco, e eu passei por muito para a construir! Mas a Enoteca aqui está, e a ganhar importantes prémios. Não foi fácil. Ia levando o pai à falência, ia zangando a família toda. Mas conseguimos. Com perseverança, mas também com alguma sorte. É sempre preciso ter sorte.
A minha ideia era dar a conhecer aos visitantes que viessem ao Douro o máximo possível. Nós aqui na quinta só fazemos Favaios, mas temos uma biblioteca de vinhos e vários produtores connosco. A preocupação era conseguir oferecer o ponto alto desta região – que é o mês de setembro e as vindimas – durante o ano todo. Nenhum projeto turístico pode viver só de um mês, por isso desenhei os robôs para simular a lagarada, para mostrar como são as vindimas durante o ano todo.
Andei a correr tudo quanto eram lojas de pronto-a-vestir no Porto, a arranjar peças de manequins. Um boneco daqueles novo custava 1.500 euros, na altura. Onde é que eu tinha dinheiro? O pai não me financiava, dizia que eu era maluco da cabeça. “Turistas para aqui? Só podes estar maluco. Vai mas é estudar! Tens de ir para um hotel, ir trabalhar para fora… “.
Mas eu não desistia da minha ideia. E pedi-lhe para, em vez de me levar nas férias – quando foi a família toda para o Brasil, por exemplo! -, me desse o dinheiro que ia gastar comigo. Ele aceitou – eles foram, eu fiquei, e gastei aqui todos os tostões. Passei aqui o agosto todo, com um lenço na cabeça, a trabalhar com um trolha. Ele a dizer como era e eu a fazer massa. Fui eu que fiz o lago, esburaquei e enchi. Está todo torto! Eu cá andava sempre a lutar até que chegou a um ponto em que o pai disse, “o rapaz vai-se matar”. E passou a financiar-me.
Comecei a construir este pavilhão, a reconstruir os candeeiros antigos, a fazer as pipas e os tonéis, a pôr o chão de granito amarelo… Às tantas, o pai disse: “estás a ir longe de mais”. E eu levei o pai à falência. Até tenho pesadelos com esses tempos.
Estávamos em 2007, ainda não havia turismo no Douro. O Mário Ferreira [da Douro Azul] já tinha barcos, mas ainda não havia turistas. Ligaram-me da Adega de Favaios a dizer que viriam cá jornalistas da especialidade… eu lembro-me que nem luz tínhamos, andávamos com um gerador atrás de nós. Mas lá mostrámos a enoteca, a quinta, e recebemos a primeira crítica positiva, a dizer que este projeto poderia ser realmente muito inovador. Mas a verdade é que não entrava dinheiro. Trabalhar em família pode ser muito difícil. “O que foste fazer?”, perguntava o pai.
Eu dizia que tinha de haver solução. Fui para Londres, para o World Travel Market, que era o maior mercado de turismo na Europa. Pedi libras emprestadas e lá cheguei à feira. E é aqui que eu digo que é preciso ter sorte. Quando entro no stand de Portugal, aparece-me uma amiga, que foi caloira em Aveiro, e que estava a trabalhar no ICEP. “Ó Favaios, que estás aqui a fazer?”. “Venho tentar vender a minha quinta…”. Ela viu-me de tal maneira atrapalhado que foi buscar uma mesa e cadeira altas, pôs-me à porta do stand de Portugal com um pastel de nata, um copo de Vinho do Porto e a minha brochura.
Ao lado estava a fina flor portuguesa dos operadores turísticos, e eu ali no meio. Quando passavam para falar com o Mário Ferreira, passavam pelo Douro Valley, Quinta da Avessada Winery – Enoteca. Paravam todos ali, até que passou uma pessoa que nunca me hei-de esquecer na vida: Maria Chaves, uma americana que me ouviu falar da quinta e me prometeu que iria ter notícias dela.
Certo é que um mês antes do Natal aparece-me aqui na quinta o Mário Ferreira a dizer que queria ver as instalações, que ele tinha um cliente que me queria conhecer. Ele insistiu que tinha de aumentar a capacidade da quinta – só tinha para 50 pessoas e, dizia ele, tinha de conseguir receber 120. Disse que traria essa cliente em março, e que eu tinha até lá para aumentar a capacidade. Eu expliquei-lhe que era muito dinheiro. Ele respondeu: “faz isso que eu trago os turistas”.
