Foi emigrante durante mais de 20 anos, em Israel e na Suíça. Casou com 17 anos, há 48. A mulher é o braço direito, e diz que os moradores da aldeia são a sua família. Ter criado um espaço do cidadão onde se presta todo o tipo de serviços aos mais idosos é um dos seus maiores orgulhos. Está a cumprir o último mandato que a lei permite como presidente da Junta de Freguesia de Barcos e tem um recado para deixar ao seu sucessor: quem vier para o cargo “só para ser o presidente” não estará a fazer um bom serviço. Eis o seu testemunho.
“O nosso esforço vê-se refletido na cara das pessoas”
Chamo-me Fernando Barradas, tenho 65 anos, e estou à frente da Junta de Freguesia de Barcos há quase 15 anos. Estou a cumprir o meu último mandato à frente da Junta, não me posso candidatar mais nenhuma vez. Mas gostei muito daquilo que fiz, e do que faço. E sei que vou deixar uma marca na freguesia, na minha aldeia.
Nasci aqui em Barcos, mas a minha mãe faleceu quando eu tinha cinco meses. Fui criado com uma avó até aos 11 anos e, nessa altura, fui para junto do meu pai e da minha madrasta, de quem não tenho nada que dizer. Tratou-me como tratou os filhos dela. Casei muito novo, tinha 17 anos – e a minha esposa tinha 15. Começamos a namorar e passado uns tempos começou-lhe a barriga a crescer. Entendi que isso ia ser o jornal da caserna aqui na aldeia, e eu assumi desde a primeira hora. Calhou não ser um fracasso. Estamos casados há 48 anos, temos dois filhos, uma na Suíça e um no Porto.
Quando casei fui viver com a mãe da minha esposa. [Ela] foi a minha segunda mãe. Esteve comigo na Suíça 14 anos, levei-a comigo, ajudou-nos a criar os nossos filhos. Trabalhámos muito, eu e a Graciete. Antes de ir para a Suíça ainda estive em Israel, a trabalhar no deserto do Ngev, numa base americana, quase três anos. Depois quando voltei, fomos para a Suíça – e estivemos lá 20 anos.
Eu trabalhava na construção, a minha esposa numa empresa de limpeza, depois numa fábrica americana. Trabalhámos muito, fazíamos limpezas em restaurantes depois do horário de trabalho. Enfim, governamos a nossa vida para hoje estarmos bem aqui na nossa terra. Compramos duas casinhas, abrimos um café na aldeia – agora está fechado, desde a pandemia.
Eu estou na Junta quase desde que regressei, em 2001. Quando cheguei recebi logo o convite, por parte do presidente da Câmara dessa altura, para fazer parte da Assembleia de Freguesia. Eu fui à reunião e pensava em assinar a lista para a Assembleia, mas não pensava em fazer parte. Eu tinha um estabelecimento, levava muitas horas de trabalho e achava que não tinha tempo para ir para a Junta e que nem estava habilitado. Insistiram muito, e eu dizia que não podia dar resposta porque foi em cima do joelho; não podia estar a aceitar uma coisa sem falar com a minha esposa, com os meus filhos.
Acabei a concorrer com duas listas. Foram eleições disputadas, ganhei por 35 votos. Mas a política não me traz muitos dissabores. Tentei sempre ter este entendimento: somos todos da mesma terra, não vamos arranjar aqui inimizades. Passam as eleições, passam as inimizades da política, têm de morrer ali. Nós já somos poucos. Se vamos andar aí de cara virada uns com os outros, então que seria…
Mas não é sempre fácil. Ter uma porta aberta, como eu tinha, um café, e estar ao mesmo tempo na política era mesmo muito difícil. De qualquer maneira não me estou a queixar, porque eu não quero ser só o presidente da Junta, eu quero ser o presidente que trabalha para as pessoas. Porque o trabalho que nós fazemos espelha-se na cara das pessoas, e é isso que me orgulha.
Aqui em Barcos podemos dizer que a freguesia se divide. Do meio para cima são casas grandes, o chamado Bairro Novo, toda a gente tem um carro ou dois. Do meio para baixo, na aldeia histórica, com as ruas estreitinhas e as casas antigas, quase só vivem velhinhos. Foi a pensar neles que abrimos o Espaço do Cidadão. A Junta tem um salão grande, aqui na zona de cima. Mas eu achava bem que se conseguisse ter sempre um espaço aberto para ajudar as pessoas no que elas precisassem, mas lá em baixo, onde estão quase todas sozinhas e são todas de muita idade.
Chegaram a dizer que eu era doido, e eu respondi sempre que desde que chegue ao dia 20 e tenha dinheiro para pagar os salários das três pessoas que tenho a trabalhar na Junta, não estou preocupado com mais nada. O meu objetivo não é ter dinheiro no banco. É ajudar as pessoas.
Com este espaço aberto, ninguém precisa de sair daqui para renovar cartão de cidadão, carta de condução, carta de caçador, uso porte de arma… A Junta agora está lá em baixo; e cá em cima, no salão, há um espaço para festas, reuniões, enfim, o espaço é cedido sempre que alguém precisa dele. E é cedido, não cobramos dinheiro, porque aquilo é da Junta e a Junta é o povo.
