Nasceu em Angola, mas vinha a Provesende, a aldeia do pai, a cada cinco anos. Regressou de vez a Portugal na altura do 25 de abril. O pai sonhava ter os filhos formados, e Graça fez-lhe a vontade. Mas não acertou no curso: foi parar a Engenharia Mecânica, a única mulher numa turma de homens. Agora é a única mulher a gerir um negócio na aldeia, o Papas Zaide, um restaurante que só funciona por reserva e que está quase sempre esgotado. Casou quase aos 40, tem duas filhas a quem se empenha em ensinar o espírito de independência e liberdade. Eis o seu testemunho.
“Sempre consegui ter a minha vida. É isso que eu quero ensinar às minhas filhas”
Sou Graça Monteiro, nasci em Angola há 58 anos. Vim pela primeira vez a Portugal com três anos, e depois só voltei aos nove. O meu pai só tirava férias de cinco em cinco anos, para ter um ano inteiro de férias aqui. Para que eu e o meu irmão pudéssemos estudar, não perdêssemos o ano letivo. Foi por isso que eu fiz a terceira classe nesta aldeia, mas depois regressamos a Luanda, em setembro de 1970. Lembro-me do meu pai dizer que em 1975 queria regressar de vez, dizia que a terra que o viu nascer era a terra que o havia de comer. Ele tinha dois sonhos. Um era ter os dois filhos formados e ter uma casa na terra dele. E conseguiu. Eu e o meu irmão formamo-nos. E a casa que ele fez na terra é a casa onde hoje eu vivo.
Quando regressamos a Portugal, depois do 25 de Abril, viemos, naturalmente para Provesende. Em 1979 vou para o Porto para estudar. Como já havia a aspiração de eu ir para um curso superior, e ainda não havia Universidade em Vila Real, o Porto seria o destino e achamos que era melhor eu ir logo para fazer o décimo ano.
Fui para o Garcia da Horta fazer o 10º e o 11º, e depois passei para o Carolina no 12º, porque podia estudar à noite e trabalhar de dia. Eu comecei logo a trabalhar. O primeiro trabalho foi na Gianone, uma fábrica de confeções. Fui viver para casa de uns amigos dos meus pais. Comecei a trabalhar e na altura os juros eram baixos. Passados quatro anos consegui comprar uma casa em Rio Tinto.
Quando entrei em Engenharia Mecânica éramos 110 alunos, em que a única mulher era eu. Eu não escolhi mecânica. A mecânica escolheu-me a mim. Erradamente.
O meu objetivo era ir para Economia. Mas como fui mal informada e tinha frequentado o Científico e Tecnológico no secundário, não me pude candidatar. Foi um curso muito difícil para mim. Mas lá me aguentei, a estudar e a trabalhar. Acabei o curso em oito anos. E trabalhei sempre. Tornei-me a tesoureira da Associação de Estudantes, porque me podia propor a exames. A parte que eu mais gostei do curso foi a parte da gestão de produção. Custou-me muito fazer desenho. O professor deu-me a cadeira com 9,5 porque eu lhe prometi que nunca trabalharia num gabinete de projeto. E nunca trabalhei. Fui cair numa agência de publicidade.
Entretanto a minha mãe, ainda muito jovem, com 62 anos, teve um diagnóstico de Alzheimer. O meu pai adoece, passa por algumas cirurgias, tem uma depressão suicida que o leva a pôr fim à vida. E eu, com 39 anos na altura, uma casa e o meu trabalho e dava-me de abraços com uma mãe com Alzheimer. Não tinha o direito de a excluir. Foram os meus progenitores que me formaram, que me educaram, que quando eu fui para o Porto custearam as coisas, embora eu fosse bolseira da Gulbenkian (na altura com aquela média de 14,5 podia-se ser; hoje já não).
Resolvi regressar a Provesende em 2002, para poder dar apoio à minha mãe. Caso-me mês e meio depois do meu pai falecer. O meu marido era de cá, era filho do vizinho ao lado. Era, e é, serralheiro. Houve muitos problemas, muito preconceito. Eu era formada, o meu marido não era. Deu muito falatório e muita rejeição. A mim o que me ajudou foi eu, digamos, ter mudado de vida, ter criado uma família, ter as filhas, ter a preocupação da minha mãe.
Quando casamos o meu marido trabalhou aqui. Trabalhou aqui dez anos. Tinha uma serralharia. Mas as coisas não correram muito bem em termos financeiros; depois apareceu a troika, as coisas complicaram-se. Tínhamos duas filhas para criar e não era fácil. Eu abro o Papas Zaide em 2008, ele emigra em 2013. O Papas Zaide não era suficiente para darmos as oportunidades que queríamos dar às nossas filhas.
Quando eu vim para aqui em 2002, vinham cá muitos autocarros do Inatel. Chegavam aqui e tinham um café que vendia batatas Matutano, o vinho, a cerveja, o sumo, gelados e nada mais. Depois outro café, uma mercearia também a vender bebidas, mas era tudo o que havia em todo o lado. Não havia nada diferente. Foi aí que surgiu o Papas Zaide.
Houve uma ajuda na altura. O presidente da Câmara, que era também presidente da Cruz Vermelha, anuncia que vai abrir um curso de formação da Cruz Vermelha, o projeto MINAS – Mulher, ideias, Negócios em Ação. Foi uma senhora com quem eu passava as tardes e que me estava a ensinar a fazer Arraiolos que ouviu o anúncio da missa e me avisou. Na altura eu estava desempregada, para ficar aqui com a minha mãe, e era uma grávida de risco, da minha filha mais velha.
