Andou pela Arábia Saudita e pela Suíça, mas tenciona acabar os seus dias de trabalho junto ao forno onde sempre viu a mãe a cozer pão. É António Joseph, como lhe chamam na aldeia, que todos os dias, e já há mais de 20 anos, coze ora trigo, ora centeio para servir Provesende e muitas outras aldeias da região. Diz que a vida na padaria não é fácil nem é para todos. Mas espera poder continuar por muito tempo. Eis o seu testemunho.
“Mãos há muitas, fornos como este é que não há mais nenhum”
Chamo-me António Matos, tenho 63 anos e desde os meus 13 anos que a minha vida passa por esta padaria, a ajudar a minha mãe. Tanto a minha mãe como o meu pai nasceram aqui em Provesende, os meus bisavós geriam o forno comunitário. E desde pequena a minha avó já cozia o pão e pegava nos cestinhos e ia vendê-lo por estas freguesias fora. Naquele tempo era proibido, andava a guarda atrás de quem vendia… mas elas tratavam de escapar.
A minha mãe, Etelvina Matos, passou a vida dela aqui na padaria. Foi quase a primeira a vir para cá, em 1940, o ano em que a padaria abriu. E aqui dentro continua tudo como estava então. É o mesmo balcão, o mesmo forno, as mesmas mesas. Não mexemos em nada. Só temos uma amassadeira eléctrica, que na altura não havia.
Lembro-me que mal sabia andar e já vinha para aqui. Fui aqui criado, desde pequenino. Foi sempre a minha vida. Saía da escola e vinha para aqui, até almoçar! A minha avó trazia o comer aos meus pais, e nós vínhamos aqui diretos. E, à tarde, quando saímos, estávamos aqui de novo. A nossa vida foi sempre aqui na padaria.
O meu irmão mais velho é que estava a ajudar a isto. Mas quando ele morreu, vim para aqui eu ajudar a minha mãe. Já cá estou há mais de 20 anos.
Eu ainda andei emigrado. Estive dois anos em Riade, na Arábia Saudita, e uns 12 na Suíça. Lá trabalhei na construção e também estive muitos anos num hotel, o Metrópole, em Berna. É por isso que muitos me chamam de Joseph – o meu nome é António José, e eles gostam de chamar em francês.
Os meus filhos ainda estão na Suíça. Mas querem voltar. O rapaz até já comprou casa em Portugal. A rapariga, que nasceu lá, ainda está a tratar de compôr a vida. Mas é a que mais gosta disto, e também sabe fazer pão. Mas isto não é vida fácil. Já me ia desmaiando aqui três vezes, por causa do calor.
Esta vida é levantar todos os dias, de segunda a sábado, sempre muito cedo, nunca pode ser depois das cinco e meia ou seis. Às vezes há cansaço, claro. Mas não há sacrifício. Quando se tem gosto pelas coisas, trabalha-se e faz-se.
Aqui não há grandes segredos. Fazemos tudo na mesma maneira, desde sempre. O forno fica pronto de véspera, com lenha pronta, e as farinhas pesadas e prontas a amassar. Quando chegamos aqui, começamos logo com a lida… Farinha, sal, água e a massa-mãe que vai ficando do dia anterior. Ou de há dois dias, porque eu faço num dia broa de milho e no outro broa de centeio.
As massas têm de ser amassadas e trabalhadas todos os dias. Dizia a minha falecida mãe que o pão é como o comboio, não espera por ninguém. Tem de se amassar e começar a trabalhar, senão depois…
Eu acho que o segredo do pão está neste forno. Mãos há muitas, mas forno como este é que não há mais nenhum. O que está aqui nesta parede, com 4,2 metros de fundo, é que é sagrado. E quem faz o pão é o forno, não sou eu. Se o pão abre ou se fica fechado, a forma que tem… o forno apanha-se com o pão lá dentro e faz o que quer dele. Às vezes não queria que saísse de uma determinada forma, e sai.
É preciso saber trabalhar com ele, claro. Temos de saber misturar a lenha mais grossa com a lenha fina, saber apartá-la uma da outra, para não estar sempre a arder no mesmo sítio. Porque senão escalda muito o pão. E temos de ter cuidado também a fazer a primeira quentura, porque se a lage do forno esquenta muito o pão fica queimado por baixo.
