O mosteiro cisterciense de Salzedas impõe-se junto ao conjunto de casas que se amontoam à sua volta, como um colosso que tudo sublima. Os salzedenses têm muito orgulho no seu mosteiro, na sua banda filarmónica – a mais antiga do país! – e nas suas árvores de sabugueiro. “Estarei feliz quando for pelo país fora e souber que Salzedas é conhecida pela sua gente e por tudo o que tem para oferecer”, avisa Cátia Custódio, uma jovem madrilena que é, agora, membro do executivo da Junta de Freguesia de Salzedas.
O copo ainda escalda com o galão acabadinho de tirar. Com paciência, Adozinda Pires tira do bolso a caixa de comprimidos, enrolada num lenço, e escolhe os que vai ter de engolir agora ao pequeno-almoço. “Tenho de tratar das pilhas aqui do meu relógio, antes que ele se canse outra vez”, explica, bem disposta, referindo-se ao coração que, há uns anos, ameaçou deixar de bater.
Adozinda tem 81 anos, 54 dos quais passados a viver em Benavente, “numa casa mesmo na praça central, junto à Câmara Municipal”. Esteve a viver no município ribatejano acompanhando o marido, militar na Guarda Nacional Republicana; mas desde que enviuvou, e sempre que a meteorologia melhora e os filhos concordam, gosta de vir passar os dias à sua aldeia natal, Salzedas, no concelho de Tarouca. “Agora já passo mais tempo aqui do que lá. Não há terra como a nossa”, argumenta, enquanto dá um trago no galão e empurra mais um comprimido.
O copo de leite ainda não está vazio e a filha já lhe está a ligar. “Telefona-me todos os dias, mais ou menos a esta hora. É para ter a certeza que eu estou bem”, explica. Mas, se às vezes atende o telefone ainda em casa, e ninguém sabe dela ali no café, Graça Ferreira, a dona do estabelecimento, manda saber por onde anda, e a vizinha, Carolina, lá vai saber dela.
“Estamos sempre atentos, para dar sinal quando é preciso. Quando sei que alguém não se anda a sentir bem, mais cansado, com falta de ar, também aviso a Junta de Freguesia para verem o que se passa, para arranjarem alguém para medir as tensões e os diabetes. Aqui atrás do balcão vejo muita coisa. Temos de ser uns para os outros”, concretiza.
O café, que é também mercearia, tem o letreiro à porta a revelar o nome de Café Reis. Mas não tarda, mal Graça possa, e haja apoio para o investimento, o estabelecimento vai ter o nome pelo qual todos o conhecem: a Tasca do Laurentino. “Era o nome do avô do meu marido. Todos o conhecem assim”, explica.
Graça Ferreira tem 47 anos e, oficialmente, é empresária em nome individual há menos de dois. Criou o próprio posto de trabalho depois de se demitir de um emprego estável e bem remunerado nas caves da Murganheira, na aldeia vizinha de Ucanha.
Mas, mais do que empresária, Graça é também uma espécie de assistente social, atenta e diligente. Fica com as receitas para aviar na farmácia; recebe as encomendas para distribuir a quem não está; ajuda a liquidar impostos e a receber reformas; a pagar as contas do telefone ou das scuts.
Mesmo em tempo de telemóveis, ainda é nesta mercearia que está – e funciona – o telefone mais antigo da aldeia, para onde ligavam todos os que queriam saber boas novas de Salzedas – ou, então, e apenas, os que queriam ouvir ao longe a banda a tocar.
Foi isso mesmo que confessa ter feito António Malagóia durante os poucos meses em que esteve a trabalhar na Suíça e, por causa disso, afastado da Banda Filarmónica de Salzedas, a mais antiga formação do género existente em Portugal. Já lá vamos.
Depois de uma operação ao joelho a deixar sem mobilidade e de a COVID a obrigar a andar com uma insuportável máscara, a filha de Laurentino ponderou fechar a casa. O filho e a nora fizeram contas aos dias de férias e jogaram com a pandemia para esticar os horários de trabalho remoto e os períodos de confinamento. Mas foi preciso tomar uma decisão. E Graça tomou-a.
