Filho de professores primários que andavam com a casa às costas, tornou-se um deles e instalou-se em Salzedas, onde ocupou muitos cargos e funções. Assinou um livro de recolha das tradições e cantares, e impulsionou os encontros de janeiras para chamar a atenção para a degradação do mosteiro. Com quase 80 anos de idade, é um homem respeitado. Eis o seu testemunho.
“Todos gostam de mim e eu também gosto de todos desta terra”
Chamo-me António Almeida, nasci há 78 anos, no dia 26 de dezembro de 1943. Os meus pais eram professores primários, como eu. E como já hoje vai acontecendo, também naquele tempo os professores andavam de terra em terra. Por isso somos dez filhos e quase um de cada lado – só os últimos três é que nasceram em Vila Nova de Foz Côa, onde os meus pais se radicaram finalmente.
Quando foi da aposentação, vieram acabar na terra onde eu nasci – aqui na Granja Nova, mesmo ao lado de Salzedas. O meu pai é de lá. Eu e mais outro irmão, também; nascemos lá porque na altura do parto era altura de férias.
Tirei o meu curso de magistério público na Guarda e no primeiro ano fiquei em Sedovim, Foz Côa. Tentei efetivar-me, consegui ao fim de um ano, e fui para Santiago de Figueira, em Amarante. Estive lá um ano e, no fim desse ano, quando era para concorrer, já tinha assentado praça nas Caldas da Rainha, para fazer a tropa.
Mas concorri para Salzedas, onde tinha aberto uma vaga, e tinha a vantagem de ter uma escola masculina. Nesse tempo, nas terras onde havia mais de 30 meninos não se misturava o masculino com o feminino. Só quando havia menos de 30 crianças é que as escolas eram mistas, e nas mistas só uma senhora é que podia dar aulas. Eu candidatei-me, entrei e escrevi uma carta para Viseu, a dizer que ficava aqui mas só tomaria posse quando acabasse a tropa.
Primeiro estive nas Caldas a fazer recruta, fiz a especialidade em Leiria, no RAL4, depois fui para Paço de Arcos tirar a especialidade de auxiliar de testador; e, porque fiz lá um jeitinho a um colega que era professor aqui em Alijó, fui apanhado e mobilizado para o Ultramar. Fui para a Guiné-Bissau, felizmente num barco de carreira.
Saí no dia 10 de junho, estava o Américo Thomaz a fazer as continências e cerimónias na Praça do Comércio, e eu a entrar no Rita Maria para ir para a Guiné. Foram dez dias em cima de água, mas felizmente dez dias de festa – passámos lá o Santo António, ainda fomos a Cabo Verde.
Estive na Guiné dois anos, regressei de vez em maio de 1968 e tinha o lugar em Salzedas à minha espera. Mas primeiro fui até Vila Nova de Foz Côa ver os meus pais e houve lá uma senhora que começou a conversar com o meu pai, e que quando soube que eu viria para Salzedas me deu os parabéns e me avisou que isto aqui era uma terra formidável.
Disse-me: “têm uma banda de música conhecida por todo o lado, têm lá um mosteiro com uma igreja muito bonita, uma igreja bem maior do que esta que temos aqui em Foz Côa. E se nós aqui temos a amendoeira muito bonita, em Salzedas há outra flor, a do sabugueiro, que ainda tem um odor, um cheirinho muito mais agradável do que o nosso… Têm lá muitos sabugueiros, devem beber muito chá, faz muito bem às constipações e gargantas, por isso eles cantam muito bem”.
E eu vim para aqui, comecei com os meus alunos, tinha as quatro classes… e as crianças realmente cantavam muito bem, aprendiam com facilidade, e se calhar a culpa é do sabugueiro, porque quando está em flor, e mesmo depois quando é em baga, o xarope da baga de sabugueiro é muito bom para as vias respiratórias e para afinar as vozes.
Eu fui-me integrando nas atividades da povoação. Quando estava em Salzedas há um ano e pouco ainda pensei em concorrer para Moimenta ou para Lamego, que me avisaram que ia haver vaga. Mas como já namorava com a minha mulher, e ela era daqui, resolvi ficar. E aqui estamos há já 54 anos.
