Tem 58 anos de idade, é pedreiro, e ainda tentou uma vida de imigrante na Suíça. Mas não aguentava estar afastado da Banda Filarmónica de Salzedas, coletivo que integra há 34 anos. É tocador de pratos e o elemento mais antigo de um das mais antigas bandas filarmónicas de Portugal. “Com muito gosto”. Eis o seu testemunho.
“Eu telefonava para Salzedas só para ouvir a banda a tocar”
Chamo-me António Malagóia, tenho 58 anos e neste momento sou o elemento mais antigo da Sociedade Filarmónica de Salzedas. Pode haver elementos mais velhos do que eu, mas ninguém anda lá há tanto tempo seguido, sem interrupções. Tenho 34 anos de banda.
Eu nasci aqui em Salzedas e desde que me lembro que gostava de ouvir a banda a tocar. Quando eles iam ensaiar, eu ficava sempre a ouvir, ainda era solteiro e seria. Depois casei-me e continuei a gostar da banda, a vir para aqui, para a sala de ensaios a ouvi-los tocar.
Um dia bom para mim é quando saio com a banda.
António Malagóia
Até que um dia o senhor Pinto – um homem que fazia parte da banda, tocava trombone e bombardino, mas que já lá está, Deus o tenha – virou-se para mim e disse, “tens de vir para cá mas é tocar”. Eu dizia que não, mas ele insistia. “Tens de ir, tens de ir”. E depois até me disse o que eu ia tocar: “vais para os pratos…”. Ele tanto incentivou, que eu lá vim. E ainda cá estou. A tocar pratos.
Ainda andei a aprender para trombone com um maestro de Gouviães [uma outra aldeia do concelho de Tarouca] que se chama José Ribeiro. Mas eu não levava muito jeito para aquilo. Não gostava. Gosto mais dos pratos, pronto. E cá ando nos pratos.
Desde que ando na banda já conheci cinco maestros, todos diferentes. O melhor que cá tivemos, para mim, foi o Fernando Garcia. Só cá esteve dois anos, mas na composição das peças era cinco estrelas; fazia umas peças mais trabalhadas, com mais carinho. Mas depois casou-se, a mulher era de Mirandela, ausentou-se para lá.
No início só havia gente da terra na banda, havia mais pessoal, não havia músico nenhum de fora. Mas agora, com os músicos que vão partindo, às vezes temos de nos socorrer a alguns músicos de fora. Mas a banda funcionou sempre. A pandemia foi a única coisa que nos travou – e quase que travava mesmo, e de vez. Ficámos uns tempos sem direção – mas agora foi tudo retomado. E eu, que não queria, lá me puseram na direção também.
Os ensaios são sempre aos sábados, das 21:00 às 23:00 ou 23:30. Só quando há algum encontro, ou vamos tocar com outra banda, é que tentamos fazer um ensaio no meio da semana também. E cá andamos uns 20 ou 30. Já fomos quase 50, mas agora são estes os que temos, entre novos e velhos.
Às vezes é difícil arranjarem-se músicos, porque há tantas bandas por aí fora… E alguns músicos estão contratados e não podem vir quando precisamos; se por azar quando temos festa as outras bandas também têm é complicado. Em agosto é o mais difícil. E no dia 15 de agosto, então, é o pior dia. Há festas em todo o lado. Aqui em Salzedas vai ser a 21 ou 22. Quando é dia de festa aqui em Salzedas, nós não estamos para mais nada.
A banda ensaia aqui na sala da antiga Botica do mosteiro, que pertence à igreja, e em troca anima duas ou três festas por ano. Tocamos sempre aqui em Salzedas na festa grande, e em procissões da Páscoa como a do Senhor Morto, que fazemos na Quinta-feira Santa. Nós agora vamos ter outra sala de ensaios, com melhores condições, cedida pela Junta de Freguesia. E vamos aproveitar para fazer um museu, com os instrumentos antigos, que ficarão em exposição para as pessoas verem. São quase 200 anos….
Eu gosto muito de tocar em Salzedas, na minha terra, mas também gosto muito de tocar por aí fora. Eu gosto de todas as músicas que a banda toca, mas as marchas de rua é que eu prefiro. Então procissões é que gosto mesmo muito. Não sei explicar, mas nas marchas de procissões eu sinto que toco com mais carinho, com mais saudades. Porque vão os andores na frente, e isso mexe um bocadinho comigo. Gosto de tocar com mais emoção. Toco com vaidade.
Sabe, gosto de ir tocar para todo o lado, mas há terras que são melhores do que outras. Adoro tocar em São João de Armamar, por exemplo. Trabalha-se lá muito, vamos na marcha e depois na procissão, mas dá aquele ânimo, é bom. Já em Tarouca, a sede do concelho, não gosto de ir tocar. Nem sei porquê, sou sincero.
Nunca fomos tocar ao estrangeiro. O único estrangeiro que fomos foi a Lisboa (sorrisos) e também já fomos tocar ao Porto. Mas andamos mais aqui pela região. Somos sempre nós que escolhemos o repertório, é o maestro que faz as partituras e as peças para nós tocarmos.
Vivi sempre em Salzedas e também trabalho aqui na região. Houve uns tempos, aí há uns 20 anos, em que ia para a Suíça fazer os invernos. Trabalhava num hotel, ia em dezembro ou janeiro e vinha em abril. Quando era na Páscoa, na Quinta-feira Santa, pedia à minha chefe para vir uma semana antes, queria muito cá estar para tocar na Semana Santa.
Lá ganhava-se muito bem, e ainda tentei lá ficar um ano inteiro. É capaz de não acreditar, mas quando era dia de procissão eu telefonava para o senhor Laurentino só para ouvir a banda a tocar. Tinha muitas saudades disto. A banda mexia muito comigo, também estava lá sozinho, foi quando me decidi vir embora.
Eu adoro mesmo ouvir a banda a tocar. Durante a pandemia também me custou muito. Mas eu tenho um CD lá em casa, e de vez em quando punha-o a tocar. O que mais gosto é de ouvir o saxofone baixo, o bombardino e a flauta transversal. Mas o meu instrumento preferido, para eu tocar, são os pratos. Mesmo!
Tenho dois filhos e os dois passaram pela banda. O mais velho entrou para cá com oito ou nove anos, e enquanto andou por cá tocou sempre. Mas depois foi para Lisboa, teve de deixar isto. Toca clarinete, mas quando vem cá traz o clarinete de Lisboa e toca na mesma. O clarinete é dele, que fui eu quem o comprou.
Ele começou na banda a tocar requinta, foi lá que aprendeu a dar aos dedos. Era o maestro que o ensinava, mas a requinta tocava pouco, era um instrumento antigo. Por isso, fui ao Porto e comprei-lhe um clarinete, que me custou na altura 215 contos. Eu na Suíça ganhava 300.
O meu filho mais novo trabalha nas caves da Murganheira, em Ucanha. Também entrou na banda, andou no clarinete, depois quis ir para a caixa, esteve na percussão, até que saiu, cansou-se. Mas eu continuo por cá.
Agora estou animado. Vamos retomar os ensaios, já temos festas contratadas. Um dia bom para mim é quando saio com a banda. Nem que seja para Tarouca. Uma pessoa sai aos domingos com a banda e é logo outra coisa. Quando não há banda anda-se para aqui, para trás e para a frente, vai para o café; do café vem para fora, bebe mais uma cerveja, vai outra vez para o café. Não se faz nada. Na banda vê-se muita coisa.
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