Lá convenci o meu pai a ir ao Banco. Já estava a pagar 12% de juros e ainda foi preciso pedir reforços. “Ai meu Deus! Agora é que vamos vender tudo, até as pipas”, dizia o meu pai. Mas eu fui ao Banco, e fiz o salão. E, em março, o Mário veio ver a quinta; e em setembro de 2008 a Quinta da Avessada recebeu o primeiro autocarro de turistas. E vinha a tal Maria Chaves, a americana que afinal era açoriana, e que ainda hoje é a minha principal cliente e promotora. Sei que ela foi a primeira. Mas nesse ano recebemos três mil visitantes. Depois foi sempre a crescer. Chegámos a receber 80 mil visitantes em 2019. Mas começou com todas aquelas dificuldades. Por isso digo que é preciso ter sorte. E persistência.
A minha prioridade agora é diminuir a dependência dos barcos – e temos conseguido; o turismo fluvial significava 90% dos visitantes da Avessada, e agora pesam 70%. Agora estou a tentar aumentar a estadia, porque na verdade os turistas vêm cá, mas vão-se logo embora. E é importante que passem mais tempo na aldeia.
Por isso, ando há dois anos a trabalhar num projeto de construir cinco pequenas unidades hoteleiras mesmo no centro da aldeia. Não queremos fazer um hotel grande, nem fazer nada de novo. Queremos reconstruir aquilo que eu mais detesto, que é ver as casas velhas a cair de podre na aldeia. Vamos pegar nelas e voltar a dar-lhes vida. No primeiro hotel, os quartos vão ter o nome das padeiras, como a Manuela Barriguda – é uma espécie de homenagem. Se o turista tiver no quarto a história daquela padaria, e daquela padeira, e souber que ela está viva e que uns metrinhos à frente pode ir ter com ela, tenho a certeza de que a vai querer conhecer. Queremos que, numa aldeia tão pequenina, o turista possa ser inserido na comunidade.
Favaios é uma aldeia única. É, de facto, uma aldeia viva. Tem um produto único, que é o vinho moscatel, e tem toda a aldeia a trabalhar para o mesmo. E funciona!
No Vinho do Porto há muitas vezes uma guerra desgraçada, se o meu é melhor que o teu, se o Porto é melhor deste lado do rio ou do outro. Não há nada disso em Favaios, rema tudo para o mesmo lado, o que está no coração destas mil e tal pessoas é o Favaíto. Vivemos todos sob a bandeira da Adega de Favaios, é uma harmonia, um sossego. E isso já vem de trás.
O moscatel começou a ser feito há 160 anos e, além da família Barros, havia mais cinco. Foi a união dessas seis famílias que criou a Adega Cooperativa de Favaios. É uma tradição aqui, quando é para o bem da aldeia, os sócios lá estão com a mão no ar. Na minha opinião, Favaios é um bom exemplo de cooperativismo, e que soube profissionalizar-se. Isso fez, e faz, a diferença.
Aqui na Avessada o meu maior desafio é manter a equipa. Neste momento tenho 47 elementos. É uma equipa muito jovem, têm uma média de idades de 27 anos. Aqui não há desemprego, temos é falta de mão-de-obra. Estou preocupado em manter a equipa que o COVID derreteu. Mas vou continuar a apostar neles, a dar formação, a levá-los às outras regiões vínicas. Quero que a minha equipa seja culta, que conheça as outras regiões, e que goste de aqui estar.
Às vezes questionam se não estou a investir na equipa e eles depois vão-se embora. E alguns vão. Mas se forem daqui contentes, sou o primeiro a dizer “ide”. Vão conhecer novos mundos, ganhar mais dinheiro. Podem ir para qualquer lado, mas no Natal estão cá todos. Isso é que me interessa.
De resto, a quinta continua a dar contas ao pai e ao irmão. A Luís Barros Unipessoal passou a ser Barros & Barros, é da família toda. As dívidas estão pagas e o que ganhamos investimos. Eu nunca hei-de ser rico. Todo o dinheiro que ganho gasto em Favaios. E em Favaios está tudo por fazer. E eu vou fazer tudo, e tenho de fazer mais rápido do que as outras aldeias.
Adoro as outras aldeias vinhateiras, são lindíssimas. Mas Favaios também é. E se é para haver empreendedorismo, cá estou. Sempre para tornar Favaios – e este é o meu sonho e o meu projeto de vida – a aldeia mais visitada do país.
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