Natural da serra do Montemuro, quando foi colocado em estágio no Douro achou que era castigo. Agora, com 50 anos de idade e 27 de pároco na aldeia, Amadeu Castro é uma das principais figuras de Trevões onde dinamiza várias coletividades e instituições. Dá tanta importância ao trabalho social como à componente religiosa e se isso não lhe tem garantido mais fiéis à igreja, dá-lhe uma sensação de felicidade tremenda por se sentir útil e presente. Eis o seu testemunho.
“Gosto de caminhar ao lado desta gente”
Chamo-me Amadeu da Costa e Castro, nasci em 1971 em Gosende, uma aldeia vizinha de Campo Benfeito, na serra do Montemuro, concelho de Castro Daire. O meu pai, Bernardino, e a minha mãe, Carminda, tiveram sete filhos. Eles têm mais de 90 anos e continuam lá na serra. As minhas irmãs estão todas na Suíça. E eu estou em Trevões há 27 anos – os primeiros dois anos a estagiar, como diácono, e já fiz 25 como padre.
Sou um serrano genuíno. Fiz a quarta classe na minha aldeia e depois fui fazer o primeiro e o segundo ano a Castro Daire. Foi nessa altura que pela primeira vez surgiu a vocação. Foi com a ida de um missionário à escola, nas aulas de Religião e Moral. Acho que me falou alto o bichinho da aventura, da missão e do desconhecido. E também o gosto pelo desporto, que eu sempre gostei muito de futebol – e o padre dizia que se jogava muito futebol no seminário. Certo é que falei aos meus pais e fui mesmo para o seminário, durante os primeiros quatro anos. Primeiro estive três anos em Viseu, na escola Emídio Navarro, dos Combonianos, e depois um ano em Famalicão, também nos Combonianos.
Até que cheguei ao décimo ano, entrei noutra fase da minha vida e fiz outras descobertas. Convenci-me que o seminário não era para mim e regressei a Castro Daire. Continuei a estudar até ao 12º ano, cheguei ao tempo da Prova Geral de Acesso (PGA), em que – nunca mais me esqueci! – na questão de desenvolvimento nos perguntavam se a paz era uma utopia…
O que eu sei é que naquele espaço de tempo entre fazer as provas, esperar pelos resultados e entrar ou não na universidade – e eu entrei em Psicologia, em Coimbra – passei as férias grandes muito próximo do padre da minha aldeia, o padre Serafim. Ele continuou a dar-me abertura para ajudar no grupo de jovens, nas atividades da igreja, na catequese. E nesses três meses ele lançou-me o desafio de não ir para a universidade e de regressar ao seminário. Insistia que eu tinha jeito para padre, que tinha vocação. E eu assim fiz, fui para o seminário, já não dos missionários combonianos, mas para o seminário diocesano, em Lamego.
Não foi fácil a adaptação. Porque eu vinha do mundo da liberdade, numa escola pública. Quando fui para o seminário, tinha de rezar antes das aulas, depois das aulas, tinha de rezar antes de comer e depois de comer, só podia vir à cidade à quinta-feira à tarde e ao domingo… Não foi fácil. Mas, com a ajuda dos colegas, consegui. No primeiro e segundo ano de Teologia estive no seminário de Lamego. Depois fui ter aulas num pólo da Católica em Viseu, que tinha um intercâmbio com o seminário. Porque me chamo Amadeu, fui o primeiro desse ano a ser licenciado nesse pólo da Católica, que hoje já não existe (os seminaristas de Lamego hoje estudam em Braga).
Não sei por que é que fui para padre. Só sei que há um chamamento, e que ele tem de acontecer todos os dias. Se não, a vocação pode acabar. Eu acho que Ele me chama todos os dias. Depois do seminário fui colocado no estágio aqui em Trevões. Achei que mandarem-me para o Douro era uma forma de castigo – não castigo divino, que Deus não castiga, mas dos meus superiores hierárquicos.
O Douro não era fácil. É preciso chegar aqui e saber estar com esta gente. São muito frontais, muito humanos, mas muito difíceis na prática religiosa. Na altura eu não estava a perceber o projeto que os meus superiores tinham para a minha vida e para estas comunidades. Estava contrafeito porque não amava estas terras, mas já gostava muito destas gentes.
Eu posso estar aqui a conviver com os jovens e jogar futebol com eles, ir com eles para a discoteca e para o café, frequentar o rancho, fazer desporto, enfim, tudo. Mas quando chega ao domingo, para a eucaristia, continuo sem frequência. Eles podiam gostar de mim mas diziam-me “a missa é para si, deixe-nos cá”. Porém, se eu precisar deles para organizar uma atividade de recolha de fundos para a obra social de Trevões são os primeiros a alinhar, a organizar magustos, bailes, atividades, procissões. Estão sempre disponíveis. Só não querem a rotina da missa ao domingo.
Um padre fala com todos e preocupa-se com todos. Como na história da pergunta da PGA. Eu respondi que a paz não pode ser uma utopia, a paz não começa nos outros, começa em cada um de nós. Não nos vamos preocupar com a guerra na Ucrânia se não conseguirmos manter a paz numa comunidade com 60 fogos. Eu tanto me preocupo com quem vem à missa todos os dias como com quem não põe os pés na igreja. Com todos por igual. Com os Jeovás que tenho na comunidade.
Mas o maior desafio de viver numa aldeia, hoje em dia, é mantermos as pessoas que temos cá. Infelizmente, vemos cada vez mais o Interior desertificado; o maior desafio é fixar esta gente, dar vida a estas comunidades. Tenho medo de que no futuro fiquemos apenas e só com o património edificado físico e perdamos o melhor património, que é o património humano, as nossas gentes.
Acho que esta comunidade tem muita história. Não só o orgulho e o gosto de serem de Trevões, hoje, mas como tiveram no passado famílias nobres, casas brasonadas, uma igreja Património Nacional fantástica, [têm hoje] o Museu de Arte Sacra, as Casas do Prior, um museu etnográfico e todas as suas instituições. O orgulho desta gente é de facto pelo passado, vivendo o presente e tendo sempre muita esperança no futuro.
O que eu quero fazer no futuro é o que fiz sempre no passado, caminhar com esta gente, com esta comunidade. Como padre, sem dúvida, e a viver os sacramentos, mas também na realidade desta comunidade. Com as crianças, com os jovens, com os adultos, com os mais velhinhos. Quero continuar a desenvolver o trabalho social que estamos a fazer e que é fantástico. Recuperar este património lindíssimo que temos e criar vida, dar vida a toda esta gente.
Eu ando de scooter, tenho um bom carro, gosto de ir jantar fora, de jogar à bola, de ir à discoteca com os jovens daqui.
Sou quadro da Escola Secundária de São João da pesqueira, coordenei o arranque do projeto de inovação social – o Promover e Inovar Mais Perto do Amanhã -, estou na Associação de Futebol de Viseu, na Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, na Associação Bagos de Ouro. Envolvo-me muito.
Não acho que rasgue com o conceito de padre, apenas gosto de ser quem sou. E, acima de tudo, sendo um rosto visível de Cristo hoje e também sendo uma pessoa muito presente com as gentes desta comunidade e que me foram confiados.
O que me deixa mais feliz e mais realizado é sentir que ainda abraço esta comunidade e que a comunidade ainda abraça este padre. E quando é assim, é uma felicidade tremenda, porque nos sentimos úteis e presentes.
É conhecermo-nos a todos, é tratar por tu quase todos os que fazem parte desta comunidade. No fundo é dizer que ainda somos família. Enquanto receber o afeto deles, posso continuar aqui toda a vida.
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