Isto é o que eu penso, e acho que as pessoas estão comigo. Tenho sempre muita gente a participar nas iniciativas que organizamos e isso deixa-me feliz. Ainda agora, na Festa das Aldeias Vinhateiras, organizei uma caminhada solidária, mandamos vir 200 t-shirts e vendemos tudo, não sobrou uma para ninguém. O objetivo era mandar para a Liga Portuguesa Contra o Cancro 800€, mas conseguimos angariar 1.100€.
Eu preocupo-me muito com o bem estar dos idosos que aqui vivem. Muitos deles nem vão votar, mas não é por isso que não devem ser apoiados, ajudados. Uma criança toda a gente beija e acaricia… mas um idoso nem toda a gente respeita. E isso impressiona-me. Eu estou sempre a pensar neles. Eu também para lá caminho e não demoro muito a lá chegar. Também tenho sorte com a menina que lá está. É uma pessoa muito útil, responsável, amável… Já está nos quadros da Junta.
Outra coisa importante foi o trabalho que fizemos nas aldeias vinhateiras, ver estas casas todas recuperadas deixa-me muito satisfeito. Não conseguimos fazer tudo o que queríamos, houve casas que não conseguimos recuperar… fui eu que andei de porta em porta a assinar contratos com as pessoas, e graças a Deus correu bem. Correu um bocadinho mais mal para mim, porque houve muita queixa. Não nos podemos esquecer que a rua estev fechada durante oito anos… não vinham os carros cá para baixo. Foi um bocado complicado.
Eu faço o possível para ter tudo direitinho e arranjadinho. Tenho casas de banho públicas, um posto de carregamento elétrico, lavadouros comunitários, uma mina de água (e não cobro por isso), um sistema de recolha de resíduos… tento aproveitar todas as oportunidades que surgem. Não falta nada nesta aldeia. Graças a Deus, não.
As meninas ajudam-me a descobrir estas oportunidades, concursos, candidaturas. A do posto do carro elétrico conseguimos com o Fundo Ambiental. O telhado da igreja pedimos de contrapartida à REN, quando precisou de mexer nuns postes de alta tensão. E eu quando pressinto que há oportunidades, quando pesco alguma coisa depois já não os largo.
Tenho de andar sempre atento, porque nós, do Orçamento de Estado, recebemos 10 mil euros de três em três meses. Tenho salários para pagar e só em limpezas e manutenção de caminhos vai-me o dinheiro. Eu sou um leigo, não estudei. Admiro muito quem sabe lidar com as coisas, e quem é inteligente. Eu não sou, não sou, mas faço. No que me diz respeito a mim, não me deixo ultrapassar por ninguém.
E eu estou aqui para isso. Não estou aqui só para dizer que sou o presidente da Junta. Não sou mais nem menos que os outros. Se tiver que vestir um fato e por uma gravata, também sei pô-la no seu devido lugar. Agora no meu ambiente familiar, no meio daqui da aldeia, porque é um ambiente familiar, eu conheço toda a gente e toda a gente me conhece a mim, eu sou essa pessoa. Não sou outra pessoa, não tenho outra postura, não tenho.
Fui criado numa família muito pobre, muito humilde, e eu sou sempre a mesma pessoa. Para mim não muda nada. Até pelo contrário, sinto melhor o apoio de quem é pobre e de quem tem necessidades do que ao pé de muita gente que está bastante bem de vida.
Ainda tenho algumas coisas para fazer aqui na freguesia, antes de me ir embora. Mas sei que já posso fazer um balanço positivo. Não me estou a comparar com ninguém, e compreendo que não agradei a toda a gente e que às vezes até fui insultado. Mas vivi aqui muitas alegrias.
A Festa das Aldeias Vinhateiras foi um sucesso; nas marchas, a nossa é sempre a mais bonita. E eu tive a felicidade de ter uma mulher que, se eu gosto, ela gosta ainda mais – e isso ajuda muito. E o grupo de pessoas que está à nossa volta ajuda muito a fazer essas coisas todas.
Como vai ser a minha vida, depois da Junta? Vou ocupar-me dos meus terrenos e depois vou descansar também. Vou dar uma volta com a minha esposa, que somos só os dois aqui. Dar uma volta com a minha esposa e também depois tenho quase 70 anos. Estar com os meus netinhos, ir de férias, fazer o que agora não tenho tempo para fazer…
Acho que uns 75% das pessoas desta freguesia não terão a mínima coisa a dizer de mim. Alguns poderão dizer que não fiz isto ou aquilo. Faria mais? Para ser honesto, faria se tivesse como. Mas não tenho. Na nossa terra diz-se que não se faz morcelas sem sangue. Mas foi um esforço que valeu a pena. E digo a quem tiver ideia de ir para a Junta de Freguesia que tem de se dedicar à freguesia. Porque se vem para cá para ser só o presidente de Junta não vai fazer um bom trabalho. O nosso esforço vê-se refletido na cara das pessoas.
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