Manuela Barriguda tem 72 anos e foi padeira toda a vida. Em terra e em família de padeiros, Manuela orgulha-se de saber fazer «o melhor pão do mundo». Aprendeu o oficio com a mãe e está a passá-lo à filha. É das poucas que sabe a arte de tender o pão dos quatro cantos e acredita que a tradição se vai manter. Eis o seu testemunho.
“Vivemos numa aldeia abençoada.”
Chamo-me Maria Manuela Pires Fernandes. Nasci em Favaios, com Deus, a 9 de maio de 1950. Aqui namorei, tive os meus três filhos, casei. Toda a gente me conhece como Manuela Barriguda. O meu pai era chamado de Barrigudo. Ele tinha bois e trabalhava para os lavradores, chamavam-lhe António Barrigudo. Não sei de onde veio isso; mas se ele é Barrigudo eu sou Barriguda.
Sou padeira, fui padeira a vida toda. Aprendi o ofício com a minha mãe, Maria Teresa Pires. Também ela foi padeira, sempre, e ela também aprendeu com a minha avó. Na minha família é tudo padeiro, tios, primos, tudo. A minha mãe trabalhava muito; ela teve muitos filhos, e tivemos todos de trabalhar.
Eu cheguei a ir à escola, mas tão depressa ia como uma contínua, prima da minha mãe, ia lá dizer à dona Lígia, a professora: “Ó senhora professora, a minha prima pediu para vir buscar a filha. Deixe-a ir buscar um capão a casa que ela depois vem”. Mas era o ias, nunca voltava. Fez assim duas ou três vezes, até que depois deixei de ir. E ninguém me obrigou, não é como agora.
Pois se eu não aprendi é porque me iam buscar à escola. Mas não interessa. Já ganhei muito dinheiro, sem saber ler nem escrever. Tenho algum desgosto de não saber ler, lá isso tenho. Mas tenho muito gosto naquilo que faço. Eu podia estar emigrada, podia ter outro ofício. Mas eu gosto de fazer isto. Adoro. Adoro.
Eu comecei a trabalhar como padeira aos sete anos. Comecei a amassar farinha e a peneirar. A farinha, antes, não chegava prontinha como vem agora: trazia farelo, trazia relão [flocos], que era o que a gente comia; e eu passava horas e horas a peneirar. Se agora trabalho muito, naquele tempo trabalhava muito mais. Antigamente era tudo muito mais difícil. Muitas vezes nem à cama ia. Passava as noites a cozer pão, para depois vender durante o dia. Ia descansar um bocadinho ao fim do dia, mas à noite lá tornava para a padaria.
Agora não é assim, já não passamos as noites aqui. Só vimos para a padaria às 5h30. Primeiro vem a minha filha, a São. Junta a água, a farinha, o sal, e põe a amassar na amassadeira. Há já uns 40 anos que temos esta máquina, não é preciso estar a amassar. Depois, põe-se a massa na gamela, e fica ali uma hora ou hora e meia. Eu só chego lá pelas 7h00 e começo a orçar [a dividir a massa em porções] e a tender [dar forma a]o pão.
Faço os trigos com os quatro cantos, como é tradição aqui e depois vão para os tabuleiros, e ficam mais uma hora a levedar – no tempo mais frio demora mais tempo, às vezes uma hora e meia. Entretanto, aquecemos o forno, que já ficou carregado de lenha, e depois é que entra o pão. Em cada fornada cozemos 180 trigos, e entra sempre um trigo de cada vez. Quando acabamos de pôr o último, o primeiro já está a meio, mas também vai ser o primeiro pão a sair. Em 40 minutos, três quartos de hora, o pão está cozido.
Normalmente, faço quatro fornadas por dia. Às duas da tarde a minha filha vai distribuir o pão aqui pelos clientes do concelho, e eu fico na padaria a atender os clientes que cá aparecem. Agora já não vamos – nem eu, nem ela – levar pão aos clientes dos outros concelhos. Vendi muito trigo na Régua, e também levei muitos pães a Mesão Frio, por mais de 30 anos. Agora o meu marido tem Alzheimer, não pode ficar sozinho, não vamos a lado nenhum. Vêm os meus clientes aqui ter comigo. Continuo a receber muitas encomendas, até para fumeiro. E eu tenho sempre um bocadinho de manteiga para oferecer com o trigo… que quando ele está a sair do forno ninguém resiste.
Favaios é terra de muita tradição nas padarias. Aqui em Favaios havia muitos fornos comunitários, onde as pessoas coziam o pão, havia quase um forno em cada rua. Foi num forninho desses que eu comecei, de pequenina. Punha-me em cima de um calço, para chegar à banca e amassar.
