Nasceu e cresceu nas quintas do Douro, interessa-se pela agronomia desde os 14 anos. Está à frente de um projeto vitivinícola e turístico na Quinta do Monte Travesso, propriedade que está na sua família desde que foi comprada por um bisavô, um dos fundadores da Casa do Douro. E é um entusiasta da vela que acumulou medalhas na juventude e ainda alimenta o sonho de dar a volta ao mundo. Eis o seu testemunho.
“A alma do Douro reinventa-se. E faz um trabalho extraordinário”
Chamo-me Bernardo Nápoles, nasci em Almacave, Lamego, há 46 anos e estou desde sempre muito ligado ao Douro e à vitivinicultura. Vivi, até aos meus nove anos, na Touça, em Vila Nova de Foz Côa. Foi lá que fiz a escola primária, era lá que os meus avós maternos produziam cerca de 600 pipas de vinho do Porto. Lembro-me de demorar sete horas para chegar ao Porto, no Land Rover do meu pai.
Depois viemos viver para Barcos, os meus avós paternos eram os proprietários desta Quinta do Monte Travesso. E quando vim para aqui já tinha uma idade diferente e percebi realmente que a vinha e o fazer vinho eram uma paixão. Então decidi ir para a Escola Agrícola de Santo Tirso, tinha 14 anos. Fui para lá fazer um curso técnico profissional, do 10º ao 12º. Era um curso bastante técnico e que me reforçou a sensação de “isto é o que eu quero”.
Depois avancei para a Universidade de Trás os Montes e Alto Douro, e apanhei uma geração na UTAD que, modéstia à parte, deu um contributo enorme para aquilo que o Douro é hoje em dia. Grandes enólogos saíram de lá, e pessoas mais da área da viticultura, como é o meu caso.
Mas foi um impulso muito grande que a UTAD deu com a minha geração, a par com desenvolvimentos também importantes, como o uso do inox que veio dar uma maior higienização nas adegas e os vinhos deram um salto qualitativo enorme.
Eu sempre tive trabalhos fora da quinta, desde que terminei o curso. Trabalhei com Mário Ferreira, no Solar da Rede [Mesão Frio], e actualmente convivo quase diariamente com o Paul Symington, ou com o Charles Symington – enfim, gente que me aporta muito e com quem eu vou procurando captar o que há de melhor em cada empresa.
Esta quinta tem muita história, está na família desde que o meu bisavô, um dos fundadores da Casa do Douro, a comprou. Mas a história da quinta era produzir uvas e vendê-las a casas exportadoras. A partir de 1996 começámos a fazer vinho de consumo com marca própria e eu estou à frente da Quinta do Monte Travesso como produtor e engarrafador de Vinhos e Azeite desde essa altura.
Entretanto, começamos a abrir ao turismo. Primeiro com turismo de habitação, disponibilizando dois quartos dentro de casa. Mas depois deixou de fazer sentido. Os meus pais já não tinham idade para estar sempre a receber, e depois os quartos estavam sempre ocupados e quase nunca estavam disponíveis para alugar.
Foi quando eu percebi que havia bastante movimento no Douro. A quinta tinha um potencial enorme e a ideia foi começar apenas por provas de vinhos. O primeiro investimento foi um frigorífico para ter os vinhos às temperaturas ideais, ter copos próprios para tintos e para brancos para os turistas provarem em boas condições. Pouco depois percebemos que tínhamos lugar para fazer refeições e depois para receber grupos em maior número.
Uma vez que o enoturismo estava a correr bem em termos de provas e refeições, e como havia ruínas aqui na quinta, pensamos em criar as casas de campo que agora temos abertas ao público. São casas exclusivas, quem as aluga é dono daquele espaço, é dono da sua piscina, do seu jardim… Frequentei muitos turismos rurais, e nunca gostei de ver as piscinas partilhadas, por exemplo. O Covid veio dar-me razão, e acho que para o nosso nicho de mercado esta exclusividade faz sentido. Tenho duas casas de campo abertas e tenho em projeto mais duas. Vamos ver se esta dinâmica continua – este ano está a correr bem, tivemos uma taxa de ocupação muito boa.
A casa mãe é visitável de forma muito exclusiva, nem toda a gente é convidada a visitar. Quando percebemos que realmente as pessoas têm interesse, os meus pais convidam a ir lá visitar. Uma das coisas que irei fazer é ter um espécie de hall de entrada junto da capela para que possa ser visitável por fora. Ideias não nos faltam. É isso que nos move. É ir sonhando.
Um dia bom para mim é ter um dia como o de hoje. Ver a casa cheia, com ocupação nas casas, ocupação nas refeições, gente a querer fazer provas, caravanas a chegar… É uma alegria. O dia de ontem também foi um dia bom: quando cheguei do trabalho estávamos a expedir cinco paletes para o Brasil, que é o nosso mercado principal e que nos compra regularmente. Eu vinha estourado, mas vi o camião a ser carregado e depois não consegui deixar de ir ao armazém e pôr as coisas à minha maneira.
