Ninguém conhece a Igreja de Trevões como Cassilda de Lurdes, uma mulher com 85 anos, que desde os nove, todos os dias, entra naquele monumento. Não só sabe dos segredos e das histórias da igreja, como tem memória viva do quotidiano na aldeia, que procurou ajudar a perpetuar nos museus abertos ao público logo ali no adro. Eis o seu testemunho.
“Eu entro dentro da igreja e sinto-me no meu mundo”
Chamo-me Cassilda de Lurdes, nasci no dia 8 de dezembro de 1936. Sou de uma família humilde, só tive uma irmã. Os meus pais morreram muito novos. Aos 28 anos eu já estava sozinha aqui na aldeia – a minha irmã foi servir para Oliveira de Azeméis, onde conheceu o marido, e depois foi para África. Mas eu nunca quis sair de Trevões.
Fiz a escola primária aqui na aldeia e comecei a trabalhar com nove aninhos. Fui tomar conta de uma senhora que tinha ataques epiléticos e foi então que comecei a andar na igreja a tratar do que fosse preciso. Na altura, quem tratava das coisas da igreja era a Dona Alice Caiado Ferrão, em conjunto com outras senhoras da terra. A senhora de quem eu tomava conta era irmã da Dona Alice, e por isso ela chamava-me para ir com ela para a igreja, para acartar a água da fonte que havia no adro, para lhe chegar as flores, para a ajudar a varrer. Por isso, posso dizer que foi nessa altura que comecei a trabalhar na igreja, tinha eu nove anos. E nunca mais parei. Até agora, que já tenho 85 anos.
A minha vida foi sempre a servir. Aqui em Trevões nunca houve fábricas nem nada, toda a gente trabalhava nos campos. Eu trabalhei sempre em casas de senhores. E houve gente muito importante aqui, e de muitas posses. Primeiro estive na família dos Caiados, depois fui para a família Almeida Coutinho, que tinha o solar que está à frente da porta principal da igreja. Chamam-lhe a Casa do Adro. Estive a trabalhar nessa casa 45 anos – saí de lá há mais de 30.
Na casa desses senhores fiz de tudo. O primeiro trabalho foi tomar conta de uma das bisavós, uma senhora de muita idade e muito doente. Quando ela faleceu, fiquei a tomar conta dos netos mais pequeninos. Cheguei a juntar oito camas no meu quarto. Era um quarto grande e, quando os filhos dos senhores vinham de visita, os meninos ficavam comigo para os pais ficarem descansados. Era uma casa muito grande, com nove quartos, duas salas, uma biblioteca que era das mais ricas do concelho. Os nossos quartos ficavam no rés-do-chão. O meu era o do meio, cheio de janelas e muito comprido – por isso cabiam lá as camas todas. Os últimos meninos a saírem lá do quarto já têm hoje mais de 50 anos. Depois tomei conta da senhora da casa e sempre ajudei nos outros trabalhos – como passar a ferro, por exemplo. Fiz sempre mais serviço dentro de casa. Chegámos a estar cinco empregadas, era gente que podia. Mais para o fim, acabei por ficar a cozinhar.
A cozinha era muito rica, tinha um fogão de lenha maior do que a minha mesa. Lembro-me que aos domingos deixávamos os tachos ao lume, no fogão de lenha, e íamos para a igreja. O meu sítio preferido na igreja é lá ao fundo, junto ao altar do Espírito Santo. Eu entrava e saía, ia à igreja, vinha ao solar, via os tachinhos, mexia, tornava a ir para a igreja, entrava e enfiava-me naquele cantinho.
Gosto sempre de lá ir. Eu entro dentro da igreja e sinto-me no meu mundo. Houve uma altura em que eu trabalhava na igreja com outra moça, que também era empregada de uma família nobre cá da terra. Um dia, ao subir a um cruzeiro para prepararmos uma via sacra ao vivo, ela desequilibrou-se e caiu, bateu com a cabeça e faleceu.
Foi depois disso que fiquei com a responsabilidade de tratar de tudo e arranjar um bom recheio em toalhas, que a igreja estava a ficar sem enxoval. Então, eu fui pedindo às pessoas amigas, nas famílias onde trabalhavam, a uns e a outros, e todos foram ajudando. Hoje posso-lhe dizer que a igreja tem um enxoval grande, todo em linho, que vai dar para muito tempo – se o souberem estimar. Quando faltaram os meus patrões, eles confiaram-me o recheio e estou a tomar conta do património da igreja, a zelar por ele, conservá-lo e mantê-lo como está.
Eu tenho a chave há muitos anos, a qualquer hora ia lá. Mesmo quando ainda trabalhava no solar também ia… Antigamente as igrejas ficavam abertas de noite, só se encostavam as portas. E eu chegava a ir à igreja antes de me ir deitar, às vezes era uma ou duas da manhã… eu abria a porta principal da casa e dizia para as minhas colegas, “vou ver se a porta da igreja está fechada para cá, ou não”. As portas ficavam só encostadas, que é uma coisa que hoje não se pode fazer. Antigamente era menos perigoso e toda a gente respeitava muito a igreja. Hoje em dia não. A gente nova não tem a mesma fé de antigamente, nem pensar. E há muito menos gente na igreja.