“Ou ficava eu ou o meu marido. Ele trabalha na Câmara Municipal de Tarouca e sai um pouco mais cedo, ainda pode ajudar no que for preciso. Por isso fiquei eu”, explica. Graça Ferreira tem consciência de que o lugar que resgatou à sogra é importante para todos os que continuam a viver na aldeia – idosos e não só. Isso impede-a de ter saudades – e arrependimentos – da carreira que abandonou na Murganheira como operadora de máquinas, onde era responsável pela rotulagem das garrafas.
Este pragmatismo de Graça Ferreira condiz com a forma diligente como encarou sempre a vida. Podia ter ido para Lamego, estudar geografia de que tanto gostava, mas acabou por escolher um curso de que nem gostava muito, apenas porque havia em Tarouca e queria era ficar mais perto de casa. A ambição não era seguir para a universidade – era só acabar o secundário.
“Quando terminei a escola, fui trabalhar para o campo e depois casei”, enumera, com a naturalidade de quem escolheu seguir as pisadas que via trilharem à sua volta. Não lhe apetecia sair do ninho quando, afinal, a Sociedade Filarmónica de Salzedas já lhe permitia tantos voos – ou melhor dizendo, viagens num autocarro cheio de gente bem disposta para rumar a procissões e romarias em vários pontos do país.
Graça Ferreira entrou com 15 anos numa organização fundada em 1830, ainda as ordens religiosas não tinham sido expulsas do reino e ainda havia monges em Salzedas. Quase 160 anos depois, Graça Ferreira e a amiga Olinda Tibério foram as primeiras mulheres a pegar num instrumento onde antes só entravam homens. Graça toca clarinete. Olinda tocava trompete. “Nos primeiros anos cheguei a fazer umas 40 festas. Era uma alegria”, recorda Graça.
A amiga Olinda emigrou para Madrid onde, já casada, teve os seus dois filhos. Graça foi sempre ficando na terra – mesmo depois do marido, Jorge, ter ido ganhar a vida na construção civil em França. Ela quis sempre ficar. Em Salzedas havia trabalho para ganhar a vida e havia a banda para alegrar as noites, e os dias.
A banda é mesmo muito importante na aldeia. Com quase 200 anos de existência, só a pandemia a travou – e quase a travava de vez, depois de a última direção não pretender continuar.
Mas, qual fénix renascida, já retomou os ensaios e o entusiasmo. Cecília Tibério, mãe de Graça e de mais quatro irmãos, recorda os tempos em que andava no alto do povo a trabalhar nos campos, e abalava aldeia abaixo quando as sentia tocar.
“Tinha um orgulho enorme em vê-las, às raparigas, a tocar. Ainda hoje, às vezes choro por ver aquelas miúdas, que eram tão novinhas quando foram para lá. Sempre adorei a banda da música, os meus filhos foram todos, o meu marido também. Eu? Eu não podia. Era só o meu homem a trabalhar e, no campo, quando chovia não se ganhava. Não havia para tudo”, justifica Cecília, agora com 73 anos.
A Sociedade Filarmónica de Salzedas era, então, uma instituição quase tão reconhecida quanto o seu mosteiro. A fama chegava a Foz Côa, onde há mais de 50 anos uma professora reformada avisava António Ribeiro de Almeida, então ainda candidato a mestre-escola na primária de Salzedas, da sorte que tinha em ir para aquela freguesia de Tarouca.
“A senhora, que era amiga dos meus pais, disse-me, entusiasmada: ‘Vai para Salzedas? O senhor está de parabéns. Eu estive lá, aquilo é uma terra muito bonita. Tem três coisas que são uma maravilha. O mosteiro, que é um encanto; uma igreja que é maior e mais bonita do que a nossa aqui de Foz Côa; e tem também uma banda de música e por onde ela passa toda a gente diz muito bem. E se nós temos as amendoeiras, eles têm a flor do sabugueiro, que ainda tem um cheirinho muito mais bonito que o nosso’”. As palavras eram entusiasmadas e entusiasmantes. “Eu já conhecia Salzedas, mas ainda não tinha vivido cá. Mas quando cá cheguei, confirmei tudo”, diz António Almeida.
António diz não ter dúvidas de que a Sociedade Filarmónica de Salzedas é uma verdadeira “escola de cultura” – os seus três filhos também passaram por lá. O professor sublinha a necessidade de preservar esta instituição e até, se possível, de melhorá-la.