Temos três filhos, cinco netos, e estamos os dois reformados. Salzedas é um sítio de que gostamos muito. Os meus filhos foram criados aqui, andaram na banda, a mais velha tocava trompete – e tocou muitas vezes órgão na igreja. Os dois rapazes também tocaram: um fiscórnio, outro clarinete. Depois os estudos levaram-nos para outras paragens, mas não há dúvida de que a banda é uma escola de cultura que há necessidade de preservar e até, se possível, de melhorar.
Se pensarmos bem, isto vem do tempo dos monges. Havia a banda para ajudarem nos cânticos, nas cerimónias do mosteiro. Começou com um grupinho de sopro e depois foi aumentando, e temos uma banda que, se Deus quiser, vai celebrar 200 anos. Salzedas é uma terra de cultura e isso vê-se também nos cantares das janeiras. Começarmos a fazer aqui os encontros de janeiras – já vai para as 40 edições! – foi muito importante para chamar a atenção desta terra e da degradação em que estava a nossa igreja e o mosteiro.
Eu ainda cá não estava a viver há um ano e fui chamado para a Junta de Freguesia. Na altura ainda não havia eleições, os que lá estavam convidaram-me. Eu aceitei na condição de não ser o presidente. Fiquei como secretário, fazia todo o serviço burocrático que era necessário. O 25 de Abril aconteceu e, nas primeiras eleições, em 1976, candidatei-me a presidente e venci.
Foi logo nessa altura que fomos a vários lados chamar a atenção para a degradação do nosso mosteiro, e para os claustros que já ameaçavam ruir. Fui à Câmara Municipal, fui ao Museu de Lamego, ninguém tinha verbas. Na altura, o diretor do Museu de Lamego era Abel Flórido, que tinha sido meu professor de História no colégio em Lamego. Ele dizia que a solução era pedir à escola de artes e arquitetura para mandarem alguém fazer um projeto para, no caso daquilo cair, tornarem a construir.
Eu andava a bater às portas por todo o lado. Como também queria fazer um parque infantil, contactei o Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis, em Viseu. E um dia eles vieram cá, e quando viram o mosteiro, o diretor do FAOJ, o Rui Santos, disse “olha que lugar tão bonito para fazer as janeiras”. Eles queriam fazer um encontro de janeiras a nível distrital. Eu não o larguei mais. No dia 6 de janeiro de 1979 foi feito em Salzedas o primeiro encontro de janeiras.
E, desde então, temos feito sempre. Em 2019 fez-se o último aqui em Salzedas. Em 2020 fez-se em Dalvares, que é uma freguesia aqui ao lado. Desde há uns 20 anos que fazemos alternado – um ano aqui, outro em Dalvares. Eles têm lá um grupo de folclore federado, dinamizado pelo Duarte Morais, que também é aqui de Salzedas.
A tradição de cantar as janeiras é muito antiga em Salzedas. Esta é uma zona medieval, propriedade de meia dúzia de senhores. Os servos da gleba, que trabalhavam para esses senhores, juntavam-se para cantar as Boas Festas no Natal, as janeiras, a 1 de janeiro, e os reis no dia 6… Nesses três dias, três grupos distintos – o grupo de crianças, o grupo dos mais idosos, e a banda – faziam a sua arruada pelas mesmas casas para levarem alguma coisita, um bocadinho de pão, um chouriço, uns figos… um cheirinho de aguardente.
Na primeira vez que se fez o encontro em Salzedas, a comunicação social propagandeou a situação em que se encontrava o mosteiro. Vieram grupos de todo o país. Os cantadores de Alcafache cantaram: “lembrai-vos os portugueses / dos nossos heróis e heroínas / olhai o Mosteiro de Salzedas / que agora está em ruínas”. O grupo de Queimadela, de Armamar, cantava: “o convento de Salzedas / frente a casas pequeninas / é um grande monumento / pena estar em ruínas”.
As pessoas iam aparecendo, as televisões iam aparecendo, as obras também acabaram por aparecer.
A maior parte das vezes as janeiras foram cantadas no meio dos claustros, era a sala de visitas. Os grupos cantavam em cima ou em baixo, para haver separação. No centro punha-se um grande braseiro, fazia-se um presépio ao vivo. Lembro-me bem de que no ano de 1984 era o meu filho mais novo o menino Jesus, a minha esposa e eu éramos a Nossa Senhora e o São José.