Mesmo com um padre muito novo e dinâmico como o que temos agora [o Padre Amadeu], há pouca gente na igreja. Já por cá passaram muitos padres. Conheci uns 12 ou 14, todos muito diferentes, com feitios diferentes. Eu não tenho nada a dizer de nenhum. Respeito o pároco como homem e como sacerdote. Dentro da igreja é sempre o homem que está a representar Cristo. Nós vamos para assistir e ouvir a palavra de Deus, saia ela do maior pecador. Temos de a aceitar. Mas eu não tenho queixa de nenhum padre. Trabalho com todos.
Conheço bem os cantos todos da igreja. Lembro-me de ainda haver tábuas de madeira a tapar o chão de pedra. A igreja era muito húmida, de inverno parecia que se ouvia a água a passar por baixo. Lembro-me que um dia vieram cá levantar o chão, há mais de 40 anos. O chão da igreja era todo cheio de túmulos, e eu assisti ao levantamento do chão. Levantaram as pedras e saíram dali as ossadas em terra que foi levada para o cemitério por um moço cá da terra, o António Castro.
Lá ao fundo, em frente ao altar do Espírito Santo, está um túmulo de 1625, de Don Francisco de Almeida, o da Companhia das Índias. Quando chegaram ao pé do túmulo, não lhe mexeram, mas viu-se o dourado do galão. Não sei se era das mangas, ou outra coisa. Mas eu vi.
A Igreja de Trevões tem muitos segredos. Agora, os frescos estão todos à vista, mas antes estavam tapados. Foram tapados no século XVII ou XVIII, quando veio a talha dourada do Brasil. Mas o povo sabia que havia ali pintura. Havia uma equipa da Direção dos Monumentos, de Coimbra, que vinha visitar a igreja quase todos os meses. E uma engenheira confirmou que havia ali pinturas. Veio cá uma senhora formada em arte sacra, com uma lupa, e andava a espreitar a madeira a ver o que lá estava.
No altar principal havia uma escada de cada lado e um patamar em cima. Foi de lá que eu caí, um ano antes da Direção dos Monumentos mandar arranjar aquilo, em 2000. Nessa altura eu já me ocupava de várias coisas na igreja. Era o mês de Maria, eu tinha ido rezar o terço com as velhotas. E vi uma jarra junto ao Santíssimo Sacramento que tinha umas flores que já estavam murchas. Subi, para tirar a jarra e colocar outras flores. E, quando subi e tirei a jarra, ao virar-me para descer, desequilibrei-me e caí. As velhotas só deram conta porque a jarra em metal amarelo fez barulho a cair lá trás. E eu lá estava, com a cabeça aberta. Não cheguei a perder os sentidos, mas fiz uma fratura exposta no crânio. Daqui fui para o Centro de Saúde da Pesqueira, de lá fomos de ambulância para Lamego, e depois mandaram-me para o Porto. E do Hospital de Santo António ligaram ao meu sobrinho, que vive no Porto, para se preparar para o final. Estive um ano a recuperar, mas cá estou. Não foi o fim.
Eu quando me vi no ar e a cair cá para baixo, tive uma oração muito simples: “Maria, mãe de Jesus, vem comigo, preciso de ti”. Foi a minha oração. E Nossa Senhora foi comigo e ainda aqui me tem.
Depois, tiraram essas escadas e mandaram pôr tudo à vista. E agora, quando vêm cá os turistas, vou sempre lá atrás mostrar-lhes as pinturas. Tem vindo cá muita gente, e eu acho que a Igreja de Trevões é mesmo o que de mais bonito há na nossa terra. Também conseguimos fazer dois museus muito bonitos. No Museu de Arte Sacra, aqueles paramentos estavam todos na igreja e nas casas senhoriais. As famílias tinham muitas posses, tinham capelas particulares, e eu tinha as coisas muito bem guardadinhas.
No Museu Etnográfico também ajudei a tratar de muitas coisas. Eu fazia parte do rancho folclórico da terra, mas não cantava nem dançava. Fui sempre a responsável pelos trajes. E foi uma grande responsabilidade, porque tive de dar volta à aldeia para encontrar os vários trajes antigos das pessoas e mandar fazer igual. Havia o traje da azeitona, da vindima, o cavador, o pastor, os domingueiros…
Uma das peças que fazia parte do rancho era a buzina, que levava o casal da azeitona. Eu lembro-me muito bem da buzina tocar. Aqui na terra, os olivais iam até ao rio, como quem vai para São João da Pesqueira. Os trabalhadores tinham de se levantar de manhã muito cedo para se juntarem na praça e irem todos juntos para a apanha da azeitona. E para o pessoal se juntar havia um responsável que vinha pelo povoado e tocava a buzina. Primeiro, tocava para o pessoal se levantar e comer qualquer coisa, tomar o almoço. Depois tocava outra vez para se juntarem todos na praça. Eu estava na cama e ouvia a buzina a tocar e pensava… “olha, lá vai o pessoal”. Era ainda noite escura. Mas as pessoas iam a pé, e iam para longe. Eram os carros de bois que iam buscar a azeitona. Também eram os carros de bois que levavam o vinho fino que se fazia aqui nas quintas, para ir para o Cais da Ferradosa e de lá seguir para o Porto. Agora ninguém anda a pé, vai tudo de carro.
