Nasceu e cresceu em Lisboa, e vinha passar férias a Trevões, terra do avô materno. Tirou o curso de tradução mas cansou-se da secretária e da burocracia, rumou à aldeia para investir no negócio da família e afirmar-se como produtor em amêndoa biológica. Convenceu a namorada – “não foi muito difícil” – a acompanhá-lo e já contribuíram para o aumento da natalidade em Trevões. Eis o seu testemunho.
“Um dia mau em Trevões é melhor que um dia bom em Lisboa”
Chamo-me Bernardo Neto, tenho 35 anos, nasci e cresci em Lisboa. A ideia de vir para Trevões surgiu há uns anos, numa altura em que, posso dizê-lo, de facto, me fartei da vida na cidade. Eu tinha cá raízes. O meu avó era de cá, nasceu em Trevões. Mas a minha mãe já nasceu em Lisboa. O meu avô conseguia conjugar a vida de Lisboa com muitas vindas a Trevões, e o meu pai ainda chegou a viver aqui uns oito anos. Depois nunca mais ninguém viveu aqui, até eu regressar. Mas acho que funcionou muito bem, que tive a atitude certa. Cada vez mais estou convencido de que vir para cá e trazer a família foi a melhor decisão.
O meu avô Luís era filho do professor primário da aldeia; a escola primária era naquela casa onde hoje vivemos. Ele teve vários irmãos, mas depois deu-se aquela história habitual, e ele foi o único filho que conseguiram mandar para Lisboa. E tirou o curso de Direito.
A pandemia acabou por ser uma oportunidade.
Bernardo Neto
Na altura não era preciso ir trabalhar para grandes escritórios, fazia-se carreira em nome próprio. Ele era bom naquilo que fazia, e depois também andou a tirar o curso de Belas-Artes, conheceu uma data de gente.
Ele herdou um terreno pequeno, com pouco mais de um hectare, chamado Fonte do Lobo. Mas, ao contrário do que se fazia, em que as pessoas saíam da aldeia, iam embora e ponto final, ele foi investindo e comprando terrenos à volta. Hoje em dia são 100 hectares aqui no Douro, que vão desde o Souto, que ocupa toda aquela encosta, até ao outro lado, onde há a vinha, o amendoal e algumas oliveiras.
Nós estamos em Trevões por causa dele, do avô Luís. Ele é que começou isto. Eu vim cá parar porque é muito mais fácil vir para cá com um negócio já montado; se tivéssemos de começar do zero, certamente não estaríamos neste ponto.
Eu sempre gostei muito disto, vinha para cá de férias. Em 2012 fiz um projeto de jovem agricultor e comecei a interessar-me cada vez mais. A minha formação não tem nada a ver com agricultura. Tirei um curso de tradução em Lisboa. Sempre gostei muito de mecânica e coisas desse género, mas as dificuldades a Matemática e Física afastaram-me. Fiz o curso de tradutor com facilidade, mas depois percebi que trabalho de secretária e estar à volta de papéis é algo que eu detesto. Gosto de passar o dia no campo, e de ver as coisas a acontecerem.
Comecei a pensar mudar-me, mas a Mariana também ainda estava a acabar o curso, acabei por vir eu primeiro, há quatro anos, e ela só veio depois. Pensei, se eu aguentar um inverno sozinho no Douro… e aguentei. E gostei. Mudei-me para cá há quatro anos, a Mariana veio ter comigo há dois. Dizia-lhe que um dia mau aqui no Douro é melhor do que um dia bom em Lisboa. Não foi difícil convencê-la.
[Mariana: “Em Lisboa a vida é muito complicada. Ganha-se muito pouco. Nós temos ambos licenciaturas e estávamos a ganhar se calhar o mesmo que estamos a fazer aqui. Só que cá temos um negócio montado, temos qualidade de vida, é ótimo para criar os filhos. Em Lisboa tínhamos rendas, trânsito, Emel… nada que deixe saudades…]
Eu pensava que anda aqui uma pessoa a trabalhar para conseguir montar um negócio, quando em Trevões já está um montado, a funcionar em auto-gestão, na linha de água, a servir apenas para pagar aos caseiros e funcionários. Pensei que devia investir em inovação, tirá-lo dessa linha de água, melhorá-lo. Por isso vim para cá, e agora a Mariana também está a trabalhar comigo. Estamos os dois a tentar melhorar o negócio, a fazê-lo crescer, a preparar o futuro da nossa família.
[Mariana: Eu não tenho nenhuma costela rural. Sou completamente urbana. A minha família é toda de Lisboa, e tenho alguns primos no Algarve; ou seja, na outra ponta do país. Quando comecei a namorar com o Bernardo, há dez anos, vim cá a primeira vez e apaixonei-me. Pela paisagem, as gentes, os costumes, a vida, a calma que se tem aqui. Sempre que me ia embora de férias ficava super triste… mas mudar-me para uma aldeia não estava no meu horizonte. A partir do momento em que percebemos que tínhamos aqui um modo de vida viável, que nos trazia algum conforto e um futuro, porque estamos a trabalhar para nós, para a família, para a Alice, tomámos a decisão. Em boa hora.]
Nós temos a vinha, que dá trabalho para o ano inteiro. Mas nós aqui não fazemos vinho, vendemos as uvas para a Adega de Trevões. No souto há algumas operações para fazer, mas pouco trabalho consome. Vendemos as castanhas para a Cooperativa Agrícola de Penela da Beira. Onde nós passamos cada vez mais tempo é com o amendoal. Temos 46 hectares de amendoal, mas não trabalhamos só com as nossas amêndoas. Desde 1999 que temos aqui uma britadeira, e também fazemos esse serviço.