Mas depois a Dona Adélia, que era amiga do Salazar – o marido dela era governador civil em Moçambique – quis mandar fechar os fornos para fazer estas padarias maiores. Quando ela quis fechar os fornos, os sinos tocaram a rebate, levantou-se a confusão. Ela fazia o que queria. Mandou fazer estas padarias grandes como esta onde estou e deu de sociedade às padeiras. A minha mãe também teve uma sociedade com a Dona Adélia, numa padaria na Viela das Queridinhas. Mas não era como esta, era mais pequena e só tinha um forno. Eu aqui tenho dois.
Eu trabalhei sempre com a minha mãe. Depois conheci o meu homem, tivemos três filhos – só depois de ter os filhos é que me casei e os batizei. Fui à igreja casar-me num dia normal, vestida assim como estou, de bata e tudo. O meu marido trabalhava na agricultura, mas não gostava desta vida.
Fomos para França, e ainda estivemos lá 15 meses. Também era um trabalho muito duro, andava a apanhar cogumelos com uma luz na cabeça como os mineiros, a andar debaixo de terra. Mas ganhava-se muito bem. Veja lá que tenho 100 euros de reforma de lá, naquele pouco tempo que lá trabalhei…
Mas enquanto andava em França chorei lágrimas de sangue, a minha paixão era isto. Ainda vim para o Porto, abri uma pensão e dava de comer a mais de 40 pessoas, mas também não gostava daquilo, não gostava do ambiente. Até que um tio do meu marido lhe arranjou um trabalho no Comércio do Porto, como motorista dos jornalistas. Ele ficou lá, mas eu vim para aqui. Vim para padeira.
Foi depois de vir de França que aprendi a tender o pão. É preciso dar umas voltinhas com a massa, e há muita gente que não sabe, não consegue. A minha mãe, por exemplo, não sabia tender. Chamava umas senhoras, as forneiras, para fazer isso. Eu lá consegui aprender, mas também não consigo ensinar à minha São. Não sei explicar como isto é. Eu faço isto fácil – mas também já tendi muito pão na vida. Já tendi tanto pão que aqui tenho um calo na mão e que ontem bem me doía.
Vim para esta padaria quando a minha mãe morreu, em 1997. Aluguei isto e ainda hoje estou a pagar a renda aos herdeiros dessa Dona Adélia. Trabalho com a minha filha São – o nome dela é Maria da Assunção – que é a melhor coisa que há aqui em Favaios. É o braço direito do pai e da mãe, ela faz tudo e mexe tudo.
É ela que vai ao monte, que prepara a lenha, que a carrega, faz tudo sozinha. Ela também gosta do que faz. Estudou até querer, tirou o 12 º, mas não quis ir para a universidade. Mas também gosta disto, é como a mãe. Também podia ser uma cidadã, mas é uma padeira (risos).
Há em Favaios muita padaria, mas o pão melhor de todos é o meu. Não é para me gabar, e até me custa dizer isto, mas não sei como é que há quem possa estragar a qualidade do pão de Favaios. Eu gosto de fazer tudo nesta arte, mas o que me dá mais gosto é mesmo tender o pão. O problema é agora o calo, que já me dói. E na verdade, antigamente não tendia tanto como agora. Antes fazíamos sacos de 22 quilos de farinha, agora vão ao forno 70 quilos de uma vez. As pessoas tinham mais filhos, mas acho que agora comem todas muito mais. Aqui na banca até a madeira está gasta de tanto tender pão. Tenho dias de tender mil trigos ou mais, como não havia de ganhar calo?
Agora só peço a Deus que me dê saúde para continuar, para ajudar a minha filha, para criar os netos e bisnetos. Já tenho três, são a coisa mais linda. Tenho muito orgulho em viver em Favaios, em ser de Favaios, terra de pão e de vinho. Quando falam do nosso moscatel até fico inchada – não venham lá com coisas, que não há moscatel como este, nem em Setúbal, nem em Alijó. Esqueçam lá isso!
Eu até não sou de beber vinho, de qualidade nenhuma. O vinho não sei como é, desce às pernas e sobe à cabeça. Dá uma moleza. Eu digo que se fosse uma mulher de vinho nem trabalhava. Mas uma vez fui à festa da adega – que no fim das vindimas eles põem uma pipa à disposição – e fui lá beber do moscatel… Aquilo era mel! Eu bebi dois copos, até criei saúde…
Vivemos numa aldeia abençoada. E acho que esta tradição não vai morrer. Eu nem lhe sei explicar porque é que o pão de Favaios tem esta forma, com quatro cantos, nem porque é que é o melhor de todos. Dizem que é da água. Mas já levaram água e já levaram vinho e não fazem pão como o nosso em lado nenhum. Gostava um dia de ir a uma padaria da cidade, e fazer pão lá com a massa deles. Eu acho que deve ser das farinhas, que nessas padarias usam muito crescente, muitos produtos. Mas até gostava de experimentar fazer este trigo, a ver como saía. Acho que não saía igual.
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