E lembro-me desse ano porque esteve cá a Natália Correia a fazer o seu programa, e isso também nos ajudou muito na divulgação da terra. Foi um programa muito bonito, cada grupo saía de uma rua diferente, um grupo saiu ali do Quelho, como nós chamamos à Rua do Carvalho, a antiga judiaria…. Houve alturas em que os grupos ficavam nas quatro varandas que existem à volta da igreja. Enfim, a Natália já partiu, e nós ainda cá estamos.
Um dos trabalhos que me orgulho de ter feito – e fiz em conjunto com a minha esposa, a Aldina, que também é professora primária – foi uma recolha a que chamámos “projecto educativo de danças e cantares”.
Se Salzedas já por si tinha os seus cantares tradicionais, além daqueles que se faziam na altura do Natal, os habitantes para poderem arranjar algum fundo de maneio para consolar o seu estômago tinham, depois das festas grandes, outras formas de cantar os seus cantares populares. Ainda sou do tempo em que, nos próprios terrenos, se ouviam os trabalhadores a cantar enquanto sachavam a batata, mondavam o milho ou compunham os feijões…
Fiz esse trabalho de recolha em colaboração com os alunos da quarta classe da Aldina e com uma professora que já cá estava, e que tinha mais 11 anos do que eu, a Dona Madalena. Fizemos versos para cada uma das atividades do ano. O primeiro trabalho é o da vareja da azeitona, depois viria a sementeira, depois tínhamos a apanha da baga. Depois a apanha da fruta – a maçã, mas também a ameixa, os pêssegos. E havia as vindimas, as desfolhadas, todos estes lameiros estavam semeados com muito milho, feijão, batata; e os montes era com centeio.
Nos versinhos explicava-se o que era e como se faz, e depois fizemos um espetáculo na escola. Ainda hoje passo a vida a fazer versinhos. Quando os filhos, noras ou netos fazem anos, eu arranjo sempre um soneto. Agora vou a uma comunhão, vou fazer também…. Gosto muito de escrever.
Sempre gostei de Salzedas por aquilo que tem e por aquilo que fiz e vou continuando a fazer. Por vezes a gente desanima, mas depois tudo se ultrapassa novamente e colaboro em tudo o que seja preciso. Seja nas atividades da igreja – eu faço parte do conselho pastoral; seja como correspondente do Notícias da Beira Douro aqui no concelho de Tarouca (jornal que cobre os seis concelhos da zona, Lamego, Tarouca, Moimenta da Beira, Armamar, Tabuaço), tenho lá sempre duas páginas e não me falta o que dizer. Tenho é de cortar porque não me cabe lá tudo.
O que ainda gostava de ver acontecer? Que pudesse voltar a haver tanta gente em Salzedas como quando eu vim para cá morar. Talvez como consequência da criação de postos de trabalho, para voltar a chamar essa gente. Porque se elas se vão embora não é por falta de amor à terra ou porque não têm aqui satisfações necessárias – hoje há água, saneamento, há tudo. Mas faltam locais de trabalho.
Eu tenho algumas saudades dos tempos passados e das coisas bonitas que aqui fizemos. Mas vamos continuando a fazer. Desde o ano 2000 que fazemos o encontro dos Antónios, por exemplo, no domingo a seguir ao Santo António. Só participa quem se chama António (e somos muitos) e vem gente de todo o lado. A igreja nesse dia é por nossa conta, transportamos a imagem e os andores, fazemos o almoço; nos primeiros três ou quatro encontros até fizemos umas peças de teatro muito bonitas.
Temos o gosto de ter no nosso livro de honra a assinatura do engenheiro António Guterres, que na altura era primeiro-ministro e agora é secretário-geral das Nações Unidas.
Habituei-me a estar aqui, tenho o meu quintal, gosto de me entreter lá. De vez em quando também saio para visitar o resto da família, filhos e netos, mas é aqui que tenho o meu berço, foi aqui que eu casei, foi aqui que, já casado, fizemos casa e montámos lar numa casa que era dos meus sogros. Ali temos o nosso paraíso e nos entretemos. Os filhos cá vêm, nós também lá vamos; mas aqui é o lugar central.
Aqui sinto-me feliz, sinto-me realizado. Acho que todos gostam de mim, e eu também gosto de todos desta terra.
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