Nós vendemos amêndoas e antes só vendíamos a compradores da nossa área, grandes quantidades e a granel. Hoje em dia começamos a notar procura por amêndoa bio, e nós já estamos em modo de produção biológica há 20 anos. Mas só agora é que se começa a valorizar. Fizemos uma parceria com uma empresa que nos faz as embalagens e temos uma loja online.
Estes avanços foi a Mariana que ajudou a fazer. Quando ela veio para cá, há dois anos, não estava a pensar trabalhar aqui na quinta. Ela candidatou-se a empregos em hotéis aqui no Douro, foi a entrevistas, ia começar a trabalhar. Mas depois rebentou a pandemia, os hotéis fecharam, o contrato não avançou. Passadas três semanas de confinamento, ela já estava a pensar no que poderia fazer. Surgiu a ideia de vender as amêndoas que, por causa da pandemia, os clientes não vieram buscar – elas já estavam britadas, ia ser um prejuízo brutal. Foi aí que começámos a venda online. A pandemia acabou por ser uma oportunidade.
A Mariana trouxe ainda outra coisa, que eu não tenho, que é a organização, o jeito para lidar com o cliente. Se viesse cá alguém buscar uma tonelada, eu falava com o cliente. Se viessem buscar um quilo nem lhes abria a porta. E isso não é a maneira de ir para a frente. A Mariana veio ajudar nessa parte. Ela trata tanto da tonelada como do quilo. Eu nunca tive jeito, não sou vendedor.
[ Mariana: A minha licenciatura é na área das artes. Não tem nada a ver também. Mas nos anos mais recentes trabalhei em quintas na área do enoturismo, perto de Lisboa. Tenho alguma afinidade nessa área. Amêndoas nem tanto, mas tenho vindo a aprender nestes dois anos. Estamos a crescer e a aprender com os erros que temos cometido. Mas no geral até temos feito bastante inovação e tem corrido bastante bem. Mesmo com a pandemia.]
Trevões tem um grupo de pessoas jovens – até ligeiramente mais novas do que nós -, com quem partilhamos muitos interesses.
Bernardo Neto
Não é tudo fácil. O mais difícil é sempre lidar com pessoas. Nós lidamos com os trabalhadores – neste momento somos oito na quinta, contando comigo e com a Mariana – e lidamos com o facto de viver num meio pequeno. Eu continuo a ser a mesma pessoa e a fazer as mesmas ações, e não sinto que tenha de manter aparências, mas sinto que há mais julgamento. Mas passa-me ao lado.
Há muito mais coisas boas ao viver numa aldeia. Acima de tudo, temos liberdade. Abrimos a janela de casa e não temos um prédio de cimento à nossa frente. Não temos filas de trânsito. Quando vou a Lisboa fico sempre admirado… ‘como é que eu vivia aqui’?
Um dia bom em Trevões é sem dúvida muito melhor do que um dia muito bom na cidade. Porque mesmo quando as coisas não correm bem, temos essa tal liberdade. Um dia bom é sair de casa, tomar o pequeno-almoço, ver os emails, ir ao campo ver como estão a correr os trabalhos, organizar alguns negócios, fazer telefonemas, acabar o dia de trabalho e ir para casa e ver a minha filha sorrir para mim. Esse é um dia normal em Trevões. E à noite ir ao café, estar com os nossos amigos. Há cada vez menos gente nas aldeias e cada vez menos jovens. No entanto, Trevões tem um grupo de pessoas jovens – até ligeiramente mais novas do que nós -, com quem partilhamos muitos interesses. A população está envelhecida, esse é um problema de todas as aldeias, mas aqui há malta nova, temos um grupo giro de pessoas.
Nós viemos contribuir um bocadinho para resolver esse problema do envelhecimento. A nossa filha já nasceu aqui, e queremos muito dar-lhe irmãos.
[Mariana: O que sinto mais falta é de não ter Uber Eats (gargalhada). Falando a sério, eu e o Bernardo gostamos muito de restauração e de ir jantar fora, e aqui estamos mais limitados. Mas nós recebemos muitas visitas de amigos, e também saímos muitas vezes. Claro que falta algum apoio dos familiares, que estão todos longe, mais ainda com um bebé. Mas, na verdade, em termos de saúde, achamos que estamos muito bem. A pediatra do centro de saúde acompanha-nos muito bem. Tínhamos um obstetra identificado, mas sentimos que não há necessidade de fazer viagens para Vila Real ou para outra cidade.]
Quando a Alice nasceu quase não tivémos tempo de chegar ao hospital. Demorámos uma hora e um quarto a chegar a Viseu. Mal lá entrámos, ela nasceu passado cinco minutos. Tem sido uma ótima experiência, ela porta-se lindamente. Ela não é a habitante mais nova de Trevões. Houve três bebés nascidos em 2021. A Alice nasceu em outubro, mas o nosso tratorista teve um bebé em dezembro. Vão ser amigos na escola. Mas se calhar precisamos mesmo de lhe dar irmãos rápido, que por aqui não se vêem crianças a brincar na rua.
E temos mais alguns projetos para o futuro. Nomeadamente fazer um turismo rural na casa onde a quinta começou, e onde viveram os caseiros até 1985. Mas a casa está muito degradada, vai ser preciso muito investimento. Não é para já; mas lá chegaremos.
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