Quando fui ao primeiro dia da apresentação do curso, éramos 32 mulheres. Há uma que pergunta quanto é que ia receber por mês e o orientador lá lhe diz que não ia receber nada por mês, que só ia ter uma ajuda de transporte – que eram 4€ e que ia ter uma ajuda da refeição se fosse de fora de Sabrosa.
No entanto, quem no final da formação apresentasse um projeto com viabilidade seria financiado pela criação do próprio emprego – e era 14 vezes o ordenado mínimo nacional. Ficaram 12 mulheres para fazer o curso. Ao fim de duas semanas já éramos oito. Acabamos a formação quatro. E só eu e outra é que metemos o projeto.
A primeira semana foi muito difícil para mim. Tinha um marido à moda antiga, achava que devia estar em casa, tinha que ser a sopeira. Mas o que é certo é que o que ele ganhava não dava para sustentar a casa. Mas ele não se capacitava disso e infernizou-me a vida por estar o dia todo fora de casa. Pensei em desistir. Mas lá fiz o projeto, consegui ultrapassar tudo. Era uma correria porque vinha fazer o comer e ia a correr. Começo a fazer o Papas Zaide. Papas era a alcunha da minha avó materna, Zaide é um nome árabe de um rei mouro que habitou aqui no século XI.
Quando abri o Papas Zaide não era para servir refeições, de modo nenhum. A minha ideia era ter aqui fumeiro, queijos, todos esses produtos regionais. Mel, pão. As pessoas vinham, faziam umas degustações e, se quisessem levar para casa, levavam.
Só que entretanto andavam aqui a fazer obras. Como estava desempregada, o meu sogro perguntou-me se não queria fazer de comer para os trabalhadores que aqui andavam. Quando abri o Papas Zaide, não me achei no direito de excluir as pessoas e então continuei a fazer-lhes o almoço. Só havia um prato, era a diária.
Depois, o turismo começou a crescer e estrangeiros e mesmo portugueses perguntavam o que se podia arranjar para eles comerem, se eu podia fazer almoços se cá trouxessem grupos. Eu dizia que se podia fazer um arroz de pato, um pernil assado no forno com Vinho do Porto. Estiveram cá umas belgas, alojadas no hotel de uns holandeses que ainda hoje cá estão [donos do hotel Mesão Provesende] que começaram a falar disto e foi um boom para a casa. Começamos a aparecer também em revistas nacionais e estrangeiras, porque já trabalho com grupos estrangeiros há muito tempo. Foi assim que surgiu este sucesso. Ainda hoje tenho muitas reservas por causa do pernil.
Tenho um restaurante atípico. Porque é muito pequeno. E a cozinha, sendo muito pequena, não tenho forma de dar resposta. O pernil tem alguma demora para cozinhar. Só pode ser por encomenda.
O restaurante foi muito mal aceite na aldeia. Tão mal aceite que as mulheres não queriam trabalhar comigo. Porque normalmente os homens anulam as mulheres. E, se reparar, eu sou a única mulher à frente de um negócio aqui na aldeia. Sou eu que faço a gestão, a contabilidade, sou eu que ando com isto. Foi um sapo que tiveram de engolir.
Muitas pessoas não aceitam este conceito de ser só por encomenda. Mas se não fizesse essa restrição eu não ia ter vida própria. Aliás, eu ia acabar por começar a servir refeições ao meio dia e meia e acabava à meia noite. E no outro dia continuava. Não, não, o dinheiro, não é tudo.
Não sou rica, não pretendo ser. Preciso do pão nosso cada dia, paz e sossego já me chega. E da boa disposição que agora tenho com as pessoas à minha volta, amigos na aldeia que me entram pela casa dentro logo pela manhã.
Tenho a Lurdes, uma funcionária, uma amiga, a trabalhar comigo há já nove anos. Trabalhamos muito em equipa, somos polivalentes, fazemos as duas tudo. As minhas filhas estão a estudar. Têm diferença de 22 meses. A Margarida estava no Porto e agora vai para Castelo Branco. A Eva vai fazer o 12.º para Chaves. Não é fácil manter o Papas Zaide com duas filhas a estudar e estar cá sozinha. Ser um uber das filhas, levá-las a todas as atividades extracurriculares. No caso da Eva, que nasceu com uma deformação na anca, o ballet era mesmo uma necessidade.
Foram anos mesmo muito duros para mim e para as minhas filhas. Mas já me arrependi mais do que me arrependo hoje. Continuo a dizer que, se calhar não teria tomados as mesmas decisões. Talvez não tivesse vindo para Provesende e tivesse levado a minha mãe para o Porto. Talvez nunca tivesse casado. Mas depois olho para as minhas filhas, e elas são a única coisa de que não me arrependo nada.
O melhor de viver numa aldeia é esta calma – mesmo que haja algum stress, porque recebe muita gente. Quando vejo o ar sorridente das pessoas fico contente. O bom da aldeia é que as pessoas até podem estar zangadas, mas se acontecer alguma coisa elas correm para ajudar. Se alguém não aparece há alguns dias vamos tratar de saber o que aconteceu.
O menos bom é mesmo a situação das pessoas se meterem na vida alheia, sempre pela crítica. Mas pronto, acho que nos vamos habituando. E como eu consegui ter a minha vida, também consigo fechar a minha porta e ir para casa ler – que é uma das coisas que mais gosto de fazer. Sempre consegui ter a minha vida. É isso que eu quero ensinar às minhas filhas. Não sei se o futuro delas passa ou não por aqui, por Provesende. Agora digo-lhes que se devem focar na formação. Se amanhã optarem por vir para aqui, para mim estará tudo bem.
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