A Quinta da Fonte do Milho estava na posse da família de Nuno Gonzalez há décadas. Mas nem os avós, nem os pais chegaram a lá viver. Foi quando teve de optar entre vender a propriedade ou assumi-la como o seu trabalho principal que este apaixonado por automóveis, formado em gestão, largou a cidade de Vila Real, onde nasceu e cresceu, para se mudar de armas e bagagens para a aldeia. Não sabia nada de vinha vem de vinho, mas dispôs-se a aprender. E o negócio não tem parado de crescer. Eis o seu testemunho.
“Isto de ser agricultor é a melhor maneira de empobrecer alegremente”
Chamo-me Nuno Gonzalez, sou casado, tenho um filho com 14 anos e sou um apaixonado por automóveis. Nasci em Vila Real, em Setembro de 1974, e esta propriedade, a Quinta Fonte do Milho, está na minha família desde 1933. Vou ser honesto, no passado só vinha para a quinta alguns fins de semana com os amigos para beber vinho e fazer umas festas. Pouco mais. Estudei Gestão e trabalhava no ramo automóvel, na Volkswagen. Não tinha nada a ver com isto. Nem os meus pais ou os meus avós viveram aqui. Tiveram sempre caseiros.
Quando os meus pais faleceram, herdei a propriedade e comecei por pagar a alguém para fazer o trabalho. Mas passados dois anos vi que não era sustentável, não estava a ter os resultados que queria. Estava a perder dinheiro, isto estava cada vez pior e então tive de tomar uma decisão. Ou vendia ou vinha para cá. Tomei a segunda. Vim para Provesende para aprender tudo de novo. E aqui estou há 12 anos.
É um trabalho físico, muito mais duro, mas muito mais recompensador. Se no passado vinha cá dois ou três fins de semana por ano, agora saio daqui dois ou três. Porque o trabalho na agricultura não pára, está sempre a acontecer. E agora considero que tenho aqui um projeto de vida, de família.
Quando começou o Covid mudámo-nos para cá. Estávamos a morar na cidade, em Vila Real. Entretanto, como tínhamos de estar fechados em casa, foi muito mais fácil virmos para aqui, não sentimos tanto a pressão do confinamento. E agora, basicamente, não queremos regressar.
No passado, era eu quem vinha todos os dias para cá. Agora é a minha mulher – que trabalha em Vila Real – e o meu filho quem faz a viagem. Os amigos dele estão todos lá, não sentimos necessidade de estar a mudá-lo de escola. E também é perto, são 20 minutos.
Entretanto, tive de aprender a fazer quase tudo. Com os vizinhos, com os amigos, com todos. Ao princípio não percebia nada, e continuo a não perceber… Isto é uma aprendizagem constante. Mas é uma aprendizagem saudável. Trabalhar com a natureza é uma coisa difícil. Porque não estamos dependentes só do nosso trabalho. É como ter uma fábrica sem telhado, a céu aberto. Podemos fazer o melhor trabalho do mundo, mas vem uma trovoada, vem uma tempestade e acaba-nos com tudo num espaço de minutos.
Tivemos essa experiência no segundo ano em que estava cá. Uma trovoada de granizo, no fim do mês de julho, quando o trabalho estava quase todo feito, limpou-nos a produção toda… Mas estas coisas acabam por nos dar resistências. Normalmente, o que nos magoa torna-nos mais fortes. E depois, o trabalho físico é intenso. Chegamos a casa, dormimos. Não temos problemas. Estamos de tal maneira cansados que não há tempo para estar a pensar em muitos problemas.
Costumo dizer que agora adoro o meu escritório – trabalhar ao ar livre e estar em contacto com a natureza, trabalhar com as plantas. Em alturas de vindima, o trabalho é de segunda a domingo, mesmo. Mas depois há meses mais calmos. Janeiro e fevereiro, por exemplo.
Quando acabamos a vindima temos a apanha da azeitona, que é mais um mês e uma semana. Não é tão tão trabalhoso como o vinho porque não fazemos a produção, mas temos a apanha durante o dia, e à noite vou levar a azeitona até à azenha. No dia a seguir, a mesma coisa. Apanha durante o dia, à noite levo à azenha. Depois, temos de começar a preparar as coisas para o Natal; em janeiro temos 15 dias mais calmos, mas também é a altura de começar e preparar os novos engarrafamentos.
Tenho duas pessoas que me ajudam quase todo o ano. E depois, desde o princípio da primavera até ao fim de julho, tenho mais gente quase todas as semanas a ajudar na vinha. Mas como somos pequeninos – temos sete hectares de vinho e três de olival – tenho conseguido suprir a necessidade de mão de obra na aldeia, com os locais. Mas arranjar pessoal é o mais difícil.
A maior parte das pessoas que vêm à nossa vindima andam cá há dez ou 12 anos. Mas são cada vez menos. O mais novo terá para cima de 55, 60 anos – a realidade é esta. O pessoal jovem quer a parte do turismo.