Quase desde a fundação que a sede e a sala de ensaios da banda se situam num espaço junto à igreja, no lugar onde no passado os monges tinham instalada a “botica”, isto é, a farmácia do mosteiro. Vão agora, e pela primeira vez, mudar de sala, para um espaço cedido pela Junta de Freguesia de Salzedas, onde melhor poderão mostrar os muitos instrumentos antigos, alguns dos quais centenários. “Vamos ter finalmente uma espécie de museu, e aí vamos poder homenagear melhor os homens que ajudaram a fazer a história desta banda”, refere António Malagóia, o mesmo que telefonava para a tasca do Laurentino para matar saudades.
Malagóia é um pedreiro com 58 anos de idade e 34 de banda, o que faz dele o elemento que há mais tempo faz parte da formação, de forma ininterrupta. Diz que gosta de ouvir um bombardino, um saxofone, um clarinete – os instrumentos preferidos. Mas Malagóia é um orgulhoso tocador de pratos. Não os troca por nada.
As janeiras e os cantares
Mal chegou à aldeia de Salzedas, António Almeida não se limitou a confirmar a elogiosa descrição feita pela vizinha de Foz Côa acerca da aldeia onde escolheu viver. Ao invés, empenhou-se desde cedo em engrandecer a freguesia e em documentar as suas tradições.
Em Salzedas havia muitas crianças – eram bem mais de 30, por isso havia escola feminina e masculina. Primeiro com a professora Madalena Lapa, depois com a sua mulher, Aldina, também professora primária. Foram todas convidadas a organizar a recolha dos cantares que se faziam na aldeia, para suavizar a dureza do trabalho no campo ou para sublinhar a alegria do trabalho em comunidade.
O “Projeto Educativo Danças e Cantares”, como chamou à recolha que fez com os alunos, e que culminou em apresentações aos pais e à aldeia, é agora um pequeno livro de páginas amareladas onde se guardam muitas das tradições. Algumas delas já se perderam. Ainda há vindimas, ainda há vareja da azeitona, ainda há baga de sabugueiro. Mas já não há desfolhadas nem ninguém a malhar o centeio.
“As crianças realmente cantavam muito bem, aprendiam com facilidade. Se calhar a culpa é do sabugueiro. Porque quando está em flor e se faz chá, ou mesmo depois, quando é baga e se faz um xarope, desconfio que é muito bom para as vias respiratórias e para afinar as vozes”, admite o professor.
António Almeida assumiu vários cargos desde que chegou a Salzedas. Foi secretário, primeiro, e presidente da Junta de Freguesia, depois; foi membro da Casa do Povo e integra o conselho pastoral; foi vereador e deputado municipal. O estado de degradação a que tinha chegado o mosteiro assumiu-se desde logo como preocupação principal – e bateu a muitas portas com pedidos de financiamento. Essa passou a ser a sua prioridade – e essa era também a prioridade da população. Todas as oportunidades eram boas. Fazer um encontro de grupos de cantares foi só a primeira.
O primeiro encontro de Cantares de Janeiras foi organizado no Mosteiro de Salzedas em 1979. O grupo de Alcafache logo chamou a atenção para o estado de degradação do mosteiro nas rimas que ali entoou. Em 1984 foi Natália Correia quem amplificou as tradições de Salzedas no seu programa de televisão. “Foi um programa muito bonito. Os grupos saíam de várias ruas da aldeia. Uns vinham do Quelho, como chamamos à antiga judiaria, outros estavam nas varandas em frente ao mosteiro. Foi um programa muito interessante que fez muito por divulgar a nossa terra”, recorda o professor.
Água mole em pedra dura. As obras tardaram. Mas chegaram. E continuam a ser feitas. Também as tradições das janeiras e do encontro dos grupos de cantares continuaram, todos os anos. A partir de uma determinada altura, por intermédio de Duarte Morais, nado e criado em Salzedas e eleito presidente da Junta de Freguesia de Dalvares, os encontros de janeiras passaram a fazer-se, alternadamente, ora em Dalvares, ora em Salzedas.
“Em Dalvares foi reabilitada a Casa do Paço, onde se acredita que viveu Egas Moniz e que tem muito boas condições para fazer estes encontros tradicionais, não só de cantares mas também de danças”, explica Duarte Morais, que é, também, o dono do único Alojamento Local da aldeia de Salzedas.
A Casa da Fonte abriu portas depois de recuperada uma das casas tradicionais da aldeia, que ainda mostra sinais do que parecem ser as antigas varandas que existiam no último andar, e que tinham portas de abrir para entrarem os raios de sol e aquecerem os frutos que ali eram colocados a secar. “Salzedas era terra de figos e maçãs”, acrescenta António Almeida.