E aqui não há termómetros, é tudo à vista. Para saber que o forno está quente, a parte do teto tem de estar branca – assim é que sabemos que tem claro suficiente.
Agora isto é como tudo, tudo tem os seus quês, as suas dificuldades. Limpar o forno é um bocado difícil. Enformar também não é fácil, nem é para qualquer pessoa. Porque quando é cheio, ao sábado, leva uma média de 180 broas. É um autêntico ginásio.
E depois é preciso saber e tratar das lenhas. Eu ainda vou tendo mateiros que me juntam a lenha, para eu depois a ir buscar. Mas isso também está cada vez mais difícil. Não vale a pena pensar que isto se faz sem lenha. Já tentei com um maçarico – não cheguei a gastar um saco de farinha – e desisti logo. O pão não tem o mesmo sabor.
Este pão é muito trabalhoso. Na cidade é tudo máquinas, não há este trabalho de encher de lenha, aquecer, arranhar o forno, enfornar, desenfornar, limpar. Mas também as máquinas não fazem pão com esta qualidade. E acho que é isso que as pessoas continuam a procurar. A qualidade. As daqui da aldeia, e também os muitos habitantes da cidade que aqui vêm passar o fim de semana, e turistas que nos visitam.
Eu, ao sábado, faço o dobro do pão que faço nos dias da semana. Mas, às vezes, na semana, também há dias em que o pão que faço não chega para todos os que querem. Ainda ontem o pão não me chegou para ir a todas as aldeias e freguesias que tinha destinado. Acabou antes de lá chegar. É assim a vida.
Eu já não tenho muita saúde, estive internado por causa de um problema do coração. Sei que não falta quem me arrende ou quem compre isto. Mas vender, não vendo. Nunca se sabe o dia de amanhã, e se os filhos não vão querer pegar nisto.
Agora, para já, vejo-me aflito para arranjar quem me ajude. Só precisava de alguém que estivesse aqui a ajudar a enfarinhar, a pôr o pão no forno e a tirar.
Faço tudo o que via a minha mãe fazer. Foi com ela que aprendi tudo. As rezas também. Quando termino de amassar faço-lhe a cruz e digo: “Deus te benza, deus te acrescente, deus te faça pão, deus de dê à divina benção”. E quando os tenho a todos já enfornados e fecho a porta do forno digo: “Cresça o pão no forno e a graça de Deus pelo mundo todo”.
Todos os dias faço a mesma quantidade, um saco de farinha. Peso as broas, uma a uma. Devem pesar 800 gramas. Agora com os hotéis e restaurantes que há por aí, também recebo encomendas para fazer bolas de carne, pães com chouriço, pão com vinho de mosto. E eu lá vou fazendo essas coisas todas.
Mas o que é certo, todos os dias, é às segundas, quartas e sextas faço pão de centeio e às terças, quintas e sábados faço pão de trigo. Milho é raro fazer. Antes era o pão dos pobres, fazia-se uma grande e dava para as famílias grandes, a semana toda. Agora é o pão dos ricos. Querem broas pequeninas para comer com uma sardinha e já está.
Eu aqui faço trigo e centeio, mas também faço meias broas, que as pessoas já são poucas, vivem sozinhas e assim, com pães mais pequenos, sempre vão comendo pão fresco mais vezes.
Se vierem à padaria até lá para as dez da manhã, ainda me apanham aqui. Depois abalo com a carrinha para levar o pão a essas aldeias todas. E os meus dias são assim, de segunda a sábado. Só ao domingo me dou ao luxo de dormir até mais tarde. Se não for altura da caça, que é outra coisa que gosto muito, só me levanto da cama lá pelas 11h00.
Eu já vivi do outro lado do mundo mas, tanto quando estava na Arábia [Saudita] como quando estava na Suíça, sempre suspirei por isto, pelo meu cantinho. Fui, mas sempre na expectativa de ir governar a vida e regressar novamente ao meu ninho, ao meu cantinho.
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