Temos uma senhora com 82 anos a cortar uvas que é assim uma coisa do outro mundo. A Ti Angelina é uma máquina, e canta desde manhã até à noite. Espero que amanhã ela venha. Mas eu nunca sei as pessoas que vêm. Depois arranjam-se alguns que vêm da cidade. Mas não cortam. A verdade é que não sabem o que vem fazer. Se meter duas ou três pessoas ao pé do grupo que eu tenho aqui, ao meio do dia fogem. E esta gente, sempre a falar e a cantar, parece que sabe onde estão as uvas, nem precisam estar a olhar. É muito ano de vindima. Nem eu me atrevo a cortar uvas ao pé deles.
É preciso arranjar cortadores, podadores, enxertadores e cada vez há menos pessoas a saber. Enxertia, por exemplo, é uma coisa que cada vez vamos utilizar mais. Agora com as alterações climáticas, se não começarmos a tratar já de arranjar boas plantas, que enraízam bem, que afundem bem… Nós vimos este ano, as plantas novas estavam com stress hídrico, as produções foram muito más. Acho que são profissões que cada vez têm de ser mais valorizadas.
Eu também lá vou aprendendo, porque tenho duas pessoas a ajudar-me, um agrónomo e um enólogo. Tomamos as decisões os três. Vamos provando os vinhos, vamos vendo os trabalhos que havemos de fazer na vinha. Tentamos fazer as coisas mais sustentáveis, utilizar menos químicos.
Por exemplo, os nossos rótulos têm os trevos, porque semeei trevo e serradela no meio das vinhas. Conseguem fixar nitrogénio, conseguem dar uma fertilização em verde, ao solo e depois às videiras. É muito bom também para a biodiversidade, para os insetos, para conseguir fixar o solo. Nós cada vez temos anos mais secos, mas quando chove em grande quantidade temos o problema da erosão.
Costumo dizer que 90% do trabalho é no exterior. Se tivermos plantas saudáveis, vamos ter bons frutos. É muito mais fácil conseguir fazer bons produtos se tivermos boa matéria-prima. Aqui, basicamente, é o mais tradicional possível e tentamos fazer o mínimo de intervenção possível na parte da vinificação.
Tenho marca própria desde 2015. Foi a primeira vez, e eu nem sabia muito bem o que estava a fazer. Mandei o vinho para provar para o IVDP e veio-me aprovado como reserva. E eu fiquei todo contente. As coisas estão a correr bem, mesmo na parte do turismo. O turismo é uma alavanca muito grande para os pequenos produtores como nós. É a maneira de conseguirmos mostrar os nossos produtos lá fora. E escoá-los. 90% das vendas que fazemos são ali, naquela pequena lojinha de venda direta. E as pessoas vêm, provam, compram.
No ano passado fizemos cerca de 8.000 garrafas. O nosso armazém é aqui, num dos lagares, por isso nunca consigo ter muito stock. Vamos engarrafando aos bocadinhos, normalmente 1.500 ou 2.000 litros. Engarrafamos, armazenamos. Quando vemos que está a acabar, vamos engarrafar e armazenar outra vez.
Continuo a gostar muito de carros, e as saudades dos automóveis mato-as a ir ver corridas. Não vou tantas vezes como gostava – para ser sincero. O meu filho está sempre a reclamar, “este ano vamos ver o Rali de Portugal”. Eu prometo, e depois na altura acontece sempre alguma coisa e não dá.
Mas não me arrependo da decisão que tomei. Um trabalho muito mais físico. E, como já ouvi alguém dizer, isto de ser agricultor é a melhor maneira de emprobrecer alegremente. Porque a gente não consegue tirar dinheiro daqui. Porque o dinheiro que sai daqui normalmente enterra-se aqui todo. Mas a felicidade também não tem preço. Então acho que é que é um bocadinho por aí: se formos felizes…
Eu não tenho saudades de viver na cidade. O melhor de viver numa aldeia é a calma. A princípio, é difícil. Quando a gente sai de uma cidade, coisas básicas como por exemplo comprar pão… aqui tem horários. Ir ao café, tem horários. A princípio, faz confusão. Mesmo o silêncio, ao princípio fazia um bocado de confusão. Era silêncio a mais. Mas depois…
Primeiro, estranha-se, depois entranha-se. Agora, quando vou para um shopping, passados dez minutos já começo a olhar à volta, a sentir-me muito fechado e com muita gente. Tenho que ir para o ar livre.
Tenho muitos projetos, muita coisa que gostava de fazer. Por exemplo, fazer umas obras aqui na adega, conseguir dar-lhe um bocadinho mais de isolamento para ter melhores condições. O armazenamento também não é fácil, andar a acartar caixas para dentro do lagar. Tem de ser devagarinho. Mas todos os anos temos conseguido melhorar um bocadinho.
Daqui a 20 anos espero já estar reformado – e que veja o meu filho interessado por isto. E espero ter muitos dias bons, como este.
Um dia bom é um dia de vindima, como o de hoje. É um dia com casa cheia. Fico contente quando estamos a cortar, estamos com a alegria da vindima. É a altura do ano que temos mais trabalho, mas é também a celebração de um ano de trabalho. Quando chegamos à vindima é sinal que conseguimos que o nosso trabalho durante o ano chegasse a bom porto.
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