Ele é cirurgião vascular. Ela é artista plástica. Têm três filhos, uma casa no Porto e uma quinta na parte mais alta da aldeia de Provesende. A Quinta do Cume é o projeto de família – de uma família apaixonada pelo Douro. Ele sabe podar, vindimar, enxertar, acomodar. “Ninguém sabe mandar se não souber fazer”, diz Jorge Tenreiro. Ela é a responsável comercial que tratou de vender vinho e azeite para todos os cantos do mundo para agora, 20 anos depois, ter tempo para voltar às tintas e pincéis. Usando caixas de vinho como tela. Eis o seu testemunho.
“A Quinta do Cume é um projeto de família e sustentável”
Jorge Tenreiro, médico cirurgião
Sou médico de profissão e agricultor nas horas vagas. Sou cirurgião vascular e sou um apaixonado pelo Douro. A minha família teve uma quinta no Douro – a Quinta do Ataíde, no vale da Vilariça -, mas vendeu-a quando eu tinha uns 18 anos.
Mas eu nunca desisti de ter um espaço no Douro. E o facto de ter escolhido Provesende também não foi um acaso. Porque eu vinha para esta aldeia desde pequeno.
Um amigo da família, e padrinho, Francisco Pinheiro da Veiga, tinha aqui uma casa, e eu passava semanas aqui metido. Vim cá sempre, e um dia foi ele quem me apontou este terreno, na parte mais alta de Provesende, como sendo um bom terreno para comprar. Compramos o terreno no cume da aldeia. Assim nasceu a Quinta do Cume, há já mais de 20 anos.
Ao longo da minha vida tenho-me dedicado sempre àquilo que gosto. Isto da viticultura é um prazer enorme que eu tenho. Mas ao mesmo tempo, eu sinto estas raízes e quero transmiti-las aos meus filhos e à minha família. Sinceramente, eu só comecei a provar vinhos a partir dos 40 anos. Mas, quando comecei a beber, esforcei-me por perceber.
Estudei, acompanhei as coisas e as tendências. E procurei um determinado estilo dentro dos vinhos – e acho que temos conseguido o que procurava. Aconselhei-me com o Dirk Nierport, que é nosso amigo e me deu a referência de três enólogos para o tipo de vinhos que eu queria. Escolhi o Jean-Hugues Gros e estou feliz porque ele realmente é a imagem e o espelho. Tem feito aquilo que nós pretendemos – fazer vinhos do Douro elegantes.
“Isto da viticultura é um prazer enorme que eu tenho.”
Jorge Tenreiro
Como crescemos, fomos escolhendo e comprando terras e fazendo novas plantações, escolhendo aquilo que queremos seguir e que queremos para a empresa. Aqui em cima, neste cume, onde construímos também a adega e a casa de provas, é onde estão as videiras de branco.
Tentamos fazer aqui também tinto, mas não é onde se consegue a melhor qualidade. Temos a qualidade que queremos no tinto num outro terreno, na parte mais baixa da freguesia, onde a orientação solar, o declive… o terroir, têm as características que procuramos.
A nossa quinta neste momento tem duas componentes. Por um lado, temos a componente agrícola que é sustentável – o benefício, pago pela Casa do Douro por causa das uvas que entregamos para o Vinho do Porto sustenta a parte agrícola. Por outro lado, temos a marca. Sempre pensei que se a marca não tivesse vendas não deveria pôr em causa a propriedade. Ela tem de se conseguir manter viável.
Com esta separação, acho que temos conseguido os nossos objetivos. Mas com muitas contrariedades pelo caminho. Estas pandemias não nos têm ajudado, mas temos procurado sobreviver a essas vicissitudes da vida.
A minha semana de trabalho é estar de segunda a sexta-feira enfiado entre quatro paredes, concentrado nos meus doentes. Ao fim de semana venho para aqui, e é uma libertação total.