Duarte Morais, que restaurou o piso inferior do edifício, e a irmã Manuela, que restaurou o piso superior, ainda se lembram de quando o pai mandou fechar as varandas, “com medo que um de nós caísse”, diz Manuela, que tem casa em Tarouca mas vem a Salzedas com muita frequência.
Certo é que o apartamento turístico propriedade de Duarte Morais é uma casa com vista privilegiada para o mosteiro e para os seus claustros – espaços que, admite Duarte Morais, foram um recreio para miúdos e graúdos da aldeia. “Onde agora é a Sala do Capítulo, que se pode visitar no museu, era a adega dos antigos donos, onde fui comer muitas chouriças e beber vinho, mais ou menos às escondidas”, diz.
Essa é uma das surpresas da visita ao Museu do Mosteiro de Salzedas. Há espaços que ainda permanecem privados, mas as entidades públicas têm conseguido resgatar – e mostrar – o património que sobreviveu a décadas de abandono e, até, a algumas pilhagens. “Diz-se que vinha gente de Lisboa levar azulejos do mosteiro”, revela Paula Silva, a técnica do Museu de Lamego que orienta as visitas guiadas ao mosteiro.
A igreja e o mosteiro de Salzedas
Com a extinção das ordens religiosas, a igreja conventual tornou-se na igreja paroquial e uma boa parte das dependências monásticas foi vendida a privados. Os atuais donos são um casal inglês que vive na região autónoma da Madeira e que entregou o usufruto dos terrenos da quinta aos caseiros Eunice e Eduardo Castro. São eles quem assegura que a envolvente do conjunto monástico continua arranjada – e cultivada.
Com a classificação do Mosteiro como Monumento Nacional em 1997, e depois de um protocolo assinado em 2002 com a Diocese de Lamego, começaram as ambicionadas obras de restauro no complexo monástico. Foi em 2009 com a criação do projeto do Vale do Varosa (que integra mais monumentos na região) e na abertura ao público de um espaço museológico em 2011, que a igreja e o convento readquiriram a dignidade e o esplendor.
Paula Silva recebe no Museu do Mosteiro de Santa Maria de Salzedas visitas de escolas, famílias, turistas isolados ou em grupo, portugueses e estrangeiros, desde 2017. “Sou professora do primeiro ciclo, mas entretanto não consegui colocação. Surgiu esta oportunidade e encarei-a como um desafio. Só que entretanto este desafio tornou-se uma paixão”, explica, dizendo que agora já não quer regressar ao ensino. “Adoro falar às pessoas, contar a história do Mosteiro de Salzedas e dos monges de Cister. Gosto de ver o sorriso na cara das pessoas e o interesse e satisfação que eles têm pela visita. Isso é muito gratificante”, argumenta.
Na porta ao lado do museu, é Cecília Tibério quem faz as visitas guiadas na igreja do Mosteiro. De forma menos oficial, mas igualmente empenhada – e apaixonada – e com a autoridade de quem viveu os seus 73 anos sempre com as paredes do mosteiro e da igreja de Salzedas muito perto. Ali foi batizada, fez a catequese e a comunhão, casou, é catequista, celebra o terço e reza a via sacra. Foi lá, também, que assinalou os 50 anos de casada, mesmo depois de saber que a família lhe preparava uma surpresa na Nossa Senhora da Lapa, de que também é muito devota. “Eu respondi-lhes: nem pensar; ninguém me tira da igreja de Salzedas’”, recorda.
É na imensidão da igreja conventual, considerada uma das maiores do país, que Cecília Tibério se recolhe com os seus pensamentos e os seus santos. O sítio onde mais gosta de estar é junto ao altar do Menino Jesus, o padroeiro do Mosteiro de Santa Maria de Salzedas.
Cecília lembra-se do mosteiro muito degradado, mas cheio de gente. “Antes vivia mais gente na aldeia, e todos vinham à missa. Agora é diferente. O mosteiro está mais composto, e está menos frio cá dentro. Mas já não há tanta gente nas escolas e na catequese. Antigamente, havia 20 a 25 meninos junto a cada catequista – e éramos muitas. Agora somos só duas e temos nove meninos”.
