Miguel Ferreira nasceu em Penafiel há 44 anos e não tinha qualquer ligação às vinhas. Tirou o curso de Enologia em Vila Real, onde conheceu a atual esposa, Berta Resende. Os dois estão agora à frente de um projeto inovador em Favaios, onde experimentam novas práticas de viticultura. Miguel tornou-se num dos produtores da Adega de Favaios, onde é enólogo há duas décadas, e está a viver na pele o ditado que diz que a vinha gosta de ver o dono todos os dias. Eis o seu testemunho.
“A vinha gosta mesmo de ver o dono todos os dias.”
O meu nome é Miguel Ferreira. Nasci em Paredes há 44 anos, mas estou registado em Penafiel, a terra dos meus pais. Vim trabalhar para a Adega Cooperativa de Favaios há quase 21 anos, depois de me ter candidatado a um lugar para a equipa de enólogos. Há já sete anos que sou, também, viticultor. Comprei, com a Berta Resende, com quem casei em 2002, um terreno de quatro hectares de vinha num lugar chamado Salgueirinho. Agora já temos seis hectares, e não estamos a pensar em crescer muito mais. Mas não temos planos de sair daqui.
Nem eu nem a Berta tínhamos qualquer ligação à vinha. A Berta é da região do Douro, natural de Tabuaço, mas não tem na família ninguém ligado à agricultura. Os meus pais, em Penafiel, também não tinham vinha nenhuma. Havia a tradição de ir fazer as vindimas das pessoas amigas da família. Juntávamo-nos aos fins de semana para vindimar e foi essa a minha primeira ligação. Achava muita piada àquilo. À noite também tínhamos as lagaradas, eu achava tudo muito bonito e entusiasmante. Segui a área das ciências e lembro-me perfeitamente de estar a pesquisar os cursos disponíveis no Porto, Vila Real, Aveiro e de achar enologia desafiante.
Foi no curso de enologia, em Vila Real, que nos conhecemos. O curso tem algumas cadeiras claramente exigentes; mas depois, a partir do segundo e do terceiro ano, com cadeiras mais específicas na área da viticultura e da enologia, foi aí que comecei a gostar ainda mais.
Quando terminei o curso, o meu primeiro estágio foi numa empresa de Vinho do Porto, na Barros e Almeida. Comecei com um estágio em vindima, aqui no Douro, e não em Gaia. Fiquei lá a trabalhar. A Berta começou a trabalhar em Alijó, nas Caves Transmontanas [onde se produz o espumante Vértice] com o Celso Pereira. Ele também dava apoio – e ainda dá – na Adega de Favaios. Foi então que soube da necessidade de contratar alguém a tempo inteiro para a adega, e candidatei-me.
Para mim, Favaios, mais do que uma aldeia ou uma vila, era uma marca que toda a gente conhecia. E, acima de tudo, era uma adega com uma direção um bocadinho diferente das cooperativas existentes na região. Havia uma vontade de fazer melhor, de evoluir, de construir uma adega mais moderna, mantendo os métodos tradicionais de vinificação mas com equipamentos melhorados. Além disso tem uma outra vantagem, muito interessante para um enólogo, que é podermos fazer todo o tipo de vinhos que se fazem na região, isto é, Porto, brancos, tintos, moscatel, espumante… Nós fazemos tudo o que podemos, até colheita tardia. Estamos sempre a tentar criar novos produtos e novos tipos, novas formas de vinificar para tentar atingir melhores resultados.
Eu e a Berta acabámos por viver sempre aqui na região. Houve a possibilidade de ir para o Porto, quando estava na empresa de Gaia, mas optámos por ficar por aqui. Aqui temos qualidade de vida. Lembro-me bem do que deve ter sido nos últimos dois anos para muito gente, por causa do confinamento. Nós aqui não sentimos. Podíamos sair de casa, continuar a trabalhar, passear os cães. A nossa vida não mudou nada.
Inicialmente, ficámos a viver em Tabuaço, a 30 minutos daqui. Mudámo-nos para Favaios quando comprámos a vinha, há sete anos. Decidimos que seria uma boa opção termos uma terra nossa. Começámos com quatro hectares primeiro, depois fomos somando pequenas parcelas até que chegámos aos seis hectares. Não é muito, mas já dá trabalho que chegue. A Berta trabalha aqui a tempo inteiro, eu trabalho sempre que não estou na adega.
Há trabalho o ano todo. Aqui as pessoas dizem que a vinha gosta de ver o dono todos os dias. Nós achávamos alguma piada, mas agora que estamos nisto, vemos que é mesmo verdade.
O problema que mais dificuldades traz à região neste momento é a falta de mão-de-obra. Por um lado, por causa da quantidade de pessoas que deixaram de viver aqui nos últimos anos. Por outro, as pessoas que cá estão, os mais jovens, encaram o trabalho na vinha como algo menor… É certo que é trabalho duro. Sabemos que não é fácil, há dias em que se chega aqui e está tudo congelado e há dias no verão em que é muito calor.
Mas acho que há também algum preconceito contra o trabalho na agricultura, em particular na vinha aqui no Douro. A ideia que tenho clara é que há muita gente que vai para as cidades viver, nomeadamente jovens, e que ficam em situações muito precárias, com salários baixos e custos de vida altíssimos, e que trabalham no dia a dia para pagar os custos de viver na cidade.
Nós sentimos como vantagem de aqui estar o facto de os custos serem muito mais baixos e os salários não serem assim tão mais baixos, proporcionalmente. Posso dizer-lhe que, desde que somos produtores e viticultores, o custo da mão-de-obra subiu entre 70% a 80%. Não há muitos salários que tenham subido assim, com toda a certeza. Mas eu nem me estou a queixar. Acho que o valor pago é justo – para o trabalho que é feito, para a dureza do trabalho. A nossa preocupação é conseguir valorizar as uvas, para poder pagar justamente aos trabalhadores e remunerar os investimentos.