Eu estou um bocadinho preocupada porque já tenho pedido a algumas jovens para virem aprender os costumes e onde as coisas se arrumam. Porque as igrejas têm os seus segredos também. Há coisas que não podemos ter à disposição; outras têm os seus dias para servirem. Há peças e paramentos que servem num determinado dia… e para aprenderem, só me respondem, ‘ah, não tenho tempo’; ‘ah, eu não quero’, ‘eu não posso’, ‘eu não quero responsabilidade’. E não sei como vai ser, porque eu já não tenho saúde para continuar a ter a responsabilidade toda. A igreja dá muito trabalho. Lavar, passar, preparar tudo – e sem ganhar nada. Eu nunca tirei dinheiro da igreja. Quando eu partir que se governem, que mais eu posso fazer?
Por agora, só peço muito a Nosso Senhor que me melhore, para poder voltar à igreja. Preciso de ir dar um jeito no armário grande, que está na entrada, pôr as toalhas por ordem, deixar escrito “estas são para o domingo, estas são para os dias de festa”. Enfim, deixar tudo preparado.
É que eu não vou à igreja já há uns meses. Dei um tombo na véspera do meu aniversário, aqui à porta de casa, e ainda não me mexo muito bem. Ainda tenho o braço e as costelas enfaixadas. Tinha ido à igreja preparar tudo para o dia da Senhora da Conceição. Já tinha tudo pronto no altar que recebe a imagem da Nossa Senhora – é uma imagem muito rica, muito importante, que nem é da igreja, é do povo. Foi oferecida por D. Caiado de Gamboa ao povo de Trevões. Os Caiado eram muito devotos da Senhora da Conceição. No solar deles há uma capela particular que tem umas pinturas muito lindas. É uma pena estar tudo fechado e já muito estragado. Essa imagem da Senhora da Conceição está guardada por particulares, ninguém descobre onde ela está (só há duas pessoas da Comissão Fabriqueira que sabem). E, no dia certo, a imagem aparece no seu altar.
Eu deixei tudo prontinho, mas ao chegar a casa, ia a sair do carro, estava a chover muito, pus o pé em cima do tampão dos esgotos, escorreguei… e aqui estou, à espera de começar a fazer a fisioterapia. Já caí várias vezes na vida. Vamos lá a ver quando recupero desta.
Enquanto o Nosso Senhor me der um bocadinho de saúde quero ficar por Trevões. Fui aqui criada, aqui cresci, não estou nada interessada em sair daqui. E já saí algumas vezes. Nas férias de verão ia com os senhores para Sintra, Cascais, para tomar conta dos miúdos, dos netos, para os levar à praia. Mas de resto, estávamos sempre aqui.
É aqui que eu gosto de estar. Gosto mais de Trevões. Gosto da minha terra. Aqui não tenho família, só tenho sobrinhos no Porto. Mas não queria nada ir para o Porto. Vou ficando por aqui, em casa desta minha prima. Temos esta senhora professora, que nos está a fazer o favor de tomar conta de nós. A Dona Maria dos Anjos é natural de Tondela, veio para aqui dar aulas aos pequeninos. Já se reformou há muitos anos, mas por aqui ficou. E agora toma conta de nós.
Também é ela quem vai abrir a porta da igreja se aparecer alguém para a visitar. Abrimos sempre a porta a quem quer ver a igreja por dentro, sejam católicos ou não.
A aldeia de Trevões mudou muito. A aldeia mudou e o mundo mudou. Há quem diga que mudou para melhor, mas não tenho a certeza. Numa certa parte estamos mais independentes. Mas com esta mudança perdeu-se muito a amizade e a confiança uns nos outros. Acho que está tudo mais egoísta. Antigamente tinha-se menos, e éramos todos mais unidos. Nos meus tempos de garota, se alguém ia buscar uma cesta de figos ou cerejas ao campo, quando vinha punha o cesto na frente e todos comíamos. Havia partilha. Hoje não há.
Estou com muitas saudades de ir à igreja, conversar com os meus santinhos. Sim, eu tenho esta coisa comigo. Eu gosto de rezar, faço as minhas orações e isso tudo, mas gosto mais de falar. Não vou desistir de lá voltar. Tenho dito sempre: “Senhor, os meus últimos trabalhos serão sempre na Vossa casa”. Realmente, eu dediquei-me muito à igreja.
Quando a casa onde eu trabalhava fechou e o solar foi vendido, eu, por motivos de saúde já não quis ir para mais lado nenhum. Tive muitas pessoas que me convidaram para ir trabalhar, eu dizia “não posso”. O melhor é eu dedicar-me ao serviço de Nosso Senhor enquanto puder, porque Dele ainda espero a salvação, e do mundo não espero nada.
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