Assim como abalava pela aldeia abaixo para ouvir a filha tocar na banda, Cecília também move mundos e fundos para incutir nos filhos e netos o amor que ela tem pela aldeia e pelas suas tradições. “É um amor e um orgulho que não se explica, mas que sempre nos foi transmitido. É um orgulho em ser salzedense”, diz Cátia Custódio, uma das netas que viveu em Madrid até aos 13 anos.
Cátia tem agora 23 anos, tirou um curso superior, é veterinária no canil municipal e secretária da Junta de Freguesia de Salzedas. “Eu sempre tive muitas ideias para esta terra. Há coisas que são complicadas, de que eu não estava à espera, coisas que são difíceis de lidar. Mas de uma maneira geral é gratificante, as pessoas virem ter connosco e darem sugestões”, justifica.
Cátia não tem dúvidas de que está melhor em Salzedas, uma aldeia num concelho do interior como Tarouca, do que num bairro de uma capital europeia como Madrid. “É errado alguém pensar que não há nada numa aldeia do interior que possa interessar a um jovem”, insiste. O maior desafio, considera, é criar postos de trabalho que segurem os jovens na aldeia. Talvez o trabalho remoto seja possibilidade para alguns; talvez criando mais oferta no alojamento e restauração seja solução para outros. A Inovterra, uma associação juvenil de desenvolvimento local, acredita que o futuro pode continuar a passar pela agricultura.
Fundada em 2012 por um salzedense, Bruno Cardoso, esta associação multiplica-se em iniciativas e atividades para aumentar a rentabilidade dos que continuam a trabalhar a terra e a produzir alimentos. Está empenhada, por exemplo, em desenvolver conhecimento sobre o sabugueiro e perceber como se pode potenciar a sua valorização económica.
Fruto de uma parceria entre a Inovterra e o Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV), está a ser feita uma caracterização das três variedades de sabugueiro tradicionais em Salzedas. Do INIAV, com sede em Oeiras, estava uma equipa de quatro pessoas a recolher amostras de flores; e em agosto regressam para recolher amostras de bagas, para caracterização científica deste produto.
A associação, sem fins lucrativos, também oferece ações de formação e campos de trabalho juvenis para capacitar os mais novos para o trabalho agrícola. E organiza a venda de cabazes semanais de produtos agrícolas; não só nos concelhos da região, como Lamego e Tarouca, como também os transporta até postos de venda no Grande Porto. “O objetivo é ajudar os produtores a escoar os seus produtos”, afirma.
Cecília Tibério não tem produtos para escoar. Gasta-os todos, porque se preocupa em fazer cabazes para os filhos. “Habituei-os assim, e tenho gosto em que não lhes falte nada e tenham a cesta cheia”, diz a catequista. Todos os dias de manhã ainda se levanta para ajudar o marido no campo – regar, semear, mondar, colher. Isso, em muitos dias, significa levantar muito cedo para aproveitar a água que lhe chega ao campo por uma leira, no dia em que lhe calha a sua sorte.
Levantar cedo não é nada que assuste a Ti Joaquina, a habitante mais idosa de Salzedas, com 95 anos metidos numa estatura de cerca de metro e meio. Um corpo franzino de gargalhada fácil. Aliás, levantar cedo e ir para o campo é o que mais gosta de fazer – isso e de passar na mercearia da Graça e com duas tiradas deixar toda a gente a rir. “Tantas vezes nos fartámos de rir com ela. É uma pessoa muito alegre, muito vívida. A Ti Joaquina tem um espírito que nos deixa a todos cheios de inveja”, diz Graça, antes de apontar para o caminho que temos de fazer, por entre as ruas labirínticas da aldeia, para encontrar o portão onde mora a Ti Joaquina.
Tivessem os ouvidos a destreza que ainda tem nas pernas e as conversas poderiam arrastar-se por horas. Diz que não há nada de interessante ou de importante para contar na sua vida, como se a energia que transmite e a alegria com que vive não fossem, por si só, um tratado de psicologia melhor do que muitos livros de auto-ajuda.
Mas incomoda-a não ouvir bem o que lhe estão a dizer – por isso remata a conversa com a oferta de umas azeitonas, que ninguém lhe bate à porta do quintal e sai de mãos a abanar – mesmo que o refogado esteja ao lume, que haja um neto que vem jantar, que admita que a surpresa da visita a deixa alvoroçada.