Muitas vezes sinto que tenho de fazer trabalhos que nos levem a pensar em nada, que nos levem a esvaziar. Isto para mim é um esvaziar da semana. Ter este trabalho na quinta também me ajuda na minha vida profissional, porque me dá o relaxamento necessário para chegar a segunda-feira e ter energia para voltar a concentrar-me.
Eu aqui descomprimo. Faço muitas vezes trabalhos de vinha. Eu sei podar, enxertar, sei fazer tudo. Aprendi a fazer na prática. Claro que apoiado em livros e nos estudos.
Nunca tive muito tempo, mas fui fazendo alguns cursos, essencialmente técnicos, ao longo destes anos, porque gosto de saber mandar. E para saber mandar a gente tem de saber fazer. Isso é extremamente importante. O podar, a vindima, são trabalhos repetitivos, mas que nos dão a tal concentração que relaxa e o esvaziar das complicações que temos na vida.
Eu gosto de fazer a poda antiga. E gosto de fazer tudo bem. Gosto que as coisas estejam organizadas. Faz parte da minha natureza e, para mim, isso e fazer a ampara das vinhas, meter os vinhos dentro de arames e cortá-la, ver a vinha certinha, é um trabalho que eu gosto.
Outra coisa que fazemos é uma viticultura de sustentação. Estamos no que chamamos de produção integrada, que é amiga do ambiente – não usamos produtos químicos que sejam nocivos. Fazemos plantação nos patamares e nos combros de plantas que alimentam esta vida natural; isto é, que vão fertilizar as vinhas e ao mesmo tempo são amigas do ambiente.
Eu gosto do Douro em todas as alturas do ano. Adoro o outono, adoro a primavera, mesmo o inverno. Gosto do frio, da lareira… mas a melhor altura do ano, para mim, é mesmo a fase das vindimas. Porque é quando temos finalmente contacto com o produto que andamos a cuidar o ano inteiro. Não dispenso estar cá nas vindimas.
Agora as coisas na quinta estão bem mais organizadas. Nos primeiros anos, ou era a prensa que falhava ou era um desengaçador que tinha um problema. Hoje em dia já temos soluções rápidas para tudo isso. O meu lema é não deixar para amanhã o que posso fazer hoje. Só assim é que a gente consegue levar as coisas a bom porto.
Estou entusiasmado com o futuro. Os vinhos do Douro têm valorizado imenso. As exportações têm crescido – 4% no ano passado -, mas cresceram essencialmente em valor, e isso é o mais importante. Porque, como se vê, as vinhas são difíceis de trabalhar, dificilmente mecanizáveis, são muito caras. E têm produções baixas comparativamente com qualquer outra região, seja em Portugal ou no mundo.
Nós temos à volta de 40 pipas de benefício e as uvas correspondentes são as únicas que entrego, como faz parte da lei. Tenho ficado com uma pequena parte – quatro pipas – para fazer Vinho do Porto. E temos conseguido fazer vinhos vintage. Fizemos em 2019, em 2020 e no ano passado. Em 2021 não fizemos Porto porque as uvas não tinham a qualidade que nós queríamos.
Fazemos tudo com as nossas pessoas – quatro, contratadas o ano todo. É muito difícil aqui arranjar pessoal. A ambição dos mais novos é irem para Sabrosa ou Vila Real, para viverem num prédio. E depois acho que não são ambiciosos. Vivem o dia a dia, todos têm legumes, as suas hortas, os seus frutos, os seus vinhos, seus azeites, um bocadito para eles.
Mas nós lá nos vamos arranjando. Nesta região somos todos pequenos produtores, pequenas quintas. No Douro Superior é que é necessário mais mão de obra intensiva – que é difícil de arranjar. O Douro tem 22 mil proprietários, mas destes há quatro ou cinco que são mega proprietários. E quase todos ingleses. Tenho pena que os portugueses continuem a abrir mão das coisas boas que temos na região.
Eu não gosto disto só pela viticultura. Eu sou citadino, mas vivo a aldeia, vivo as pessoas, vivo a gente. Gosto disto. Mas não quer dizer que me mude para aqui definitivamente. Às vezes, as pessoas pensam que eu vou viver em Provesende a minha reforma. Não é nada disso. Vejo-me a passar aqui dias da semana e semanas do mês, mas não vou viver permanentemente aqui. Quero viajar mais – seja em lazer, seja em negócios.
