Com 44 anos, as memórias e as fotografias mais antigas de Helena Santos confirmam que começou a fazer queijo com a avó há mais de 40 anos. Fez muito queijo ao lado da mãe e agora está a ensinar a filha. Perpetua a tradição da família, onde sempre houve pastores, e tem a única queijaria tradicional do concelho de São João da Pesqueira. Eis o seu testemunho.
“Gosto de sentir o queijo entre as mãos”
Chamo-me Helena Catarino Santos, tenho 44 anos, nasci e cresci em Trevões e vivi sempre nesta mesma rua onde hoje tenho a queijaria. Tenho duas filhas, a Carolina e a Carlota, e com o meu marido abrimos em 2014 a queijaria, com condições modernas, mas sempre para fazer o queijo tradicional, amassado com as mãos, só com leite, coalho e sal. Podia ser feito com máquinas, mas acho que não era a mesma coisa.
Eu aprendi a fazer queijo com a minha avó Celeste. Tenho ali uma fotografia onde se vê que eu estou num banquinho ao lado da avó, devia ter uns três ou quatro anos. E já gostava de ir lá ajudar a meter a mão no queijo. A minha avó diz que de vez em quando eu metia pedaços à boca, mas o que agora eu digo é que não gosto de queijo nenhum. Nem fresco nem curado. E não gosto eu nem gostam as minhas filhas. Nós a fazer queijo todos os dias e o único lá em casa que o come é o meu marido (risos).
Na minha família sempre houve rebanhos, sempre fomos pastores. Do lado do meu marido não havia rebanhos, mas desde que casámos ele sempre gostou disto e ajudava o meu pai. Ele também é aqui de Trevões, e quando era solteiro ainda esteve a trabalhar em França. Mas há 26 anos fez um projeto de Jovem Agricultor e ficámos por Trevões, a viver da agricultura aqui na aldeia.
Fazer queijo é a minha vida, o meu trabalho. Andei na escola até ao sexto ano, mas depois comecei logo a trabalhar. Aprendi com a minha avó Celeste, continuei a fazer com a minha mãe, Judite. E agora também já ensinei à minha filha, a Carlota. A mais velha não gosta de vir para a queijaria. Prefere ir com o pai, ordenhar as ovelhas e as cabras.
Neste momento a Queijaria de Vale Parada – Vale Parada é o nome do terreno onde estão estabulados alguns animais – é a única registada no concelho de São João da Pesqueira. Aqui em Trevões sempre houve pastores, mas nunca houve uma queijaria. As pessoas que tinham gado e leite faziam o queijo em casa.
Nós aqui fazemos com o mesmo método tradicional, tudo à mão. Mas já há muitas coisas diferentes, face ao tempo da minha avó e da minha mãe. O leite agora é pasteurizado e o queijo seca nas câmaras, já não fica ao ar. São as obrigações de higiene. Mas o que interessa é a qualidade do leite, que chega aqui puro, do coalho e do sal.
Antes fazíamos o queijo sentadas em banquinhos, mas eu até gosto mais deste processo, de estar aqui de pé à volta de uma mesa. Fica a doer menos as costas, que a mesa está à nossa altura. E agora o queijo também se faz mais rápido, porque o leite ainda está quente, depois de ser pasteurizado. Lembro-me que, antigamente, o leite estava tão frio que era preciso estar horas e horas a amassar para conseguir fazer um queijo.
E o que eu mais gosto de fazer, em todo o processo, é mesmo de amassar o queijo. Gosto de o sentir entre as mãos. O resto é fácil: é só deitar o coalho num pouco de água e sal, desfazer e juntar ao leite que veio da pasteurizadora, depois mexe-se e passados 15 minutos, meia hora, está coalhado.
Os meus avós ainda faziam coalheiras, mas eu compro o coalho na farmácia. A coalheira era feita com o estômago dos cabritos e cordeiros. Quando os matavam, tiravam-lhes os estômagos e enchiam-nos de leite, e depois punham a secar ao fumo, como o fumeiro. Depois de seco, desfaziam o que estava lá dentro em água, coavam por um pano, e era aquilo que coalhava o leite. Eu nunca usei isso. Nem uso o cardo, porque o cardo não é bom para queijo fresco, só para o curado. E aqui há muita gente que me compra queijo fresco, para comer no dia.
Nunca faço a mesma quantidade de queijos por dia, porque tudo depende do leite que o gado dá. Mas o queijo que faço é posto à venda aqui na queijaria. O que não se vende é posto a curar, e pode estar até umas três semanas. Também vou às feiras quinzenais de São João da Pesqueira e de Penela. E também recebo encomendas – às vezes o queijo já está vendido e o leite ainda não saiu das ovelhas!
Antigamente chegou a haver 20 rebanhos, ou mais, em Trevões. Eu não sou desse tempo, mas lembro-me de haver pelo menos uns cinco. Havia muita gente na nossa aldeia que vivia dos animais, que tinha cabras e ovelhas, havia muitos pastores. O último foi o meu pai, que ainda vai saindo com o nosso gado. Mas ele vendeu o rebanho dele por questões de saúde. Nós, eu e o meu marido, tínhamos algumas poupanças, e pensámos em comprar o leite. Mas o fornecedor nunca vendia pelo preço que dizia, as coisas estavam sempre a mudar, achámos que devíamos ser nós a investir e a controlar o processo todo.
Em 2014, decidimos aumentar o rebanho, investir na queijaria e viver disto. Eu aprendi com a minha mãe e a minha avó. E a minha filha pode dizer o mesmo: já fez queijo com a avó, e agora com a mãe. Vamos lá ver se ela quer continuar o negócio. Tem 16 anos, está no 11º ano, a estudar na Pesqueira, durante a semana sai de manhã e vem à noite. Mas ao fim de semana está sempre aqui comigo.
Os jovens não gostam muito desta vida, porque é uma vida muito presa. A gente tem de tratar dos animais esteja a chover ou a nevar, o tempo que estiver, o dia que for, o trabalho é igual. Sábados, domingos, Natal e férias. É um serviço que não podemos deixar a outras pessoas, porque nem toda a gente gosta e sabe tratar dos animais. Mas trabalhar e viver na aldeia tem muitas coisas boas. Não temos horários para cumprir; temos trabalho para fazer mas gerimos nós os horários.
Quando não estou a fazer as feiras – altura em que estou a manhã toda fora -, venho de manhã fazer os queijos, depois venho virá-los, mudar os panos, atender a quem aparece na queijaria. Mas muitas vezes não estou aqui na queijaria, estou em casa, aqui ao lado, a fazer outras coisas. E também gosto de ir para a agricultura, tratar da azeitona, do vinho e eu gosto. Nunca procurei outra vida. Na aldeia não temos certas coisas, mas temos sossego e ar puro. E somos muito felizes.
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Nuno Santos, o enxertador
Aprendeu com o pai, aperfeiçoou-se com muitos anos de prática. Nuno Santos, 36 anos, é um enxertador muito requisitado não só na região, mas no país. Está há 17 anos à frente de todos os trabalhos agrícolas da quinta que pertenceu à família dos Caiados, uma das mais importantes de Trevões. Junto com o irmão, António, passam os dias no campo e dizem que não se veem a fazer outra coisa.