Refere-se a Barcos e à sua aldeia como “o buraquinho” de onde nunca quis sair. Com 70 anos de idade, diz que os diabetes lhe tiraram a visão e as dores nos pulsos quase não a deixam trabalhar. Mas é uma das mais ativas entre as moradoras no casco histórico da aldeia vinhateira de Barcos. Eis o seu testemunho.
“Não sei falar nenhuma língua, mas não deixo nenhum turista ficar perdido”
Chamo-me Maria Conceição Valério, tenho 70 anos e toda a gente me conhece por São. Até o senhor padre, que já cá está há muito ano, não me chama Maria da Conceição. Sou só a São, para toda a gente. E chega. Eu nasci aqui nesta casa, e vivi sempre aqui. Só quando casei fui ali para baixo, para outra casa. Mas depois os meus pais morreram e os meus irmãos quiseram vender, eu comprei e vim para aqui.
Éramos sete irmãos, e três deles já morreram (dois rapazes e uma rapariga). Agora estamos vivos quatro, mas em Barcos só estou cá eu. Tenho uma irmã em Aveiro, outra na Pampilhosa da Serra e outra em Pinheiros, aqui mais pertinho [Tabuaço]. Mas eu fui a única que fiquei aqui. Eu e o meu marido, que também é daqui de Barcos. Começamos a namorar aqui, nos bailes e nas festas. E cá estamos, com três filhos e três netos.
Vivi sempre na minha aldeia. Trabalhei no campo, limpava as casas de pessoas, fazia de tudo. Estive muitos anos a trabalhar para um senhor que era tio de uma prima minha – esfregava o chão, lavava a roupa, fazia tudo. Foi por isso que também me pus assim, não tenho força nos pulsos. Já fui operada aos dois, mas isto não ficou bem.
Quando era novita também era eu quem esfregava o chão da igreja. O chão era todo de madeira. Era a minha avó que enfeitava e punha flores, que tocava o sino para chamar para rezar, e ela mandava-nos deixar o chão num brinquinho. Lavávamos a roupa nos tanques públicos.
Lá em baixo, junto ao pelourinho, na Fonte Velha, nunca faltou água. Mais aqui em cima, nestes lavadouros públicos que a Junta fez aqui no centro da aldeia, também havia muita, mas este ano até a mandaram fechar que a agua é pouca. E hoje quase todos lavam a roupa em máquinas de lavar.
Trabalhei muito, agora já não tenho muitas forças. Vou andando por aqui e por ali, a fazer as coisas de casa. Mas o almoço ainda é a minha filha que mo traz, a mim e ao meu marido. Eu ando é sempre a ver por onde andam os meus vizinhos, os mais velhinhos.
Estou sempre preocupada com um que tem Alzheimer, e já fui dar com ele a ir por aí fora, lá para baixo para o lugar da Forca, às vezes nem sabe para onde vai. Há sempre muitos velhinhos que se juntam aqui no largo – e que é muito perto da minha casa – e eu gosto de me juntar a eles.
E, claro, também gosto de ajudar os turistas que aparecem por aqui, à procura disto e daquilo. Eu não sei de onde vêm, nem sei que língua falam. Mas se percebo que andam, por exemplo, à procura da Casa da Roda, eu digo-lhes ‘sigam-me’. E eles seguem-me, e eu mostro-lhes onde está. Mostro-lhes a igreja, levo-os ao pelourinho (já não há pelourinho, só há o lugar)… eu falo português e eles não, mas com os meus gestos eles lá me entendem.
Mas agora até já nem vejo muito bem. Aliás, não vejo quase nada. Eu usava óculos e operaram-me às cataratas, e dizem que já não posso usar. Mas agora deve ser dos diabetes que eu mal consigo ver. Mas anda tudo controlado, a picar o dedo sempre que as meninas vêm aqui.
Os meus dias são passados aqui na aldeia, junto com os meus amigos. Tenho três filhos – uma filha está emigrada na Suíça, vai fazer 50 anos em fevereiro e tem uma filha de 18 anos. Ela comprou uma casa em Tabuaço, mas ainda está pela Suíça, a trabalhar.
Os outros dois filhos vivem cá em Barcos, mas não é aqui na aldeia vinhateira. Tem casa lá em cima, no chamado Bairro Novo. Uma filha alugou uma churraqueira na vila e está lá a trabalhar. O meu filho trabalha nos camiões do lixo, há já muitos anos.
Eu nunca quis sair daqui. Aliás, se for visitar as minhas irmãs, a Aveiro ou à Pampilhosa, chego lá e estou morta por me vir embora. Eu gosto mesmo é de estar no meu buraquinho. Só tenho pena que agora já não venha o autocarro com turistas que vinha cá todos os dias, antes da pandemia. Agora vêm cá muitos menos. Mas lá chega um ou outro para o alojamento local que fica em frente a minha casa, e eu gosto sempre de os ajudar.
O que eu gostava era que viesse cá mais gente à nossa aldeia. Então ela não é tão bonita? Há muito para ver. E eu tenho todo o gosto em mostrar.
Mais sobre Barcos
Barcos, a aldeia que é uma família
Podia haver uma linha a dividir a freguesia de Barcos, entre a parte alta da aldeia, onde as casas são novas e grandes, e a parte de baixo, onde fica o centro histórico e reside uma população maioritariamente envelhecida. Mas a abertura de um Espaço do Cidadão atenuou essas linhas, e hoje a velha Aldeia Vinhateira de Barcos é um centro de convívio ao ar livre, onde se relatam memórias e se costuram afetos.
O que fazer em Barcos (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Barcos, no concelho de Tabuaço (Viseu). Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, quintas no Douro e passeios -, onde ficar hospedado e os melhores restaurantes.
Joana Guedes, a “menina da Junta”
Nasceu no Algarve, cresceu em Barcos, estudou até ao 12º ano em Tabuaço. O acaso levou-a a experimentar trabalhar na Junta de Freguesia de Barcos como funcionária administrativa. Está à frente do Espaço do Cidadão da freguesia, onde ajuda os habitantes mais idosos a resolver todo o tipo de problemas. E faz-lhes companhia quando é preciso.
Fernando Barradas, o presidente da Junta
Foi emigrante durante mais de 20 anos, em Israel e na Suíça. Casou com 17 anos, há 48. A mulher é o braço direito, e diz que os moradores da aldeia são a sua família. Ter criado um Espaço do Cidadão onde se presta todo o tipo de serviços aos mais idosos é um dos seus maiores orgulhos. Está a cumprir o último mandato que a lei permite como presidente da Junta de Freguesia de Barcos.
Alexandre Mouco, o artesão do estanho
Nasceu em São João da Pesqueira há 47 anos, mas já passou mais de metade da vida em Barcos, a aldeia a que chegou, por casamento, há 25. É trabalhador agrícola nas quintas da região, mas todos os tempos livres são dedicados ao artesanato em estanho, arte que descobriu por acaso e que o apaixona há 15 anos.
Bernardo Nápoles, o viticultor velejador
Nasceu e cresceu nas quintas do Douro, interessa-se pela agronomia desde os 14 anos. Está à frente de um projeto vitivinícola e turístico na Quinta do Monte Travesso, propriedade que está na sua família desde que foi comprada por um bisavô, um dos fundadores da Casa do Douro. E é um entusiasta da vela que acumulou medalhas na juventude e ainda alimenta o sonho de dar a volta ao mundo.