Nesse fim de tarde, sentadas num banquinho da rua, era possível encontrar algumas utentes que já haviam regressado do Centro de Dia de Salzedas e ali estavam em amena cavaqueira, perto das portas de suas casas. Aproveitar que os dias são longos e o sol já vai aquecendo, antes de se meterem em casa para mais um serão, antes do novo dia.
O Centro Social e Paroquial de Salzedas está instalado no edifício onde antes funcionou a escola primária da aldeia. “Sinal dos tempos”, diz Viriato Carvalho, formado em educação musical, um professor que andou por muitas escolas da região norte até ter trocado o ensino pelo desafio de zelar pela sustentabilidade económica de uma das mais importantes organizações da freguesia.
“Vivemos numa região com fracos recursos financeiros. Os nossos utentes têm todos uma reforma muito pequena, não lhes podemos cobrar o valor que nos custa prestar o serviço. O maior desafio é chegar ao fim do mês com as contas equilibradas, pagar aos funcionários e aos fornecedores, e manter viável esta estrutura que é indispensável para a qualidade de vida de alguns”, explica o diretor do centro. Há 20 utentes na valência de Centro de Dia e 10 a quem são prestados apoios domiciliários. “Aqui na aldeia todos se conhecem”, remata o diretor do centro.
Natural de Salzedas, Viriato sublinha o privilégio de conseguir viver e trabalhar numa aldeia onde tem qualidade de vida e é feliz. “Saio do escritório e vejo os sabugueiros, vejo as vinhas, vejo o mosteiro. Há aqui uma envolvência cultural que nos faz logo apaixonar pela região e nos dá vontade de nos mantermos por cá”, afirma.
À envolvência cultural descrita por Viriato, falta acrescentar a música e os cantares que, a par e passo, se ouvem no terreiro de Salzedas. No largo do mosteiro, com sabugueiros e vinhas a emoldurar, terminado o terço conduzido por Cecília, findo o trabalho no campo que ocupou Carolina e Eunice, ou na Junta de Freguesia, onde esteve Zilda, ou na escola onde esteve Rosália, todos se juntam.
E a par com o professor António e a professora Alcina, com a energia da gente nova como Cátia e alguns primos, ao som do acordeão do ensaiador do grupo de cantares de Salzedas, o fim da tarde fecha-se com música. E com odor de sabugueiro.
“No terreiro de Salzedas, há duas pedras ao centro uma para namorar e outra para passar o tempo”.
“Estarei feliz quando for pelo país fora e perceber que Salzedas é conhecida pela sua gente e por tudo o que tem para oferecer”, remata Cátia Custódio, a jovem madrilena que é, agora, membro do executivo da Junta de Freguesia de Salzedas. E promete que tudo vai fazer para que isso aconteça.
Veja também o guia prático com o que fazer em Salzedas.
Mais sobre Salzedas
O que fazer em Salzedas (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Salzedas, no concelho de Tarouca, distrito de Viseu. Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, mosteiros e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
Graça Ferreira, a comerciante
Trocou o emprego seguro e bem remunerado de mais de 20 anos para ficar atrás do balcão da única mercearia existente na aldeia de Salzedas. Mais do que um local de comércio, Graça Ferreira está à frente de um estabelecimento onde, afinal, também se fazem serviços sociais. Foi uma das primeiras mulheres a integrar a Banda Sinfónica de Salzedas, tinha 15 anos.
António Malagóia, o tocador de pratos
Tem 58 anos de idade, é pedreiro, e ainda tentou uma vida de imigrante na Suíça. Mas não aguentava estar afastado da banda filarmónica de Salzedas, coletivo que integra há 34 anos. É tocador de pratos e o elemento mais antigo da mais antiga banda filarmónica de Portugal. “Com muito gosto”.
Cátia Custódio, a veterinária
Crescer numa família que sempre adorou a terra natal moldou-lhe a vontade. Nasceu e cresceu em Madrid, mas aos 13 anos mudou-se de vez para Salzedas. Fez o ensino secundário em Tarouca e o curso de veterinária na Universidade de Vila Real, e hoje é uma orgulhosa executiva na Junta de Freguesia local.
António Almeida, o professor
Filho de professores primários que andavam com a casa as costas, tornou-se um deles e instalou-se em Salzedas, onde ocupou muitos cargos e funções. Assinou um livro de recolha das tradições e cantares, e impulsionou os encontros de janeiras para chamar a atenção para a degradação do mosteiro. Com quase 80 anos de idade, é um homem respeitado.