Nasceu no Algarve, cresceu em Barcos, estudou até ao 12º ano em Tabuaço. O acaso levou-a a experimentar trabalhar na Junta de Freguesia de Barcos como funcionária administrativa. Está à frente do Espaço do Cidadão da freguesia, onde ajuda os habitantes mais idosos a resolver todo o tipo de problemas. E faz-lhes companhia quando é preciso. Eis o seu testemunho.
“As pessoas da aldeia são a minha família, independentemente de haver ligação de sangue ou não”
Sou a Joana Guedes, tenho 27 anos e nasci no Algarve. Mas nasci lá por acaso, porque os meus pais trabalhavam lá. A minha família materna é toda daqui de Barcos, e a do meu pai é de uma freguesia vizinha. A minha mãe foi trabalhar para o Algarve ainda bastante nova. O meu pai também. Eles viviam e trabalhavam lá, e entretanto eu nasci.
Voltamos para cima um pouco por minha causa. Os meus pais não tinham horários para estar a tomar conta de mim. Trabalhavam na restauração, num café, dia e noite. Então arranjar ama, pagar ama e creche tornou-se um bocado complicado. Por insistência da minha avó, acabámos por vir para cá. “Eu tomo conta da Joana e vocês aqui também conseguem arranjar trabalho fácil nessas áreas”, dizia a minha avó. Acabou por ser assim. Depois o meu pai emigrou. Não lembro do meu pai sem ser emigrado.
Como vim para Barcos com menos de quatro anos de idade, eu digo sempre que sou daqui. Os primeiros meses ainda estivemos em Tabuaço, mas depois mudamo-nos logo para Barcos. Era aqui que estava a minha avó. Eu andei aqui na escola primária, mas a partir do quinto ano fui estudar para Tabuaço. Mas a minha casa foi sempre aqui.
Estudei até ao 12º e, quando acabei o meu secundário, lembro-me de querer um curso à base da saúde, era para esse lado a minha vocação. Entretanto, faltava-me fazer uma disciplina, e fiquei durante um ano só com essa disciplina para fazer. Participava em algumas aulas externas, mas sobrava muito tempo livre. Entretanto, arranjei um trabalho em Tabuaço. Estive a trabalhar num salão de cabeleireiro, e gostei muito da profissão em si. Mas fiquei com um problema de saúde relacionado com a profissão e acabei por ter que parar obrigatoriamente. Foi quando fiquei desempregada, e vim parar à Junta quase por acaso.
Foi numa conversa de café, literalmente. O senhor presidente comentou que estava a precisar de gente aqui nesta parte de baixo da aldeia. E eu disse-lhe que se ele precisasse de algum serviço eu o podia fazer sem problema nenhum, porque agora tinha tempo, até estava desempregada. E foi assim. Fiz uma candidatura ao centro de emprego, até para ver como é que me adaptava. Depois correu bem, foi sempre a correr pelo melhor e acabei por ficar.
Inicialmente a Junta não tinha esta dinâmica toda. Mas como eu passava aqui o dia todo, acabámos por aproveitar melhor esse tempo. Como a nossa população é maioritariamente idosa e são pessoas que quase sempre vivem sozinhas, acabamos por perceber que conseguiríamos ajudar nesse ponto.
E eu ajudo em tudo. Desde o “Joana o meu telemóvel não funciona – OK, venha aqui que eu vejo” até passar atestados de residência e fazer pagamentos de tudo o que sejam despesas. O objetivo é evitar que elas tenham que se deslocar.
Imagine uma pessoa que precisa de pagar uma conta da luz. As pessoas mais idosas não funcionam com débitos diretos, têm que pagar tudo a dinheiro e tudo à mão. E para isso tinha de se deslocar a Tabuaço, que ainda são uns quatro quilómetros daqui. Muitos não têm como se deslocar, teriam de pagar transportes.
O facto de ter aqui este serviço faz com que não tenham que passar por isso. Eles fazem aqui tudo, pagar a luz, o telefone, renovar cartas de condução, tirar licença de caça. Somos uma loja do cidadão e fazemos tudo o que é preciso. Buscar medicação, marcar consultas… tudo aquilo que eu consiga fazer aqui, é feito.
São várias pessoas que procuram estes serviços. Dezenas. Até porque tenho bastante gente sem ser daqui de Barcos. Do concelho todo – tenho muita gente das várias freguesias. Portanto, este Espaço de Cidadão já não é só da aldeia de Barcos. Inclusive, posso dizer que já há bastante gente fora do município, inclusive de São João da Pesqueira, que vem cá para renovar cartas de condução.
Sempre gostei de papeladas e trabalho administrativo. Mas nunca tinha feito nada deste género. Mas realmente o que fiquei a gostar mais daqui é toda a interação que tenho com as pessoas. Estas minhas velhinhas tratam-me muito bem. Melhor é impossível. Num sítio destes, e numa aldeia destas, nunca existe só a relação de trabalho. É impossível. Acaba sempre por haver amizades.
Muitas das vezes sentam-se aqui, eu estou a trabalhar, e eles a falar e eu a ouvir…. estão a falar, desabafam e falam daquilo que têm de falar. E eu oiço e falo com eles. Porque também é muito preciso essa parte, porque maioritariamente são pessoas que estão muito sozinhas. Por isso, faço uma espécie de trabalho administrativo, de assistência social, de psicologia….
A parte difícil é que toda a gente se conhece. É um meio muito pequeno. Às vezes há problemas, como em todo o lado, mas tudo acaba por se resolver. As pessoas têm um bom fundo, digamos assim. Há aqueles problemas de aldeiinha… mas tudo se resolve. Não é nada de muito grave.
