Trocou o emprego seguro e bem remunerado de mais de 20 anos para ficar atrás do balcão da única mercearia existente na aldeia de Salzedas. Mais do que um local de comércio, Graça Ferreira está à frente de um estabelecimento onde, afinal, também se fazem serviços sociais. Foi uma das primeiras mulheres a integrar a Banda Filarmónica de Salzedas, tinha 15 anos. Eis o seu testemunho.
“Se a mercearia fechasse ia ser um problema para muita gente”
Sou a Graça Ferreira, tenho 47 anos, nasci em Salzedas. O meu pai e a minha mãe também são de cá, tenho uma irmã mais nova do que eu sete anos, vivi sempre nesta aldeia.
Andei a estudar até ao 12º ano. Tirei o curso de Comunicação em Tarouca, mas a verdade é que acho que não tenho o dom da palavra. Eu gostava era de Geografia e de História, mas como para tirar esse curso tinha de ir para Lamego, a verdade é que preferi ficar em Tarouca. Acho que antigamente éramos mais comodistas, não éramos daqueles que pensavam muito no amanhã.
Eu fiquei-me pelo 12.º ano, e quando acabei ainda trabalhei um ano na agricultura, e depois casei-me com o Jorge, um rapaz aqui da terra, em setembro de 1997. E duas semanas depois comecei a trabalhar nas Caves da Murganheira. Estive lá mais de 20 anos. Eu trabalhava nas caves e o meu marido era serralheiro. Mas depois quisemos melhorar a vida um bocadinho, e ele candidatou-se a trabalhar na Câmara Municipal, e entrou.
Estávamos os dois com emprego fixo. Mas há dois anos a minha sogra foi operada aos joelhos e perdeu um pouco a mobilidade. Ela tinha 70 anos, foi a altura do COVID; ela já era de risco e não se adaptava nada a andar de máscara o dia todo. E aqui a mercearia, parece que não, mas não é a direito, tem uns degraus, é preciso andar para cima e para baixo.
Então, para não fecharmos a mercearia viemos para cá nós, dividimo-nos entre mim e o Jorge. Entre férias de um e de outro, e com a possibilidade que havia na Câmara de trabalhar 50/50 – uma semana lá, uma semana em trabalho remoto -, fomos aguentando isto. Mas depois tivemos de optar, e um de nós tinha de vir para aqui. Ou ele ou eu.
Acho que não deve haver gente a gostar mais do trabalho que eu fazia do que eu. Era operadora de máquinas, trabalhava na rotulagem, e as responsabilidades eram cada vez maiores. E pensei que para estar a sacrificar e a chatear-me, era preferível pensar que ia experimentar uma coisa nova. E optei por ficar eu na mercearia. Também houve outro fator a pesar na decisão. O meu horário na Murganheira era das 9h00 às 18h00, tinha o dia todo ocupado. Ele na Câmara entra às 8h00 mas sai às 16h00. E essa é uma boa hora para ainda ajudar no que for preciso, ir comprar o que falta, substituir-me aqui se eu precisar de ir a algum lado. Assim, sempre tenho um apoio.
Manter a mercearia era muito importante, eu sempre me lembro da mercearia aqui na aldeia. Eu também era cliente, claro, e ainda me lembro que tinham aquelas arcas de madeira onde havia arroz avulso, que a gente comprava a granel. Massa, não. E lembro-me de um vizinho que vinha cá fazer as compras que a tia lhe pedia. Massa de cotovelinhos, por exemplo. Ele, para não se esquecer do pedido, chegava aqui e dizia: “Senhor Laurentino, quero massa daqui”, a apontar para o cotovelo. E ele já sabia o que era.
O Laurentino era o avô do meu marido. Toda a gente fala “era no Laurentino”, “vai ao Laurentino”. Por isso nós queremos fazer aqui obras e dar-lhe o nome de Taberna do Laurentino. Sim, nós temos muitos planos. Temos de ir com tempo e com as possibilidades que temos. Por agora, ainda não. Temos tentado fazer os projetos. Mas não fomos selecionados no concurso para apoios. Tentámos fazer um empréstimo mas, como ainda não tínhamos um ano de empresa, não nos foi concedido. Vamos esperar, vamos tentando.
Gostaríamos de mudar, ter isto um bocadinho melhor. Principalmente a parte do minimercado. Aqui tenho tentado ter um pouco de tudo, mas não posso ter em grandes quantidades, porque o espaço não estica. Mas procuro ter todos os bens essenciais. Tenho tudo. Só não tenho para os cães, de momento, mas já tive. Tenho para os gatos. Mas não tenho investido muito em rações, porque é um produto que se compra perto daqui, muito mais barato. E claro que as pessoas vão ao mais barato. Mas de resto tenho o essencial para se viver. Mesmo fraldas, lá está, tenho para os mais velhos. Porque já tenho clientes idosos, mas não tenho bebés.