Ainda me lembro como tudo começou. Eu era bastante reservado, muito tímido, quase dizia o nome da quinta a medo. As primeiras encomendas levava atrás do banco, duas caixinhas de cada lado, lá ia eu para o Porto entregar a uns pais de uns amigos. Depois consegui encher a parte de trás do carro e comecei a pensar… “ah! isto está a correr bem”. Depois enchia a mala do carro, mais as traseiras dos bancos, caixas ao lado, até que chegou a altura de levar uma palete, uma primeira grande conquista. Depois a primeira exportação, que também foi uma conquista gira.
Um dia estava a reservar um hotel em Lisboa para ir a uma feira e quando estava a dar o email ao rececionista e falei em quinta do Monte Travesso ele perguntou “Trabalha aí? Isso tem vinhos muito bons”. Foi um momento muito marcante para mim… pensei, isto afinal já vai sendo conhecido.
Portanto, isto não é nada do que as pessoas pensam, de que viver no campo é uma pasmaceira, perdoem a expressão. Não é verdade. Há dias loucos. Há dois anos, na altura de tratamento das vinhas, o meu dia era acordar de madrugada, ir para o trator, sulfatar até às 08h00, depois saía para o meu trabalho de Symington. Depois regressava ao fim do dia, voltava a ir para o trator, e depois, se fosse preciso, ainda ia tomar um banho e recebia algum turista que quisesse fazer uma prova…
O trabalho externo, por um lado, dá-me acesso a muita coisa que eu não teria se estivesse só na quinta. Dá-me a tranquilidade de ter um ordenado ao final do mês. Mas, honestamente, acho que chegará um dia em que estarei aqui a tempo inteiro. Mas para já ainda não é possível. O objetivo agora é consolidar o que temos. Sobretudo a marca. Temos que nos focar na qualidade, em todos os aspetos, quer dos vinhos, quer do turismo. No tempo dos meus avós, a quinta chegou a ter 60 hectares. Após as partilhas, o meu pai ficou com 12 hectares de vinha.
Somos uma quinta de pequena/média dimensão, mas que tem um bocadinho de tudo – tem vinhas velhas, tem vinhas ao alto, tem patamares, e até ainda tem pilheiros, que é uma coisa já muito pouco usual que nós ainda vamos tentando manter e preservar. Os pilheiros são videiras plantadas nos buracos das paredes e dos muros, para aproveitar todos os espaços.
Somos uma quinta pequenina, mas com várias coisas para mostrar e tem sobretudo muita história. A casa principal está carregada de história, tem várias histórias e o meu pai adora contá-las… Eu digo que a casa é um pequeno museu. Entre essas histórias está o meu passado desportivo, e os meus pais guardaram tudo o que ganhei e se publicou nos tempos que eu andava na vela.
Fui velejador desde miúdo. Eu era muito medricas no início, nem sequer sabia nadar. Apanhei um professor que dizia, “olha lá, quando vais andar de avião, sabes voar? Então quando vens andar de barco também não precisas de saber nadar”. Foi para me tirar o medo. E eu comecei muito medroso. Aprendi a nadar, obviamente. E fiquei a adorar a vela.
O bichinho da vela foi crescendo e cheguei a ser campeão nacional e vice-campeão da Europa. Mas a primeira grande concretização que tiro é olhar para trás e ver que eu era um miúdo e que sozinho, ia e vinha, de comboio. Entrava na Régua e saía em São Bento. Subia até aos Clérigos, apanhava o 76 ou 44 e lá ia até Leça da Palmeira.
Tudo isso me deu muita maturidade. Hoje em dia os miúdos com essa idade, e que é a idade que têm os meus filhos, são muito pouco independentes. Se calhar será um bocado culpa da minha geração que, enquanto pais, os super-protegemos. Mas essa vivência que eu tive na vela abriu-me os horizontes e capacitou-me para outras coisas.
O certo é que depois me afastei bastante da vela por causa da quinta. Ultimamente estou a retomar, mas numa versão mais lúdica. Fiz o meu curso de patrão de costa e quero continuar a fazer mais formação. O objetivo é mesmo ter um barco, começar a fazer a costa portuguesa, ir para o Mediterrâneo. Mas gostava mesmo de cruzar o Atlântico e um dia fazer a volta ao mundo.
O importante é ter sonhos. Aqui, na quinta, estamos a atingir um ponto muito interessante de procura. Mas todos nós temos que o saber aproveitar da melhor maneira, não podemos embandeirar em arco e querer algarvizar isto. Eu não quero encher isto de autocarros, não quero massificar. Quero ter aqui as minhas casinhas de campo, ter os meus grupos restritos e recebê-los da melhor maneira possível. A região é linda, mas não pode estar aqui cheia de gente, senão perde o interesse, perde este romantismo. Perde a alma do Douro.
Na minha visão, a alma do Douro é a resiliência. As pessoas às vezes parecem um carrossel. Há alturas em que está tudo a correr muito bem. Depois, no final da vindima parece que há um desânimo. Ou pelo tempo, pelas adversidades ou pela dureza da região. Mas depois a alma do Douro reinventa-se e fica novamente entusiasmada, quer levar isto para a frente. E faz trabalho extraordinário.
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