Não era nada daquilo que eu ambicionava, nem nunca pensei em fazer isto. Mas não estou arrependida. Estou a gostar do que faço. Completamente. Imagino-me facilmente a ficar aqui muitos anos, junto das “minhas velhinhas”. E eu estou aqui por sorte, é que é mesmo assim. Da minha geração são poucos os que estão aqui em Barcos, os que conseguiram ficar. Muitas pessoas estão a ser obrigadas a sair, infelizmente, porque não há emprego. O tipo de trabalho que há aqui não nos dá muita segurança, não nos dá estabilidade.
Eu sempre pensei que também me ia acontecer a mim, ter de emigrar. Por isso digo que tive sorte. Eu tenho um pai que desde que me lembro de ser gente está emigrado. A minha mãe neste momento também é emigrante, e estou cá sozinha com o meu irmão mais novo, que tem 21 anos.
Mas sempre pensei que pudesse ter de ir. Não era uma coisa que eu queria, emigrar. Mas se tivesse de ser…. Portanto, eu estou aqui, gosto de estar aqui, gosto de viver aqui. Apesar de haver falta de muita coisa aqui à volta. Mas eu tenho noção que consigo ter um estilo de vida que não conseguiria ter numa cidade, por exemplo.
E o melhor de tudo é mesmo a ligação que aqui existe entre toda a gente. Tem as suas partes más, mas também tem muitas partes boas. Aqui nunca estamos sozinhos. É impossível estar sozinha. Eu estou cá com o meu irmão, praticamente pouca família tenho cá… No entanto, a aldeia é a minha família. Essas pessoas são a minha família sempre, independentemente de haver ligação de sangue ou não. São pessoas com quem se pode contar sempre… e depois é a paz que existe aqui e que não existem mais lado nenhum.
Às vezes a paz até é demais. Uma jovem de 20 e poucos anos acaba por não fazer grande coisa em Barcos. Mesmo em Tabuaço está difícil. Hoje em dia, ir a um café à noite está difícil porque quase não os há. As pessoas juntam-se num grupinho, num café. E ficamos lá duas, três horas, a falar e a comer e a beber. Não vai muito além disto.
Mas isto é também o que eu gosto e o que eu preciso. A minha vida aqui é casa, trabalho, trabalho, casa. Ginásio também. Mas eu, conseguindo fazer bem o meu trabalho, para mim já é ótimo.
Os meus dias são muito iguais mas muito diferentes. Durante o dia vai acontecendo de tudo um pouco. Tenho clientes que, por exemplo, estiveram aqui uma vez em alguma altura do ano, e já sei que, cada vez que vêm cá a Portugal, um dos primeiros sítios onde vêm é aqui a Barco, para me dizer um olá, para me trazer alguma coisa ou um chocolatinho da Suíça… seja o que for. Isso dá-me gosto, porque acabo por perceber que faço bem o meu trabalho e que as pessoas gostam de vir aqui.
Eu não faço muitos planos. Sou sincera. É um dia de cada vez e o que tiver que ser… é. Para já estou bem aqui, estou ótima. E, àquilo que eu vejo, apesar de estar num meio destes e de não ter tanto acesso a muita coisa, tenho uma estabilidade que se calhar muitos meus colegas não têm. Eu tenho um trabalho que me faz feliz, e que é um trabalho para ficar enquanto eu quiser cá ficar. Literalmente é isso. E acabo por não pensar muito em mais nada.
Faço algumas viagens, faço muitas caminhadas, um dos meus hobbies é ir fazer trekkings com um grupo de amigas, vamos para todo o lado. O último foi aos Picos da Europa – eu não pude ir porque tínhamos aqui a Festa das Vindimas. A próxima viagem será a França, para passar o Natal com os meus pais. Para eles, como trabalham na restauração, é a altura do ano em que têm mais trabalho – eles não conseguiriam vir e, se queremos estar juntos, eu e o meu irmão temos de ir ter com eles. E assim faremos.
Mais sobre Barcos
Barcos, a aldeia que é uma família
Podia haver uma linha a dividir a freguesia de Barcos, entre a parte alta da aldeia, onde as casas são novas e grandes, e a parte de baixo, onde fica o centro histórico e reside uma população maioritariamente envelhecida. Mas a abertura de um Espaço do Cidadão atenuou essas linhas, e hoje a velha Aldeia Vinhateira de Barcos é um centro de convívio ao ar livre, onde se relatam memórias e se costuram afetos.
O que fazer em Barcos (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Barcos, no concelho de Tabuaço (Viseu). Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, quintas no Douro e passeios -, onde ficar hospedado e os melhores restaurantes.
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Nasceu em São João da Pesqueira há 47 anos, mas já passou mais de metade da vida em Barcos, a aldeia a que chegou, por casamento, há 25. É trabalhador agrícola nas quintas da região, mas todos os tempos livres são dedicados ao artesanato em estanho, arte que descobriu por acaso e que o apaixona há 15 anos.
Bernardo Nápoles, o viticultor velejador
Nasceu e cresceu nas quintas do Douro, interessa-se pela agronomia desde os 14 anos. Está à frente de um projeto vitivinícola e turístico na Quinta do Monte Travesso, propriedade que está na sua família desde que foi comprada por um bisavô, um dos fundadores da Casa do Douro. E é um entusiasta da vela que acumulou medalhas na juventude e ainda alimenta o sonho de dar a volta ao mundo.
Maria da Conceição Valério, a cicerone
Refere-se a Barcos e à sua aldeia como “o buraquinho” de onde nunca quis sair. Com 70 anos de idade, diz que os diabetes lhe tiraram a visão e as dores nos pulsos quase não a deixam trabalhar. Mas é uma das mais ativas entre as moradoras no casco histórico da aldeia vinhateira de Barcos.