O nosso objetivo – meu e da Cláudia – é que a quinta seja sustentável. E de certa maneira temos conseguido. Não quero que ela seja uma dor de cabeça para os meus filhos. E quero, ao mesmo tempo, deixá-la a todos em conjunto, para manterem aqui uma ligação à terra.
“Para saber mandar a gente tem de saber fazer.”
Jorge Tenreiro
Cláudia Cudell, a artista plástica
Chamo-me Cláudia Cudell, sou artista plástica, formei-me em história da arte e trabalhei muitos anos na indústria têxtil. Quando conheci o Jorge, há 28 anos, já ele tinha este sonho bem definido. Dizia que queria ter uma quinta com vinhos de qualidade, uma coisa pequenina. E eu disse logo que sim. Eu sempre adorei o campo, prefiro o campo à praia. A minha família tinha uma quinta em Mirandela, onde passei imensos verões, fiz vindimas, apanhei e pisei uvas. Eu adoro a aldeia.
Quando vim pela primeira vez a Provesende, para os 60 anos do Francisco Pinheiro da Veiga, apaixonei-me logo por esta aldeia. Eu estava dedicada às artes plásticas, até fui tirar outro curso já velha, com três filhos. Mas também abracei este projeto. O Jorge lançou-me o desafio: “agora deixa lá as tuas pinturas e vai vender o nosso vinho”. E foi o que eu fiz. Estou dedicada a tempo inteiro à Quinta do Cume desde 2007, ano em que lançamos o meu primeiro vinho.
No início fazia tudo sozinha. Entregava, vendia, fazia provas de vinho no mercado nacional e lá fora. O nosso melhor mercado é a Suíça alemã. Trabalhamos com uma família de produtores que tem vinhas perto da cidade de Zurique, e que têm vinhos de todo o mundo. Temos crescido todos os anos com eles e com vinhos premium, o que é muito bom. O facto de eu falar alemão também facilita bastante, claro.
Lá fora uma pessoa julga que os vinhos portugueses são super conhecidos e não é bem assim. Ainda. É um trabalho que tem de se fazer, e que ainda é muito difícil. Em 2019 estive em 29 países. É muito país, muita viagem num ano só.
Entretanto, fomos crescendo. A vinha foi crescendo, a empresa também. Temos sinais de que a marca está a ganhar qualidade e reconhecimento. Tenho clientes, como chefes de sala e empregados de mesa, que me dizem que quando lhes chega um cliente do tipo difícil e pedem para experimentar um vinho, abrem um Quinta do Cume porque sabem que nunca fica mal.
Hoje já tenho duas pessoas a trabalhar comigo no departamento comercial. E não temos mãos a medir na nossa casa de provas. É uma casinha pequenina, sem luxos, no meio da vinha. Mas que tem tudo. Tem bons vinhos, pessoas simpáticas. Uma paisagem incrível. E acho que finalmente estamos a conseguir. As reviews têm sido fantásticas.
Eu já prometi a mim própria que vou voltar a ter tempo para as tintas e os pincéis. E já recomecei. Antes só fazia natureza mortas, agora estou decidida a fazer o mais difícil, que são rostos. Mas não estou a pintar em papel. Estou a aproveitar as madeiras, as tampas das caixas de vinho antigas, e estou a adorar.
Os meus dias agora são entre Provesende e o Porto. Gosto imenso de vir a Provesende sentir a natureza e, sobretudo, estar com esta proximidade da aldeia. À noite estamos na varanda, ouvimos o cão ladrar, a mulher a chamar o marido. Nós temos uma relação muito boa com as pessoas da aldeia. Sobretudo o Jorge, que, como médico, lá vai sempre arranjando tempo para umas consultinhas extra. Está sempre a ver as pernas de toda a gente, a avaliar as varizes.
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