Conheço aqui tudo, as velhinhas todas. Ainda há tempos um filho ligou para mim a dizer que não sabia da mãe, que estava tentando ligar e ela não atendia. E eu fui ver onde ela andava – porque é aqui que as pessoas comunicam. Tenho outra cliente que costuma aparecer às 9h00. Eram dez e ainda não tinha aparecido e a vizinha lá a foi procurar. Temos aquela preocupação, se eles estão bem ou não…
Aqui faço um bocadinho de tudo, e sinto que faço também um pouco de serviço social. Se isto fechasse ia ser um problema para muita gente.
Eu aqui tenho payshop, tenho multibanco. Muitas vezes pago o IMI; pago décima; muitos IRS também consigo pagar; as portagens de algumas pessoas que têm carta mas não têm a Via Verde. É uma mais-valia eu ter isto aberto, porque parecendo que não as pessoas mais velhas não têm mobilidade para irem buscar um saco de compras. E aqui muitas vezes eu até posso levar a casa. Também recebo encomendas, ajudo na parte da farmácia. Porque desde a pandemia que a farmácia de Salzedas tem estado fechada. A dona não pode fechar mesmo, porque o alvará é de Salzedas, mas não tem a porta aberta. Deixam-me aqui as receitas, o dinheiro, vem a senhora da farmácia e eu fico com as encomendas. Eles vêm aqui e deixam os medicamentos para os velhinhos, os clientes do costume, que trazem aqui a receita.
Não é que eu me incomode ao ficar com estes recados, mas acho que era uma mais-valia a farmácia continuar aberta. Porque ela tinha a parte de medir a tensão, os diabetes. E mesmo quando viessem turistas, era uma mais-valia.
Aqui há tempos chegou uma senhora que se tinha sentido mal e preocupei-me, claro. Perguntei se ela tinha ido medir a tensão, ver os diabetes. Eles não pedem ajuda, mas eu chamei a atenção na Junta de Freguesia. Faço aqui um bocadinho de tudo. É uma espécie de serviço social na aldeia. Vamo-nos ajudando uns aos outros, porque, se formos a ver, Salzedas, embora tenha gente jovem, a maioria são pessoas muito idosas. Com 70, 75 anos – tenho até uma cliente com 95 anos. Que tem um espírito… – ainda ontem nos fartámos de rir com ela, porque é uma pessoa muito alegre, muito vivida.
De resto, vamos tentando fazer o nosso melhor. É uma vida muito diferente da que tinha quando estava na Murganheira. Lá tinha responsabilidades, e aqui também tenho. Mas em termos financeiros era mais confortável nas Caves da Murganheira. Porque eu sabia que todos os meses era certinho. Aqui, não; há dias que dá muito e há dias que dá pouco. Mas vai dando para eu estar. Por isso não estou arrependida, tenho até projetos para melhorar isto.
Eu nunca pensei em emigrar. Gosto muito da minha terra. O meu marido ainda esteve cinco anos fora, em França. Trabalhava nas obras. O que ele foi ganhar foi quase tudo para os meus filhos – foi para comprar uma trompa, foi para comprar uma flauta, um flautim e pouco mais. Foi uma altura muito complicada, porque é altura da juventude deles. Eu tinha de ser mãe, pai, ir buscá-la, buscá-lo, levá-los. Foi um bocadinho puxado, mas pronto, tudo se fez.
A banda é muito importante para mim. Entrei na banda com 15 anos, fui das primeiras mulheres a entrar na banda. A banda era um veículo para sair, um escape para fugir, para tentarmos sair daqui. Os nossos pais não nos deixavam ir para todo o lado, como agora. Mas com a banda íamos. Nos primeiros anos, cheguei a fazer umas 40 festas. Era uma alegria. Houve uma altura em que dormimos todos no autocarro, porque tínhamos de sair logo no dia a seguir.
Ainda hoje, a banda é onde a gente se liberta um bocadinho do stress da vida. Parecendo que não, foi lá que eu criei os meus filhos. Quando eles nasceram e começaram os ensaios, eles iam sempre, na alcofa, no carrinho e sempre foram. Os ensaios eram todas as semanas – aos sábados ou às sextas à noite.
Os meus filhos têm 23, 19 e 11 anos. O mais velho está na banda do exército, em Lisboa. A do meio é a que me parece que gostaria de vir para aqui – ela foi criada aqui na mercearia, tem isto no sangue, gosta muito disto, gosta “das minhas velhinhas”, como ela diz. Está a estudar flauta em Mirandela. Vamos lá pô-la aos domingos, e o pai vai buscá-la à sexta-feira. E a mais nova também diz que não quer estudar mais, diz que não é muito de escola. “Eu fico no café com a mãe”, diz ela.
Um dia bom para mim é estar em casa, sossegadinha. É um domingo. Nem é para dormir até mais tarde, porque dou catequese, antes da missa. Mas tenho a tarde, sossegada.
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