A Adega de Favaios tem centenas de viticultores associados, nós somos apenas um. Mas não há muitos casos como o nosso. O que encontramos mais aqui são filhos a herdar negócios e projetos dos pais, e que já eram dos avós. São pessoas que tentam dar continuidade à atividade, somando-lhe algum profissionalismo, investindo mais em equipamentos que tornem o trabalho menos pesado. Isso sim, é evidente. Mas não me lembro de mais nenhum caso de pessoas a virem do litoral para aqui, ou não tendo ligação à vinha se tenham decidido instalar.
O Douro não é uma região fácil para fazer grandes mudanças, sobretudo o Douro das vinhas muito inclinadas. Nós temos o privilégio de estar no planalto, podemos pensar em algumas soluções.
Quando comprámos esta vinha, ela já estava quase com 40 anos de idade; tinha entrelinhas mais estreitas, viradouros muito curtos, havia oliveiras a fazer a bordadura… Não era fácil mecanizar. Nós fizemos uma reconversão, já deixámos espaçamento nas linhas suficiente para pensar nisso, até para uma vindima mecânica. Não quer dizer que nos passe pela cabeça nos anos próximos, mas já estamos a pensar que um dia mais tarde seja viável. Estamos a tentar que estas vinhas tenham ciclos de produção mais longos, isso é que pode melhorar a rentabilidade de um viticultor. E o que andamos aqui a fazer, que mais do que um nosso direito é quase um dever, é poder experimentar soluções novas e partilhar resultados.
Por exemplo, o enrelvamento que temos nas vinhas. O típico aqui é ter solo nu, os terrenos castanhos. Mal desponta uma erva, os proprietários aplicam herbicida ou passam o trator. Nós experimentámos primeiro não tirar a erva que aparecesse, e há dois anos fizemos mesmo um plantio, com trevos e leguminosas. Achamos que há vantagens, como a de prevenir a erosão e a de ser fixadora de azoto. Em vez de pôr adubo, a relva naturalmente apanha-o do ar e faz fixação no solo. E aumenta a biodiversidade, tem mais insetos, mais pássaros. A Berta diz que nós temos obrigação de dar à terra, acrescentar, e não apenas tirar. E é muito isso.
Pensa-se que a erva vai roubar a água à videira, e como nós temos épocas muito quentes, e a água é vital para que o bago cresça, o receio existe. Mas nós verificámos que não acontece. Até tivemos produções muito acima da média. O ano passado foi um ano muito bom na região, a produtividade média geral de moscatel dos viticultores da Adega de Favaios foi de quase 12 pipas por hectare. Nós tivemos quase 16 pipas, nem podíamos declarar todas as uvas como vinho do Douro. Não estou a dizer que as uvas eram fracas. Eu como enólogo lá, a receber as minhas uvas, gostava muito delas, achava que elas estavam impecáveis e deram um bom vinho.
O mais importante – e é esse o trabalho que estamos a fazer aqui, sobretudo a Berta, que trabalha a tempo inteiro -, é pensar e saber porque é que estamos a fazer uma ou outra operação.
Neste momento estamos com podas. Quando a Berta começou a andar com uma tesoura, na aldeia temia-se o pior. Não era serviço para ser feito por uma mulher. A poda é um trabalho muito importante, define não só a produtividade da vinha e a forma como ela vai crescer, mas também o futuro daquela videira em particular. É fácil matarmos uma videira com prática de podas erradas. Mas a verdade é que estamos a fazer experiências e vamos partilhar os resultados. Isso é o que nos motiva.
Estamos a tentar fazer aqui ao lado uma poda muito diferente, que no futuro terá cortes muito menos agressivos e que respeita melhor o fluxo da seiva dentro da planta. Pode correr mal. A vantagem é que a vinha é nossa, se correr mal correu. Mas acreditamos que vamos ter sucesso e que futuramente vamos conseguir influenciar pessoas para passarem a fazer este tipo de poda e condução da vinha aqui na zona.
Noto que, dentro da minha geração, entre as pessoas que trabalham comigo na adega e não só, consegue discutir-se as práticas na viticultura, conseguimos falar sobre o que estamos a fazer, abertamente, falar da consequência.
Tudo isto é muito importante. As práticas têm de ser pensadas, orientadas para os resultados. O problema da mão-de-obra não vai desaparecer. No ano passado as nossas vindimas foram feitas por pessoal contratado na minha terra. As pessoas vinham de Penafiel, faziam mais de 100 quilómetros para vir trabalhar, levantavam-se às 4h00. E regressavam a casa no mesmo dia. E preferem assim. Temos de aprender a lidar com isso.
Também por isso, não estamos a pensar fazer crescer a vinha muito mais do que isto. Senão, então é que não conseguíamos fazer mais nada. A reconversão de uma vinha é um processo muito exigente, só agora estamos a começar a respirar. Há aqui uma parcela que foi replantada em 2019 e que só este ano vai dar uvas.
A vinha gosta mesmo de ver o dono todos os dias. E o dono também vai gostando de olhar para ela. Para mim, a melhor época do ano não é a da vindima – até porque eu passo dos dias enfiado na adega a receber as uvas, e a fazer vinho. A melhor altura do ano é quando a primavera começa a tornar as coisas mais verdes, e todos os gomos que ficam da poda começam a dar uma pontinha de verde. Ver a vida a despontar. É o que eu mais gosto.
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